A Palestina foi um dos últimos lugares onde a teologia da libertação foi articulada.
O que Gustavo Gutiérrez começou na América Latina em meados dos anos
setenta serviu de inspiração para muitas teologias contextualizadas em
diversas partes do mundo.
Este artigo é dedicado a meu amigo Gustavo,
inspiração para muita gente por meio de seu compromisso de vida e seus
escritos, e que me inspirou em minha trajetória de fé pessoal.
Em 1948 foi cometida uma grave injustiça contra o povo palestino.
Foram muitas as forças coligadas para levar adiante o projeto. Além das
forças judaicas sionistas que perpetraram a catástrofe, a Inglaterra e
os Estados Unidos proporcionaram apoio político e legal internacional.
Ilan Pappe, historiador judeu israelense, descreveu a catástrofe no
prefácio de seu livro
The Ethnic Cleansing of Palestine [ A limpeza étnica da Palestina]:
Uma vez tomada a decisão, o
cumprimento da missão levou seis meses. No final, mais da metade da
população nascida na Palestina, cerca de 800 mil pessoas, havia sido
erradicada, 531 vilas destruídas e 11 cidades esvaziadas de seus
habitantes. O plano foi programado para 10 de março de 1948 e, levando
em conta sua implementação sistemática durante os meses seguintes,
tratava-se de uma operação precisa, que de acordo com a legislação atual
internacional, constitui um crime de lesa-humanidade.(2)
Isto levou ao estabelecimento do Estado de Israel, em 15 de maio de
1948, sobre 78% do território palestino. Por meio da guerra subsequente
de 1967, o exército israelense ocupou os 22% restantes da Palestina.
Desde então, o Governo de Israel tem confiscado a terra palestina,
construindo assentamentos para uso exclusivo de judeus (ilegais, segundo
a legislação internacional), cindindo o território palestino ao
estabelecer centenas de postos de controle que impedem o livre trânsito
da população palestina dentro de seu próprio paí, submetendo os
palestinos a injúrias, humilhações e inclusive a torturas…
Israel não reconheceu os direitos humanos e políticos dos palestinos,
e sempre se negou a cumprir numerosas resoluções das Nações Unidas que
ordenavam o fim da ocupação e permitiam aos palestinos estabelecer seu
próprio estado ao lado do Estado de Israel. A violência e o terrorismo
do Governo de Israel chocou-se com a violência e o terrorismo dos grupos
de resistência palestinos, e esta espiral de violência levou o país,
sua economia e segurança à ruína. Neste contexto político surgiu a
Teologia da Libertação Palestina (TLP), para encarar esta calamitosa
situação e suas múltiplas injustiças a partir da perspectiva da fé.
Desafios teológicos às religiões monoteístas
Em termos gerais, o conflito palestino-israelense colocou sob
suspeita as três religiões monoteístas descendentes de Abraão. Não
contribuíram com nada de interessante. Cada uma delas desempenhou um
triste papel. Pode-se inclusive dizer que a religião foi parte do
problema e não conseguiu ser parte da solução. Qual é, então, o
obstáculo teológico central interposto no caminho?
Sem nenhuma dúvida, o maior obstáculo teve que ver com nossa teologia
de Deus. Se nossa teologia sobre Deus está equivocada, é inevitável que
esteja também, automaticamente, nossa teologia sobre o próximo, e
vice-versa. Na prática, é mais simples analisar a teologia do próximo
porque é totalmente verificável. Quando ela é deficiente, nos damos
conta de temos uma teologia de Deus igualmente deficiente. Como povo
crente, nossa teologia de Deus é a que determina nossa teologia do
próximo; e, se queremos ajudar as pessoas a mudar sua teologia sobre o
próximo, temos que encarar sua teologia de Deus. Se nossa teologia de
Deus se baseia em nossos textos sagrados, interpretados literalmente e
sem análise alguma, então nossa teologia de Deus acabará estática e
ficaremos realmente paralisados.
Em nosso contexto de Oriente Médio, quando nos referimos aos crentes,
sejam muçulmanos, judeus ou cristãos, e especialmente aos que são
religiosamente conservadores, tradicionais ou ainda fundamentalistas, o
grande problema vem de sua compreensão de Deus. De acordo com nosso
conceito de Deus, pequeno e estreito ou bem grande e aberto, fica
determinado o modo como encaminhamos a solução aos conflitos entre
crentes ou à conflitos políticos e sócio- econômicos que enfrentam
nossas comunidades.
O que está absolutamente claro é que os três credos abraâmicos — ou
como alguns os denominam, as três religiões monoteístas — se
encontraram, juntos e totalmente imersos, no conflito
palestino-israelense. É importante recordar que o conflito não teve sua
origem na religião; contudo, com o passar dos anos, a religião chegou a
ser parte integral do mesmo e é, hoje em dia, sua mais clara expressão.
As pessoas creem que a religião tem um papel importante a desempenhar
na construção da paz; portanto, esperam que estas três religiões, que
reivindicam Abraão como antecessor comum, façam uma valiosa
contribuição. De fato, o conflito palestino converteu-se em um teste de
autenticidade religiosa. Por exemplo: Pode a religião encontrar uma
solução para o conflito a partir da fé em um Deus vivo, o Deus da paz?
