Reflexões a propósito de um duplo aniversário
Volto de São Leopoldo, noRio Grande do Sul,
após uma viagem relâmpago. Não podia ficar mais por causa das aulas.
Mas não podia deixar de ir ali – peregrina humilde e jubilosa –
celebrar um duplo aniversário. O Congresso Continental de Teologia
Latino-Americana celebrava dois acontecimentos centrais em minha vida:
50 anos do Concílio Vaticano II e 40 anos da publicação do livro de
Gustavo Gutierrez, Teologia da libertação.
Fui
esperando encontrar uma bela organização, séria, bonita e emocionante.
Mas sinceramente não esperava tanta gente: 600 pessoas. E tantos
jovens. E tantos velhos amigos. E tantos queridos e respeitados
mestres. E cantar outra vez Canción com todos, de Mercedes Sosa, e
sentir que o auditório inteiro cantava e vibrava. Pensei que eu fosse a
única pessoa ainda viva que soubesse cantar esta canção.
Foi
belo ver a consagração imorredoura de um método: ver-julgar-agir. A
teologia latino-americana não renuncia ao seu modo de ser e de fazer-se.
Insiste em olhar a realidade e examiná-la e interpretá-la com o olhar
da fé. Ainda que o mundo tenha evoluído, ainda que as utopias hajam
caído, ver para depois julgar e descobrir pistas para a ação
transformadora continua sendo o leit motiv para a inteligência da fé em
nosso continente.
Em cada rosto que vislumbrava havia uma
história: uma luta compartilhada, uma esperança sentida, um sonho
sonhado, uma tarefa realizada. Ou também uma frustração chorada, uma
decepção, uma derrota. Mas vida. Muita vida vivida, celebrada,
aprendida. Somos muitos os que andamos há décadas por estes caminhos da
América. Trazemos pó nas sandálias, rugas no rosto, mas sempre
juventude e sonho no coração. E ver aquela assembleia vibrando, cantando
e refletindo junta mostrou que o sonho é maior que todas as tentativas
de sufocá-lo e brilha vencedor na vida dos que creem, esperam e amam.
Andando
pela enorme universidade do Vale do Rio dos Sinos recordei minha
vocação e minha iniciação, ainda jovem, pelos caminhos da teologia. E
era emocionante encontrar aqueles jovens de ambos os sexos, leigos/as ou
religiosos/as, chamando-me “professora” e dizendo-me haver lido artigos
meus, ouvido conferências e aulas que andei dando por esse continente
afora. E pediam para tirar fotos com eles. E pediam para autografar
livros meus que haviam comprado. Vê-los, ouvi-los, dava esperança e alegria: a teologia
latino-americana tem futuro. As novas gerações tomam em suas mãos o
bastão e não deixam apagar-se a chama frágil da fé que caminha de mãos
dadas com a justiça.
Depois a emoção de
encontrar e abraçar os mestres de ontem e de hoje. Ali estavam,
testemunhas de uma luta que tem sido árdua, mas cuja beleza sobrepuja os
percalços. Seus cabelos brancos, o andar às vezes combalido, ressoava
em meu coração enquanto eu dava graças por “aqueles e aquelas que me
precederam no caminho da fé”. Gustavo Gutiérrez, pai do livro que aniversariava, quebrou o joelho em Notre Dame e teve que fazer videoconferência. Mas Jon Sobrino falou ao vivo.
Foi
uma experiência espiritual de rara profundidade ouvir uma vez mais o
querido e admirável Jon repetindo seu mote irrenunciável de que só há
dois absolutos: Deus e a fome. E que o único absoluto é Deus e o
coabsoluto são os pobres. E recordar monsenhor Romero, Ellacuria e os
mártires da UCA, Rutilio Grande e todos aqueles e aquelas que derramaram
seu sangue para defender os pobres.
Se uma das missões das
testemunhas é confirmar os irmãos, ali no Congresso Continental isso
aconteceu sobejamente. O duplo aniversário nos confirmava a todos na
convicção de que, apesar de nossa finitude e imperfeição, o Senhor se
servira de nós para realizar seu desejo em determinado momento da
história deste continente. A presença dos jovens nos sinalizava que
nossa teologia ainda podia ser alimento sólido para as novas gerações.
Ainda é possível cantar Canción com todos! A teologia latino-americana está viva e cheia de saúde. E isso porque se alimenta do Evangelho, da Boa-Nova daquele que
proclamou bem-aventurados os pobres e os injustiçados, porque Deus os
ama, está com eles e os quer sentados nos melhores lugares do banquete
que oferece a seu povo.
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Fonte: Jornal do Brasil
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