Integrantes do Sindicato dos Médicos (DF) fazem vistoria no Hospital
Foto: Marcello Casal/ABr
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A
Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) anunciou, em 10 de julho, a
suspensão de 268 planos de saúde comercializados por 37 operadoras. O
motivo foi o desrespeito aos prazos máximos de atendimento aos usuários,
conforme a Resolução Normativa 259 da ANS.
As
empresas terão até setembro para se adequarem aos prazos que variam
conforme a especialidade médica. Para as consultas básicas, o cliente
deve esperar no máximo por sete dias úteis para conseguir o atendimento.
Para outras especialidades o prazo é 14 dias e para procedimentos de
alta complexidade, 21 dias.
A suspensão foi
motivada, segundo a ANS, pelo número de reclamações de usuários que
chegaram ao órgão. De 19 de março a 18 de junho, foram 4.682 queixas por
causa do não cumprimento dos prazos.
O
crescimento do setor privado de saúde e, sobretudo, sua má qualidade,
são preocupações de especialistas e defensores da saúde pública. Para a
médica e presidenta do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes),
Ana Maria Costa, não se pode mais falar em apenas um sistema único hoje.
“A sociedade brasileira não pode mais fingir que nós temos um sistema
único. O sistema já não é único. O sistema privado hoje cobre uma
parcela de acima de 30% da população”, afirma.
O
crescimento dos planos de saúde privados avança. Segundo o último
Caderno de Informação da Saúde Suplementar da ANS, o primeiro trimestre
de 2012 encerrou-se com o registro de 47,9 milhões de vínculos de
beneficiários a planos de assistência médica. Em dezembro de 2000, esse
número era de 30,7 milhões.
Em 2011, o mercado
dos planos de saúde teve um faturamento de R$ 83,4 bilhões, o que
representa um crescimento de 11,7% quando comparado a 2010. Na avaliação
de Ana Maria, é preciso frear, com urgência, o crescimento da saúde
privada, principal responsável pela fragilização do Sistema Único de
Saúde. Ao mesmo tempo, ela reforça a necessidade de voltar as atenções à
saúde pública, por meio de mais investimentos
. Em entrevista ao Brasil de Fato,
Ana Maria fala sobre a mercantilização da saúde e seus riscos para a
sociedade. A presidenta do Cebes, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, faz ainda uma crítica aos governos de
Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff: “Do ponto de vista da saúde
não andamos para frente. Em alguns aspectos, andamos para trás”.
Ana Maria Costa - Foto: Arquivo Pessoal |
Brasil de Fato – Como você analisa a questão da saúde pública no Brasil hoje?
Ana Maria Costa –
De uma forma geral, nós andamos em um terreno muito preocupante
atualmente porque o Sistema Único de Saúde, que foi concebido para ser
universal, de qualidade e único, hoje não é nem universal, nem de
qualidade e nem único. Tivemos um grande crescimento do setor privado de
saúde, da mercadorização da medicina, e uma transformação do nosso
sistema único em um sistema que tem baixa qualidade, destinado para uma
população que não pode pagar plano privado. Nesses 24 anos de
implantação do SUS, houve um recuo grande do Estado em relação ao
financiamento do SUS e uma ausência na regulação efetiva dessa relação
público-privado. É muito preocupante nossa situação hoje, e não é por
conta do SUS, que é uma proposta que surge em um contexto muito
positivo, fruto de uma grande mobilização popular.
É
uma pena que a grande imprensa contribua tanto para destruir, no
imaginário da população, o valor real e simbólico do Sistema Único de
Saúde. Prevalece toda uma lógica de mostrar o lado perverso e ruim do
sistema. Não que deva ser escondido, mas esquecemos de valorizar o que
há de positivo. Nós precisamos tratar a coisa pública como coisa de nós
todos, como direito universal. Nós temos esse grande problema, na
cultura política brasileira, de desprezo à coisa pública. E o SUS tem
suas excelências, como procedimentos de alta complexidade, tratamento de
câncer na rede Inca (do Instituto Nacional do Câncer), tratamento de
aparelho locomotor na rede Into (do Instituto Nacional de Traumatologia e
Ortopedia), grande volume de transplantes, de pesquisa. Todas essas
excelências não são valorizadas.