Poderia-se dizer, inclusive, que se oferece uma oportunidade
privilegiada aos dirigentes religiosos e a seus povos de ter um discurso
profético e criar parâmetros para a paz com fundamento em sua
fidelidade ao Deus único.
Mas foi realmente decepcionante o que se deixou transparecer como
resultado deste conflito. Este intenso conflito político foi a causa
pela qual os fiéis das três religiões se chocaram no solo palestino. Ao
se chocar, chocaram suas religiões. O judaísmo em seu conjunto foi
capturado pelo sionismo e se pôs a serviço do Estado de Israel e seus
extremistas religiosos judeus. Sua fé parece estar centrada em um Deus
nacional, que retornou à Palestina para reclamar “seus” direitos de
herança para “seu” povo e pelejar ao seu lado para recuperar a terra dos
atuais cananeus, os árabes palestinos. O que observamos da parte judia
é, na realidade, um deus tribal em nada comparável ao grande Deus da
Bíblia.
De modo semelhante, o Islã invocou o seu próprio deus tribal, que
também reclama seus direitos de exclusividade para toda a região do
Oriente Médio, incluída a Palestina. Para os muçulmanos, o êxito do
projeto sionista foi sentido como uma facada que cortou uma porção
importante de “sua” terra. Desta maneira, e com seu deus, prepararam-se
para a guerra e empunharam as armas. Como o povo judeu, em lugar de
apelar a seus elevados dogmas de fé, botaram para fora seus conceitos
mais primitivos sobre deus: os deuses tribais tinham que se chocar.
Pode-se dizer, inclusive, que a Palestina constitui uma encruzilhada
para o mundo, em cuja arena combatem as três maiores religiões em busca
da paz, a fim de encontrar uma solução para um conflito ininterrupto.
Cada uma delas encara o conflito com sua fé no Deus Único e uma firme
tradição de justiça e paz. Esta, entretanto, em lugar de aproximar cada
vez mais seus povos da paz, contribuiu para a sua alienação progressiva.
Suas religiões e credos não se manifestaram de maneira suficientemente
vigorosa para deter o conflito e obter a paz. Em consequência, a palavra
“monoteísmo” é errônea, deve ser mudada ou inclusive descartada?
Converte-se em uma vergonha nossa fé monoteísta? Não estaremos, na
realidade, observando três religiões, cada uma delas crendo em seu Deus
Único, mas não no mesmo Único Deus? Muitos dentre nós sustentam que as
três religiões creem no mesmo Deus Único. É a razão pela qual se referem
a elas dizendo “as três religiões monoteístas”.
Contudo, observando mais de perto nossos povos e observando seu
comportamento e interação mútua, parece óbvio que não compartilhamos uma
fé no mesmo Único Deus. Se fosse assim, observaríamos maior respeito
entre os seguidores das três religiões e maiores progressos na busca da
paz. Ao contrário, nossas religiões são parte do problema e não da
solução. Em outras palavras, poderíamos presumir que nossa fé no mesmo
Único Deus, que demanda justiça e paz para todos, nos reuniria e atuaria
como vigoroso catalisador e força que nos ajudaria a encontrar uma
solução ao nosso trágico conflito. O fato de que isto não aconteceu,
lança dúvidas acerca de nossos credos monoteístas. Não fomos capazes de
superar nossos egoísmos e ambições, nem nossos pequenos interesses
nacionalistas. A zona da Palestina-Israel é a única no mundo onde estas
três religiões monoteístas entraram em conflito e onde o conflito
colocou à prova suas teologias de justiça e paz e revelou sua
necessidade.
Chegando a este ponto, temos de distinguir a religião de seus
adeptos. A pergunta crucial é: Que diz a religião acerca do conflito e
onde se situa Deus, em se tratando da paz? Se de fato cremos no mesmo
Único Deus, é necessário presumir que nossas religiões têm, ao menos
esboçada, uma visão comum para a paz, de acordo com o Único verdadeiro
Deus.
Importância das religiões proféticas
Nossas religiões deveriam assinalar com clareza a injustiça e o mal
perpetrados e sugerir vias para uma justa solução, ao mesmo tempo que
teriam que exercer a misericórdia e a compaixão. Se uma religião não é
profética, poderá ser cooptada pelo poder e se converter em sua
colaboradora. Uma religião autêntica tem que provocar seus fiéis com a
palavra de Deus, exortá-los a conformar suas ideias e seus atos à ela e
não rebaixar Deus ao nível de sua ambição e egoísmo, o que normalmente
conduz à violência e à guerra. Quando nossa teologia de Deus se
deteriora ao ponto de apoiar e justificar nossos preconceitos, algo anda
mal com nossa teologia.
