11 setembro de 1973. Eu era então um jovem estudante de teologia,
frade franciscano que mal conhecia as coisas e o mundo. Mas a América
Latina já pulsava nos corações dos estudantes em meio à ditadura militar
brasileira. A morte, o suicidamento, de Salvador Allende foi um choque.
Eram tempos em que os jovens, no meu caso, e muitos militantes das
antigas sonhavam com uma frente guerrilheira que viria dos morros para
derrubar os poderosos e o regime. Muitos estavam na cadeia – foi quando
tivemos contato com as Cartas do cárcere, depois Cartas da prisão, de
Frei Betto, e outros – outros tantos no exílio, outros eram torturados e
mortos, outros tantos desaparecidos. Mas surgiam as Comunidades
Eclesiais de Base, as pastorais populares, quase na surdina, no
silêncio, onde os espaços da Igreja permitiam ou eram tolerados.
O
Chile e sua primavera eram o refúgio político preferido de muitos
militantes exilados, além de Cuba e Europa, querendo conhecer e
compartilhar da experiência chilena, além de não ficarem tão distantes
dos seus e da pátria amada. Aí vem o golpe de Pinochet, assassinatos
como o de Victor Jara, expulsão de brasileiros como Paulo Freire para
mais longe.
Nos encontros de formação de jovens cristãos,
cantávamos a plenos pulmões, com a alma e o coração, as canções de
Victor Jara, preso e assassinado no Estádio Nacional com as mãos
esmagadas para nunca mais tocar violão e cantar, e outras tantas canções
latino-americanas, embalados pela voz de La Negra, a grande Mercedes
Sosa. Sabíamos as letras de cor, em espanhol. Quem não lembra de Te
recuerdo, Amanda? – “Te recuerdo, Amanda/ la calle mojada/ corriendo a
la fabrica donde trabajaba Manuel./ La sonrisa ancha, la lluvia en el
pelo,/ no importaba nada/ ibas a encontrarte con el,/ com el, con el,
com el./ Son cinco minutos/ la vida es eterna/en cinco minutos./ Suena
la sirena,/ de vuelta al trabajo/ y tu caminhando lo iluminas todo/ los
cinco minutos/ te hacen florecer (...) Que partió a la sierra/ que nunca
hizo daño/ que partió a la sierra/ y en cinco minutos/ quedó
destrozado./Suenan las sirenas/ de vuelta al trabajo/ muchos no
volvieram/ tampoco Manuel.” (Tantos anos depois, arrepio-me todo e canto
baixinho ao transcrever a letra).
Ou Plegaria a um labrador:
“Levántate y mira la montaña/ de donde viene/ el viento, el sol y el
agua (...) Levántate y mirate las manos/ para crecer, estréchala a tu
hermano,/ juntos iremos unidos en la sangre,/ hoy es el tempo que puede
ser manãna./ Libranos de aquel que nos domina em la miséria:/ traenos tu
reino de justicia e igualdad;/ sopla como el viento la flor de la
quebrada,/ límpia como el fuego el cañón de mi fusil (...) /Levántate y
mirate las manos/ para crecer, estréchala a tu hermano,/ juntos iremos
unidos en la sangre,/ ahora en la hora de nuestra muerte. Amén.”
Eram
os cantos da libertação e do despertar da primavera latino-americana,
espelhada naquele momento no Chile. A esperança estava presente e nos
animava na luta.
Veio o golpe de Pinochet, o fim da liberdade e
da democracia, o suicidamento de Salvador Allende. Foi a inspiração para
o poema que escrevi em 11 de setembro de 1973, afixado no Mural do
Instituto de Teologia da PUC-RS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, também
homenagem a Victor Jara e outros cantantes latino-americanos. Ei-lo:
“ALLENDE VIVE!/Uma bala mata o homem./Uma bala não mata a ideia./Os dias
são muitos,/ incandescentes./Ardem na poeira do tempo./Nada como as
horas que se sucedem,/os minutos e segundos,/as batidas do coração que
abraçam milhões./Sonhos são para serem sonhados./Sonhos iluminam o
horizonte./Sonhos são eternos./Há um tempo para cada coisa./Há um tempo
para a morte./ Há um tempo para a
vida./Latinoamericanamente,/sobrevivemos. Brasileiramente, vivemos e
ressuscitamos Allende”.
Os tempos passaram, são outros. Os
sonhos, pelo menos no meu caso, permanecem, continuam vivos. Não são
mais os sonhos de guerrilheiros descendo dos morros, "tomando de assalto
o poder", à la Fidel, Raul e Che. Esse tempo e sua possibilidade
passaram, embora continuem urgentes e necessários. O capitalismo
financeiro, destrutivo e sem alma, tomou conta do mundo e elimina a
esperança e o futuro de jovens e trabalhadores, especialmente na crise
europeia.
O sentimento latino-americano, bolivariano, de Victor
Jara, de Che, de Mercedes, tantas e tantos, porém, está vivo nos
movimentos sociais e populares, na Teologia da Libertação, nas
Comunidades Eclesiais de Base que ainda resistem, nas mobilizações e
organizações dos de baixo, nos governos populares e democráticos.
Como
cantava Jara, "hoy es el tempo que puede ser manãna", na América do Sul
e na América Latina. Feliz e finalmente, o tempo que está-se fazendo
hoje não é mais apenas futuro. É unidade sul e latino-americana, como
pregava o Che, com democracia popular, com soberania, com igualdade e
justiça. Há muito a fazer, coletiva e solidariamente, é verdade. Mas o
tempo chegou, a história está sendo feita pelos pobres, pelos
trabalhadores, pelos de baixo, quase 40 anos depois do suicidamento do
socialista Salvador Allende.
Allende vive!
Selvino Heck
assessor especial da Secretaria Geral da Presidência da República.
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