O SUS está sendo
sangrado também por judicializações, em que pessoas ou famílias ganham o
direito de ter acesso a medicamentos e tecnologias que são caríssimos e
que nem sempre são ainda registrados no país. Normalmente as pessoas
que têm acesso a esses processos judiciais são pessoas que não têm
dependência única do Sistema Único de Saúde, mas ao invés de pedir e
reclamar para os seus respectivos planos de saúde reclamam o acesso a
essas drogas pelo SUS.
Quais os principais problemas do Sistema Único de Saúde?
O
principal problema hoje é o Estado brasileiro definir qual é a relação
real que a saúde pública tem com a saúde de mercado. A sociedade
brasileira não pode mais fingir que nós temos um sistema único. O
sistema já não é único. O sistema privado hoje cobre uma parcela de
acima de 30% da população. A nova classe média tem uma aspiração
imediata e é estimulada, pela baixa qualidade do sistema único, a
ingressar no sistema privado. O sistema privado, cuja lógica é a
mercadorização da saúde, é um sistema perverso porque caminha autônomo.
Agora tivemos um primeiro lampejo da regulação com essa punição a planos
de saúde, que desobedeceram normas de tempo de acesso a determinados
procedimentos de saúde, mas ninguém mexe no coração da ferida.
Essa
luta pelo direito à saúde, que configurou a criação do SUS, precisa ser
introjetada na sociedade brasileira. E esse é um grande problema porque
nós não temos hoje uma força e uma pressão social que ampliem a
simpatia pelo SUS, ao contrário. E a qualidade do sistema privado não é
diferente do sistema único. Quando um paciente chega em um hospital e é
atendido pelo plano de saúde, para qualquer procedimento, a primeira
coisa que o hospital faz é saber se tem garantia de quem vai pagar
aquilo. Se o paciente chega em um hospital do SUS, o procedimento que
vai ser feito é o necessário, o que a doença e o estado de saúde
requerem naquele momento. Esse exemplo é a expressão do que é a medicina
mercadorizada e do que é a medicina como um direito humano. Nós temos,
por exemplo, uma das maiores mortandades maternas do mundo. Ocorre muita
morte materna no Brasil por negligência, por falta de qualidade na
assistência, e não é no Sistema Único de Saúde, é no sistema privado.
Por que não se fala sobre isso?
Outro problema
gravíssimo é que nós não temos nenhum partido político hoje no Brasil,
nem de esquerda, nem de centro, nem de direita, que tenha uma proposta
clara e objetiva e que lute por ela no Congresso Nacional. Nós temos uma
ausência de compromissos com a saúde absoluta no campo político
brasileiro. A saúde é uma demanda popular que aparece nas grandes
pesquisas de opinião pública e que não está nos programas eleitorais. A
saúde não vai pra pauta. E eu não falaria sobre atraso. Nós temos hoje
uma força política, muito grande dentro do Congresso Nacional, que
defende e que está lá para defender os planos privados de saúde e que
são contra o sistema único de saúde. Precisamos começar a mostrar essa
irresponsabilidade das autoridades com a questão da saúde.
A que se deve o esforço desses parlamentares em defender os interesses dos planos privados?
Tem
um número expressivo de deputados federais e de senadores que tiveram
suas campanhas financiadas por planos privados de saúde. Isso fala por
si. Como é que um plano me financia e eu vou falar daquele plano? O que
nós queríamos, com a regulamentação da Emenda 29, era melhorar um pouco o
financiamento da saúde, que estaria longe ainda do ideal. Perdemos
porque interessa, a esse setor, que o SUS se mantenha nesse estágio,
sendo cozinhado para ser um sistema de baixa qualidade. E nós caminhamos
para isso.
Como avalia a atuação do governo Dilma em relação à saúde?
Primeiro
eu gostaria de me identificar como uma pessoa que votou na Dilma e
também no Lula. Mas quero dizer que, na saúde, não tivemos grandes
avanços. Houve avanços importantes na assistência social, políticas
sociais que realmente foram objeto da atenção desses últimos três
governos, de Lula e Dilma. Todo esse conjunto das políticas
compensatórias sem dúvida teve um grande benefício para o Brasil, a
despeito dessa mobilidade social ter sido direcionada para o consumo, o
que nos preocupa muito, especialmente porque nesse bolo também está o
consumo por planos privados de saúde. Entretanto, do ponto de vista da
saúde não andamos para frente. Em alguns aspectos, andamos para trás.
