A palavra compaixão talvez
seja uma das menos entendidas de todas as línguas. Normalmente é
associada à pena, piedade, comiseração. Ora, não há nada mais alheio ao
sentido visceral dessa palavra forte e ardente – compaixão – do que
essas edulcoradas e humilhantes definições.
Compaixão é sofrer com, padecer solidariamente e em comunhão. Tem a ver com justiça e restaurar dignidades atingidas e cruelmente vulneradas. Compaixão é o sentimento que caracteriza o ser humano diante de seus irmãos em humanidade que se encontram desumanizados pela pobreza, a violência e a opressão. É o que move o coração dos justos diante da iniquidade e do sofrimento do outro. É o que enche de desejo de comungar com a dor do outro e fazê-la sua.
Perante as vítimas inocentes da injustiça, dentro de um ambiente de globalização e pluralismo como é o nosso hoje, existirá um critério de entendimento e convivência irrevogavelmente reconhecido e vinculante para todos e, neste sentido, capaz de ser reconhecido como verdadeiro? Parece-me ser compaixão a palavra-chave para encontrar a resposta. Pois ela é capaz de suscitar a memória subversiva das vítimas para fazê-las de novo ativas na história.
É este conceito-atitude que procura exprimir a necessidade de o cristianismo abandonar a sua ameaçadora autoprivatização acomodada. Compassio não é um sentimento a partir de cima ou de fora, mas a percepção do sofrimento alheio, no qual se toma parte e que eticamente obriga. Para esta compaixão, vale o imperativo categórico: “para, escuta e olha”.
A compaixão é a capacidade de partilhar o sofrimento do outro. Com efeito, o mais terrível do sofrimento não é tanto ele em si, mas a solidão que nele se experimenta. Por isso alguns teólogos contemporâneos tratam de elaborar uma memoria passionis (memória da paixão) como categoria de base de uma teologia em espaço público. Trata-se de recordar – lembrar com o coração - os sofrimentos dos outros; fazer um rememorar público do sofrimento alheio, incorporado de tal maneira ao uso público da razão que a esta imprima um selo.
A compaixão parte, portando, da universalidade da experiência do sofrimento. A partir daí entende a teologia contemporânea a necessidade de uma nova teologia política que contribua vigorosamente para uma Igreja compassiva, funcionando a “memoria passionis” como recordação provocadora que fundamenta uma nova ética.
Os que sofrem, as vítimas de todo tipo, teriam então uma autoridade. E esta autoridade seria a autoridade interior de um ethos global, de uma moral mundial, que obrigaria todos os homens anteriormente a qualquer ideologia, a qualquer entendimento. Uma moral que, por conseguinte, não pode ser posta de lado ou relativizada por nenhuma cultura e por nenhuma religião, ou igreja. Toda verdadeira mística, hoje, sobretudo após Auschwitz, não pode não ser inspirada por esse ethos. E uma política inspirada por este ethos seria mais e diferente de uma pura executora das orientações do mercado, da técnica e de suas opressões objetivas em nossos tempos de globalização. Seria, portanto, mais humanizante e libertadora.
Aquilo que a teologia política explicitará na Europa do pós-guerra, que a teologia da libertação tematizará na América Latina a partir dos anos 1970, muitos já o viviam e o vivem em suas vidas e experiências espirituais, explicitando-o em sua práxis. Referimo-nos aqui a fenômenos como o dos padres operários, na Europa dos anos 1950; a pessoas como Madeleine Delbrel, apóstola das ruas de Paris; a Simone Weil, filósofa agnóstica que a partir da dureza do trabalho da fábrica vivido em seu corpo encontra a Deus e a Jesus Cristo, já nos anos 1930, antes mesmo dos horrores da guerra. E a tantos outros e outras que já viviam e narravam o que a teologia posteriormente elaborou em estilo articulado e rigoroso.
É possível, portanto, afirmar que o critério universal da condição humana se encontra na interpelação feita pela pobreza e a dor do outro e pela compaixão que ela origina. Todo este movimento não é apenas ético, mas também místico - ou melhor, é místico porque ético e vice-versa - uma vez que na Revelação bíblica e no Cristianismo ambas as coisas não se dissociam. Só encontrando aí sua fonte de inspiração primeira e iniludível pode a Teologia não ser infiel à sua identidade e à sua missão.