Mais ainda: temos de dizer com simplicidade que, se nossos diferentes
textos sagrados não podem conciliar nossa teologia do Deus Único com o
Deus que detesta a injustiça e o mal, seja quem for o perpetrador do
mesmo, algo está drasticamente errado. Se nossa teologia de Deus não
condena a opressão e a exploração de todos os filhos de Deus, algo está
basicamente equivocado em nossa teologia monoteísta. Se nosso conceito
de um Deus amoroso, compassivo e misericordioso não pode se comprovar
hoje por meio de demonstrações de misericórdia e compaixão para com os
outros, ainda que sejam inimigos, então nossa religião fracassou. Se o
Deus no qual cremos não tem nada a dizer a respeito de nossos inimigos, a
não ser que temos de matá-los, algo anda errado com nossa teologia. Se
nossa religião não tem nada a dizer acerca dos pobres e dos oprimidos,
exceto ignorá-los e satanizá-los, temos que analisar a autenticidade de
nossa teologia sobre Deus e o próximo. Se nossa religião não tem nada a
dizer a respeito da paz e da segurança a não ser a favor de nós mesmos,
será necessário examinar nossa teologia. A tragédia de muitas pessoas
que chegaram ao poder é que, quando se tornam fortes, não querem dar aos
outros o que elas mesmas desejavam quando eram fracas. E quando nos
convertemos em opressores, não queremos dar aos outros o que desejamos
para nós mesmos quando éramos oprimidos. O interesse da teologia da
libertação está nos oprimidos e nos opressores. Nas palavras de Gustavo
Gutiérrez,
Amor universal é aquele que, em solidariedade com os oprimidos,
busca libertar também os opressores de seu próprio poder, de sua ambição
e de seu egoísmo (…) ama aos opressores, libertando-os de sua própria
situação desumana. Mas a isto não se chega
optando resolutamente pelos oprimidos, ou seja, combatendo a
classe opressora (…) Nisto consiste o desafio, novo como o Evangelho:
amar os inimigos3.
Falando como cristão a partir do coração da minha fé, posso dizer
que, se Deus no qual eu creio não é um Deus que cuida do outro e se
interessa por ele tanto quanto o faz comigo, esse deus não pode ser o
Deus do universo que nos criou e nos ama a todos. Se cada uma de nossas
religiões, a partir de suas bases teológicas, não é capaz de criticar
toda violência e terrorismo em seu interior e rejeitar absolutamente a
ideia de que Deus tenha algo a ver com essas práticas, algo está errado
em nossa compreensão de Deus. Como povo crente, temos de levantar nossa
voz profética para que alcance a todos os povos que nos rodeiam e
proclamar que o único Deus no qual todos cremos é o Deus da justiça, da
paz, do amor, da misericórdia e da compaixão e que não existe outro deus
diferente dele. A menos que consigamos isto, estaremos perdidos e
nossas religiões continuarão se mantendo prisioneiras de um sistema
teológico antiquado que nada tem a ver com Deus e o próximo que nos
rodeia; nossa religião não poderá contribuir com algo valioso para
resolver os problemas endêmicos de nosso mundo atual.
O Deus genuíno e autêntico é o Deus da justiça e da paz para todos.
Deus não pode ter prazer na injustiça, na dominação e na opressão. Os
que são oprimidos, assim como os que vivem sob o jugo da dominação, têm
que ser libertados. E isto inclui os palestinos oprimidos. Nossas três
religiões creem num Deus libertador. Poderá este Deus libertador nos
conduzir à paz? Será magnífico quando nossas religiões puderem produzir
uma fórmula de paz que proporcionará justiça, paz e segurança a todos os
povos da terra. Eu creio que isto pode ser feito, mas exige de nós a
vontade e a teologia para fazê-lo.
Na prática, isto significa que deve acabar a ocupação israelense nos
territórios palestinos e que a terra deve ser compartilhada. Deve ser
estabelecido um Estado palestino sobre todos os territórios palestinos
da Cisjordânia e da Faixa de Gaza ocupados, ao lado do Estado
israelense. A cidade de Jerusalém tem que ser compartilhada sob a forma
de duas capitais para os dois Estados. É preciso encontrar uma solução
justa para os refugiados palestinos baseando-se no Direito
Internacional. Será eliminada qualquer tipo de violência e terrorismo.
Ambos os governos, com seus povos, devem trabalhar conjuntamente para
desenvolver a capacidade econômica de seus países, buscando o bem-estar
de seus cidadãos.
Eu creio que o Deus Único, ao qual todos rendemos culto, se alegrará
na obra de justiça e estabelecimento da paz no país que todos nós
amamos, de modo que possamos viver como vizinhos, não como inimigos, e
respeitar a humanidade que recebemos de Deus. Apenas então nossas três
religiões monoteístas poderão dar um testemunho comum da grandeza,
soberania e amor do Deus Único, o Deus da justiça e da paz.
* Tradução: Flávio Conrado
1 Publicado na revista
Signos de Vida, no.55, março de 2010, pp. 10-14.
2 Oxford, 2006, p. xiii.
3
Teología de la liberación. 4 ed. Lima: CEP, 1984, p. 344
.
Veja o PDF - http://pazjustapalestinaisrael.org/pdf/O_maior_obstaculo_para_a_paz.pdf