Em
termos de financiamento, o veto que ocorreu à aprovação da
regulamentação da Emenda 29 expressa claramente isso. Houve toda uma
manobra de governo, junto a sua base política, para que não atingíssemos
um percentual de investimento público mais adequado em saúde.
Do
ponto de vista programático, nós estamos tendo uma gestão, atualmente,
que usa a saúde como objeto de marketing político. Nós já não temos mais
políticas para grupos sociais, como o caso das mulheres. Temos o
programa Rede Cegonha [programa do Ministério da Saúde voltado para o
atendimento de gestantes] que, além de infantilizar e colocar as
mulheres em uma situação bastante inferior, porque nos faz acreditar em
cegonhas, nos reduz a uma demanda em saúde que é pontual. Precisamos
encarar, nesse aspecto de uma saúde voltada à gestação e ao parto, a
importância da sociedade brasileira debater a legalização do aborto, que
mata um volume cada vez maior de mulheres no nosso país. Mas nós temos
ainda um governo completamente atolado de compromissos políticos, com
suas bases, que não permite avançar nesse debate. Isso é também uma
perda para a saúde.
O grande problema que traduz a
falta da prioridade política do governo é a questão do financiamento.
Ora, nós temos um sistema de saúde feito para 200 milhões de habitantes
com o menor gasto per capita do mundo. Não tem nenhum outro sistema,
mesmo não sendo universal, que tenha um gasto per capita tão baixo.
Comparativamente entre os gastos público e privado com saúde em geral, o
público é de menos de 40%. E os 60% restantes as famílias é que estão
despendendo, que vão às farmácias comprar medicamentos e que pagam um
plano privado.
Agora estamos, mais de 50
entidades, reunidas em um movimento nacional em defesa da saúde pública,
colhendo assinaturas por um projeto de lei de iniciativa popular, para
que o Estado invista 10% da renda bruta da União em saúde. Isso mostra
que a avaliação não é exclusiva do Cebes; a Associação Médica
Brasileira, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Abrasco, o Conselho
Nacional de Saúde, vários sindicatos, várias entidades do campo dos
direitos sociais. Estamos todos envolvidos na busca de maior
financiamento. Usuários de planos de saúde fazem inúmeras queixas contra
os planos de saúde, mas parece que nem as resoluções da ANS têm
efetividade.
O que garante essa blindagem às empresas?
Primeiro,
nós temos uma cultura de regulação muito fraca no nosso país. O setor
privado sempre mandou e desmandou aqui. E a ANS sempre foi muito ambígua
em relação à sua função. É muito recente a vocalização da insatisfação
dos usuários dos planos de saúde e, como isso, começou a ter muita
presença na imprensa, pressionando a ANS para uma resposta. Tem tido
algumas respostas tímidas ainda, mas antes tem que mexer no eixo
principal, que é essa relação público-privado. Eu queria uma relação que
não fosse mediada por esse grande desfalque, que é feito no SUS, com a
renúncia fiscal. Tudo que você gasta com saúde hoje é abatido
integralmente no seu imposto de renda. Essa renúncia fiscal é uma
sangria para o SUS. Já pensou o impacto que seria se esse dinheiro fosse
todo investido no Sistema Único de Saúde? Nós teríamos um financiamento
muito maior, que poderia qualificar muito mais esses serviços. Nós
também não podemos deixar de pensar o fluxo de recursos públicos que vão
para o setor privado sob a forma de pagamento de planos de saúde para o
funcionalismo público.
Na sua avaliação, o que é mais grave hoje, a falta investimento para o SUS ou melhor aplicação dos recursos já existentes?
Essa
é uma pegadinha em que não podemos cair. Houve um discurso muito grande
de que nós investimos mal, gastamos mal, gerenciamos mal. Eu não
descarto isso. Mas eu acho que esse discurso é falacioso para esconder o
verdadeiro problema do Sistema Único de Saúde. Quando eu vejo o gasto
público per capita hoje no Brasil para construção do SUS [estimado em
cerca de 317 dólares por habitante, segundo a OMS], eu diria que o SUS
faz milagre com o dinheiro que tem – milagre de gestão, aplicação,
funcionamento. A questão fundamental hoje é pensar em um investimento
per capita maior para a saúde no nosso país.
