Adital - “Religião e fé não podem se limitar ao ambiente da Igreja;
precisam enxergar a dimensão política, as causas das injustiças e
desigualdades sociais”. Este foi o lema que conduziu a vida religiosa do
bispo emérito de Juazeiro, Dom José Rodrigues de Souza, que atuou no
Nordeste, falecido na madrugada do último domingo (09), relembra Haroldo
Schistek, coordenador do Instituto Regional da Pequena Agropecuária
Apropriada – IRPAA. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU
On-Line, após retornar do enterro de Dom José, Schistek recorda a
atuação do bispo junto aos excluídos do Nordeste e as iniciativas
desenvolvidas para conscientizar e ajudar as pessoas diante dos
problemas sociais evidenciados na região. “Para os pobres, pequenos
agricultores, criadores de animais na Caatinga, pescadores, ameaçados de
grilagens, ele era o endereço certo. As cartas enviadas ao bispo,
assinadas pelos lavradores, eram lidas no programa ‘Semeando a Verdade’,
causando sempre grande repercussão”. Durante os 27 anos em que foi
bispo de Juazeiro, destaca, “deixou claro que a pobreza não se elimina
dando esmola, mas se engajando na derrubada de estruturas injustas. E
cada cristão precisa se engajar nesta empreitada”.
Dom José
Rodrigues encontrava-se entre os bispos que deram e dão apoio às
Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, sendo o pioneiro “na maneira como
reagir a projetos governamentais, ao exemplo da Barragem de Sobradinho”.
Segundo Schistek, sua atuação junto das comunidades foi “uma aula para o
movimento popular, como exemplo de luta por seus direitos em outras
novas obras e resultou no Movimento Nacional dos Atingidos por
Barragens”. Também foi uma figura central no desenvolvimento de um “novo
paradigma da convivência com o semiárido”. “Utilizou-se do rádio e
outros instrumentos de comunicação para levar ao povo a mensagem de
libertação através da convivência com o clima e com nossa região,
evidenciando os aspectos políticos que sustentavam a famigerada
indústria da seca no semiárido brasileiro, que possui, no paradigma
ilusório do ‘combate à seca’, a sua maior fonte de renda”, destaca.
Haroldo
Schistek é teólogo pela Universidade de Salzburgo, Áustria, agrônomo
pela Universidade de Agricultura em Viena e da Faculdade de Agronomia do
Médio São Francisco em Juazeiro, na Bahia. É idealizador do Instituto
Regional da Pequena Agropecuária Apropriada – IRPAA, com sede em
Juazeiro, fundado em 1990. Trabalha com assessoria relacionada a
recursos hídricos, desenvolvimento rural, beneficiamento de frutas
nativas, questões agrárias, entre outras áreas. É elaborador de
apostilas, livros, relatórios. Além disso, acompanha e coordena
programas junto de agricultores, dentro do conceito da Convivência com o
Semiárido. Integra a Coordenação Coletiva do IRPAA como coordenador
administrativo. Confira a entrevista.
Conte-nos um pouco da trajetória, na Igreja, de Dom José Rodrigues de Souza, bispo emérito de Juazeiro?
Dom
José Rodrigues de Souza C.SS.R (Congregação do Santíssimo Redentor, ou
seja, redentorista) (foto) nasceu em Paraíba do Sul, no Rio de Janeiro,
em 1926. Ingressou na Congregação do Santíssimo Redentor e foi ordenado
sacerdote em 1950. Por longos anos ele atuou na equipe dos missionários
itinerante dos redentoristas. Fez especialização em Catequese e
Pastoral, na Bélgica. Foi professor de Português. Por quatro anos foi
superior vice-provincial de Brasília (hoje, Província de Goiás). Em
1974, foi nomeado pelo papa Paulo VI como bispo de Juazeiro, Bahia,
sucedendo o primeiro bispo da Diocese de Juazeiro, D. Tomás Murphy,
também redentorista. Era famoso por suas pregações e palestras claras e
bem estruturadas. Os seus programas de rádio eram ouvidos com
assiduidade por todos – muito além dos limites da diocese, seja pelo
povo simples, seja pelos “coronéis”, de todas as colorações (estes
últimos com preocupação). Grande também era a sua capacidade de
escrever. O jornal diocesano “Caminhar Juntos” era todo mês um retrato
muito fiel dos problemas, conflitos e avanços, sejam do âmbito da Igreja
ou da sociedade civil. Pode-se dizer que D. José Rodrigues foi nomeado
bispo no momento certo: a construção da Barragem de Sobradinho estava
ainda no começo e os grandes projetos de irrigação a serem iniciados.