Maria Clara Bingemer
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora do livro "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).Fonte: Jornal do Brasil
Compaixão é sofrer com, padecer solidariamente e em comunhão. Tem a ver com justiça e restaurar dignidades atingidas e cruelmente vulneradas. Compaixão é o sentimento que caracteriza o ser humano diante de seus irmãos em humanidade que se encontram desumanizados pela pobreza, a violência e a opressão. É o que move o coração dos justos diante da iniquidade e do sofrimento do outro. É o que enche de desejo de comungar com a dor do outro e fazê-la sua.
Perante as vítimas inocentes da injustiça, dentro de um ambiente de globalização e pluralismo como é o nosso hoje, existirá um critério de entendimento e convivência irrevogavelmente reconhecido e vinculante para todos e, neste sentido, capaz de ser reconhecido como verdadeiro? Parece-me ser compaixão a palavra-chave para encontrar a resposta. Pois ela é capaz de suscitar a memória subversiva das vítimas para fazê-las de novo ativas na história.
É este conceito-atitude que procura exprimir a necessidade de o cristianismo abandonar a sua ameaçadora autoprivatização acomodada. Compassio não é um sentimento a partir de cima ou de fora, mas a percepção do sofrimento alheio, no qual se toma parte e que eticamente obriga. Para esta compaixão, vale o imperativo categórico: “para, escuta e olha”.
A compaixão é a capacidade de partilhar o sofrimento do outro. Com efeito, o mais terrível do sofrimento não é tanto ele em si, mas a solidão que nele se experimenta. Por isso alguns teólogos contemporâneos tratam de elaborar uma memoria passionis (memória da paixão) como categoria de base de uma teologia em espaço público. Trata-se de recordar – lembrar com o coração - os sofrimentos dos outros; fazer um rememorar público do sofrimento alheio, incorporado de tal maneira ao uso público da razão que a esta imprima um selo.
A compaixão parte, portando, da universalidade da experiência do sofrimento. A partir daí entende a teologia contemporânea a necessidade de uma nova teologia política que contribua vigorosamente para uma Igreja compassiva, funcionando a “memoria passionis” como recordação provocadora que fundamenta uma nova ética.
Os que sofrem, as vítimas de todo tipo, teriam então uma autoridade. E esta autoridade seria a autoridade interior de um ethos global, de uma moral mundial, que obrigaria todos os homens anteriormente a qualquer ideologia, a qualquer entendimento. Uma moral que, por conseguinte, não pode ser posta de lado ou relativizada por nenhuma cultura e por nenhuma religião, ou igreja. Toda verdadeira mística, hoje, sobretudo após Auschwitz, não pode não ser inspirada por esse ethos. E uma política inspirada por este ethos seria mais e diferente de uma pura executora das orientações do mercado, da técnica e de suas opressões objetivas em nossos tempos de globalização. Seria, portanto, mais humanizante e libertadora.
Aquilo que a teologia política explicitará na Europa do pós-guerra, que a teologia da libertação tematizará na América Latina a partir dos anos 1970, muitos já o viviam e o vivem em suas vidas e experiências espirituais, explicitando-o em sua práxis. Referimo-nos aqui a fenômenos como o dos padres operários, na Europa dos anos 1950; a pessoas como Madeleine Delbrel, apóstola das ruas de Paris; a Simone Weil, filósofa agnóstica que a partir da dureza do trabalho da fábrica vivido em seu corpo encontra a Deus e a Jesus Cristo, já nos anos 1930, antes mesmo dos horrores da guerra. E a tantos outros e outras que já viviam e narravam o que a teologia posteriormente elaborou em estilo articulado e rigoroso.
É possível, portanto, afirmar que o critério universal da condição humana se encontra na interpelação feita pela pobreza e a dor do outro e pela compaixão que ela origina. Todo este movimento não é apenas ético, mas também místico - ou melhor, é místico porque ético e vice-versa - uma vez que na Revelação bíblica e no Cristianismo ambas as coisas não se dissociam. Só encontrando aí sua fonte de inspiração primeira e iniludível pode a Teologia não ser infiel à sua identidade e à sua missão.
Maria Clara Bingemer
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora do livro "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).Fonte: Jornal do Brasil
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