No caso das mulheres, quais as questões mais urgentes a se resolver hoje?
Nós,
mulheres, não somos sujeitos tão simples. Somos sujeitos complexos
porque somos adolescentes, adultas, velhas, temos cor diferente,
escolhas sexuais, condições sociais, econômicas, diferentes entre nós.
Essa nossa complexidade não pode ser resolvida com simplificação. Temos
que observar todas as doenças crônicas que estão hoje relacionadas às
mulheres, doenças cardiovasculares, doenças sexualmente transmissíveis,
saúde mental. As mulheres são grandes usuárias de antidepressivos e nem
sempre bem indicados. Mulheres negras têm mais risco em relação a
determinados problemas de saúde, indígenas têm outros riscos, lésbicas
outros. Temos que refinar esse olhar para tentar ampliar e dar conta de
todas essas demandas e não afunilar como vem sendo feito com esse
programa de Rede Cegonha que se destina claramente a uma ação que
interessa a marketing político e não realmente às necessidades de saúde
das mulheres brasileiras.
Pacientes aguardam atendimento em hospital público de Brasília (DF)
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Abr
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Especialistas
costumam ressaltar sempre a importância da atenção primária dentro do
sistema de saúde. Como está o Programa Saúde da Família, atualmente?
Esse
é outro desvio complicado. É claro que quando nós pensamos em um
Sistema Único de Saúde integral, esse integral significa que a saúde
deve ser oferecida a todas as necessidades de todas as pessoas em todos
os momentos da sua vida. Isso significa dar força, sim, ao atendimento
primário, mas a assistência primária não daria conta de resolver o
problema que o SUS se propôs a resolver. O SUS precisa ser integral,
então vai sempre prescindir de uma retaguarda de clínicas
especializadas, hospitais e de toda uma rede que dê conta desse
princípio da integralidade.
A atenção primária
deve ser a garantia da porta de entrada das pessoas, mas não é viável
que a gente tenha um sistema de atenção primária divorciado do resto. O
Brasil, nos anos 1990, criou isso, uma rede de atenção primária que é
absolutamente apartada do resto do processo de atendimento. Com todo o
mérito que a gente tem hoje de ter Programa Saúde da Família em todo o
território brasileiro, nós estamos ainda longe de resolver o problema da
saúde brasileira. Um indivíduo que tem só um médico da Saúde da Família
não tem nada. Ele tem que ter um médico de Saúde da Família, tem que
ter a retaguarda de um otorrinolaringologista quando ele precisa, de um
cancerologista, oftalmologista, de um exame laboratorial, os recursos
que ele irá precisar ou que precisa para ter realmente uma atenção
integral.
Agora, a saúde depende de outros
fatores para além do setor. Uma sociedade ou uma comunidade expressa, no
seu nível de saúde, o conjunto das políticas sociais às quais ela tem
acesso – política de emprego, de renda, de moradia, porque todas essas
políticas sociais geram qualidade de vida e, portanto, saúde.
O governo federal costuma alegar que faltam médicos no Brasil. Essa afirmação é verdadeira?
Há
falta de médicos no Brasil, sem dúvida, mas há uma má distribuição
enorme. Há uma política que não fortalece e não favorece uma melhor
distribuição. A ausência de planos de cargos e salários, a ausência de
políticas efetivas de fixação de profissionais no interior. Há uma
necessidade de se criar, no âmbito nacional, diretrizes gerais para
políticas locais que deem conta de fixação não só de médicos como de
enfermeiros, para garantir o acesso universal.
Quais os avanços mais imediatos para melhorar a saúde pública no Brasil?
Imediatamente
nós precisamos de um maior investimento público, de ampliação do
investimento e do gasto per capita em saúde. Precisamos de compromisso
político. Temos que mobilizar, nas próximas eleições, uma consciência e
um compromisso popular de cobrança, dos respectivos prefeitos, pela
implementação do Sistema Único de saúde. Um sistema público, de
qualidade e que respeite os princípios da Constituição.
Fonte: Brasil de Fato
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