Como
ele era visto e reconhecido pela comunidade local? Ele tinha muitos
conflitos com os “coronéis” da região? Dom José ficou conhecido como o
bispo dos excluídos. Quem eram os excluídos que ele apoiava?
Dom
José Rodrigues expressava bem claro: religião e fé não podem se limitar
ao ambiente da Igreja; precisam enxergar a dimensão política, as causas
das injustiças e desigualdades sociais. Deixou claro que a pobreza não
se elimina dando esmola, mas se engajando na derrubada de estruturas
injustas. E cada cristão precisa se engajar nesta empreitada. Para os
pobres, pequenos agricultores, criadores de animais na Caatinga,
pescadores, ameaçados de grilagens, ele era o endereço certo. As cartas
enviadas ao bispo, assinadas pelos lavradores, eram lidas no programa
“Semeando a Verdade”, causando sempre grande repercussão. Mas ele não
deixou só na divulgação: mantinha paróquias atuantes e uma equipe da
Comissão Pastoral da Terra – CPT eficiente, que procuravam junto à
população saídas e estratégias.
Não é de estranhar que políticos,
grupos e famílias tradicionais viam nele logo o oponente que tocava no
seu poder de mando e perturbava a aparente “paz” social. Mas D. José
Rodrigues não tinha receio de colocar as mãos nas chagas da sociedade:
no auge dos anos da construção da barragem, Juazeiro e Sobradinho
atraiam muitas “mulheres da vida”. Mulheres muitas vezes jovens demais,
pobres mesmo, exploradas e condenadas por todos por serem “pecadoras”. O
bispo montou uma pastoral específica para elas, com a finalidade de
serem respeitadas como gente e sentirem sua dignidade como pessoa.
Montou a Pastoral da Mulher Marginalizada. Celebrou com elas a Santa
Missa. Ao protesto da sociedade, na pregação da missa, não hesitou em
citar a Bíblia onde diz: “Em verdade vos digo que os publicanos e as
prostitutas vos precederão no Reino de Deus” (Mt 21, 31).
A
partir de sua atuação no Nordeste, como ele chamou a atenção da Igreja
para a situação do povo local? Como o senhor descreve a relação dele com
os fiéis, especialmente com aqueles que ele chamava de as “vítimas do
desenvolvimento”, atingidos pela barragem de Sobradinho e pelos projetos
de irrigação?
Não era novidade que os direitos à posse de
terra para os pequenos agricultores constituíam-se como sendo muito
voláteis perante o poder dominante. Mas reconheceu a gravidade da
situação e foi um dos fundadores da CPT Regional da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil – CNBB Nordeste III (Bahia/Sergipe), já em 1976,
da qual foi bispo acompanhante por muitos anos. Logo em seguida criou a
CPT na diocese como resposta pastoral ao sofrimento do povo expulso pela
barragem de Sobradinho e aos camponeses vítimas da grilagem de terra,
em consequência à implantação de grandes projetos de irrigação.
A
ação profética dele dedicou também atenção específica a outros grupos
sociais que pouca atenção recebia: criou mais sete pastorais sociais
(juventude do meio popular, pescadores, a já mencionada mulher
marginalizada, saúde, reassentados, carcerária, criança), “círculos de
cultura” (com Paulo Freire), um setor diocesano de comunicação que
revolucionou a comunicação e o fluxo de informações entre os municípios
da diocese. Implantou uma biblioteca de 45 mil volumes, realizou uma
campanha pioneira pelas cisternas familiares de água de chuva, pilar da
Convivência.
A Pastoral da Juventude do Meio Popular tinha como
meta formar jovens com “os dois pés” na fé e na vida, para dar um
sentido novo à vida deles e transformar a sociedade. Não eram raras as
ocasiões, e ocorrem até hoje, em que, num ambiente de reunião ou
encontro, quando uma pessoa se destacava pela visão boa dos problemas e
pelo jeito envolvente de conduzir a discussão, ela se revelava como
tendo sido membro da Juventude do Meio Popular nos anos anteriores.
E as barragens?
Pioneiro
foi na maneira como reagir a projetos governamentais, ao exemplo da
Barragem de Sobradinho. Até então, o governo, militar ou não, fazia o
que bem entedia com os moradores que residiam próximos à obra. No nosso
caso, tantas vezes se ouvia um porta-voz da Chesf (Companhia
Hidroelétrica do São Francisco – executora da obra) afirmar na
televisão, a repórteres, que o tratamento com as populações residentes
acontece de maneira absolutamente justa, que ninguém ficará sem as
devidas indenizações. Uma breve visita às comunidades evidenciava bem o
contrário. O acompanhamento destes conflitos, por ele e sua equipe,
causou recuo da Chesf, processo ganhos ou conciliações, indenizações
pagas ou entrega de parcelas de terra para famílias atingidas. A luta
contra a construção da barragem foi, pode-se dizer, uma aula para o
movimento popular, como exemplo de luta por seus direitos em outras
novas obras e resultou no Movimento Nacional dos Atingidos por
Barragens.
Dom José foi um dos
incentivadores da convivência com o semiárido. Como ele contribuiu para
repensar o desenvolvimento na região?
Para nós do
Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada – IRPAA, a partida
de D. José Rodrigues é penosa e triste, pois a história da entidade e a
sua pessoa estão intimamente ligadas. Ele foi uma figura central na
fundação do IRPAA, sendo inclusive o primeiro presidente da entidade. Em
suas caminhadas pela diocese de Juazeiro, divulgava o novo paradigma da
convivência com o semiárido, em suas pregações, de forma
contextualizada com as passagens bíblicas. Utilizou-se do rádio e outros
instrumentos de comunicação para levar ao povo a mensagem de libertação
através da convivência com o clima e com nossa região, evidenciando os
aspectos políticos que sustentavam a famigerada indústria da seca no
semiárido brasileiro, que possui, no paradigma ilusório do “combate à
seca”, a sua maior fonte de renda.
Dom
José também foi um dos grandes apoiadores das Comunidades Eclesiais de
Base – CEBs. O que destacaria de sua atuação junto às comunidades pobres
da caatinga e das periferias urbanas, especialmente no período da
ditadura?
A época não foi fácil politicamente. Todos
tinham medo de expressar sua opinião nas universidades, em reuniões e em
lugares públicos. Os quatro municípios atingidos pela barragem de
Sobradinho foram declarados área de segurança nacional. Mas ele não se
intimidou. Sua casa foi invadida e vasculhada por agentes da ditadura,
os muros e portas da catedral foram pichados pelo Comando de Caça aos
Comunistas. Por toda parte podia de se ler em letras grafais “O bispo de
Juazeiro é comunista”, o que perante os olhos da ditadura era o maior
crime imaginável.
Quando a população se revoltava contra
desmandos públicos e privados, atribuíram isso à “agitação” do bispo.
Certa vez, dois fazendeiros no vale do Salitre foram mortos pela
população revoltada que queria defender seu direito à água, perante as
eletrobombas potentes que sugavam toda água do pequeno rio. Seguiu uma
campanha de difamação contra o bispo, dizendo que ele seria o mandante
destas mortes. A organização eclesial (CEBs), sindical e política do
povo sertanejo teve grande impulso sob sua inspiração e incomodou os
coronéis locais e os donos do poder na Bahia. Por conta de seu destemor
na defesa dos pobres, explorados e oprimidos, esteve por várias vezes
sob risco de violência e morte, mas não retrocedeu, impávido, às vezes
contra nossa vontade.
Dom José costumava dizer que era fiel a Jesus de Nazaré. Como a história e o legado de Jesus se manifestaram no seu dia a dia?
Dom
José Rodrigues era a simplicidade em pessoa. Era de grandeza em
personalidade, impressionava pela palavra, pelos conhecimentos, pela
informação. Falava com firmeza inquestionável perante a Assembleia
Legislativa, na Câmara Federal e em viagens pela Europa. Aliás, numa
época em que, no Brasil, valia a lei do silêncio, as várias viagens para
Europa foram de grande valia para os pobres. Ganhava aliados nas
pessoas de lá que protestavam junto às Embaixadas do Brasil na Europa, e
enviavam abaixo-assinados para autoridades brasileiras. Importante foi
também conseguir informações sobre o Brasil, sobre projetos e as fontes
internacionais de financiamentos que aqui, na época, eram mantidos em
sigilo. Numa contra-ação das pichações difamatórias, jovens lançaram mão
de pichações a favor do bispo. Uma que lembro vivamente dizia: “Dom
Rodrigues, o pequeno grande bispo”. Isso porque ele era de baixa
estatura. A simplicidade e o desapego aos bens materiais se mostram
também no vestuário. A sua camisa lavava toda noite de mão própria e
pendurava na varanda da casa, virada para a rua, para usar no próximo
dia. Nunca usava ar condicionado, quando alguém passava de madrugada, ao
lado da casa, ouvia, pela janela aberta, ele escrevendo na pequena
máquina datilográfica, já os artigos e publicações dos últimos
acontecimentos.
Para encerrar a entrevista, qual destacaria como sendo o legado do bispo emérito de Juazeiro, Dom José Rodrigues de Souza?
O
legado? O Reino de Deus deve ser perseguido também aqui na terra,
através da luta pela justiça, começando com cada um de nós. À Igreja e à
sociedade faltam novos Dom José Rodrigues.
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