O Brasil é um país de santos e heróis, embora poucos alcancem reconhecimento público. Talvez seja efeito de nossa baixa auto-estima, tão evidente que, hoje, induz o governo federal a promover campanha publicitária para que o nosso povo sinta orgulho do que é e do que faz.
Durante
séculos, de costas para a América Latina, miramos no espelho dos
brancos europeus e norte-americanos. O que víamos não era o nosso rosto
indígena, negro, mestiço. Era a imagem paradigmática do colonizador a
nos convencer de que somos atrasados, feios, improdutivos e inferiores.
Por isso, nossos avós almejavam “purificar-se” dessa fétida brasilidade
contraindo matrimônio com imigrantes brancos, exterminando povos
indígenas em nome da civilização e mantendo os negros escravos na
senzala e, após a abolição da escravatura (1888), na miséria e na
pobreza.
Quantos
brancos casados com negras? Quantos negros das classes A e B casados
com negras? Impedidas pelo preconceito e pela pobreza de freqüentar
escola, as negras servem para trabalhos domésticos, onde a chibata é
substituída, em geral, por um salário ínfimo. E as mestiças,
identificadas às mulas, tratadas de mulatas, tornaram-se símbolos do
hedonismo carnavalesco e dos atrativos turísticos voltados à
prostituição farta e barata.
Abrigamos
no Brasil o mais longo período de escravidão das três Américas – 358
anos – e ainda culminamos o processo da abolição com a exclusão dos
negros libertos do direito de acesso à terra, entregue aos colonos
europeus que aqui aportaram empurrados pelo desemprego causado pela
revolução industrial do século XIX e a acelerada urbanização do
Continente europeu.
Os
povos indígenas, calculados numa população de 5 milhões no século XVI
e, hoje, reduzidos a 700 mil, foram massacrados,desaldeizados,
contaminados pelas doenças dos brancos, pela cachaça dos brancos, pela
voracidade mercantil dos brancos, pela ambição de minérios e madeiras
dos brancos. Expulsos de seu ambiente natural e dos livros didáticos,
tornaram-se sinônimos de “primitivos” e “selvagens”, não no sentido de
primeiros habitantes dessas terras ou de moradores da selva, e sim de
atrasados e brutais.
Restrita
a nação ao convés da primeira classe, perdemos de vista nossos santos e
heróis, embora proliferem entre nós tantos artistas, atletas,
intelectuais, e também inventores como Santos Dumont. Porém, as coisas
não existem a partir do momento em que as conhecemos. Independem,
felizmente, de nossa ignorância. A realidade não é o que pensamos dela.
Transcende nossas limitações.
Não
tão conhecido como mereceria, há no Brasil um santo e herói: Pedro
María Casaldáliga. Santo por sua fidelidade radical (no sentido
etimológico de ir às raízes) ao Evangelho, e herói pelos riscos de vida
enfrentados e as adversidades sofridas.
Catalão
de Barcelona, onde nasceu em 1928, a 16 de fevereiro, Casaldáliga
ingressou na Ordem Claretiana, consagrada às missões, onde foi ordenado
sacerdote em 1943. Impregnado da espiritualidade dos Cursilhos de
Cristandade, veio para o Brasil e, em 1968, mergulhou na Amazônia. Em
1971, nomearam-no bispo de uma prelazia amazônica, à beira do suntuoso
rio Araguaia: São Félix do Araguaia. Adotou como divisa princípios que
haveriam de nortear literalmente sua atividade pastoral: “Nada possuir,
nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar”. No
dedo, como insígnia episcopal, um anel de tucum, que se tornou símbolo
da espiritualidade dos adeptos da Teologia da Libertação.
São
Félix é um município amazônico do Mato Grosso, situado em frente à Ilha
do Bananal, numa área de 36.643 km2. Na década de 1970, a ditadura
militar (1964-1985) ampliou a ferro e fogo as fronteiras agropecuárias
do Brasil, devastando parte da Amazônia e atraindo para ali empresas
latifundiárias empenhadas em derrubar árvores para abrir pastos ao
rebanho bovino. Casaldáliga, pastor de um povo sem rumo e ameaçado pelo
trabalho escravo, tomou-lhe a defesa, entrando em choque com os grandes
fazendeiros; as empresas agropecuárias, mineradoras e madeireiras; os
políticos que, em troca de apoio financeiro e votos, acobertavam a
degradação do meio ambiente e legalizavam a dilatação fundiária sem
exigir respeito às leis trabalhistas.
Dom
Pedro tem sido alvo de inúmeras ameaças de morte. A mais grave em 1976,
em Ribeirão Bonito, no dia 12 de outubro – festa da padroeira do
Brasil, Nossa Senhora Aparecida. Ao chegar àquela localidade em
companhia do missionário e indigenista jesuíta João Bosco Penido
Burnier, souberam que na delegacia duas mulheres estavam sendo
torturadas. Foram até lá e travaram forte discussão com os policiais
militares. Quando o padre Burnier ameaçou denunciar às autoridades o que
ali ocorria, um dos soldados esbofeteou-o, deu-lhe uma coronhada e, em
seguida, um tiro na nuca. Em poucas horas o mártir de Ribeirão Bonito
faleceu. Nove dias depois, o povo invadiu a delegacia, soltou os presos,
quebrou tudo, derrubou as paredes e pôs fogo. No local, ergue-se hoje
uma igreja.
Cinco
vezes réu em processos de expulsão do Brasil, Casaldáliga mora em São
Félix num casebre simples, sem outro esquema de segurança senão o que
lhe asseguram três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Calçando
apenas sandálias de dedo e uma roupa tão vulgar como a dos peões que
circulam pela cidade, Casaldáliga amplia sua irradiação apostólica
através de intensa atividade literária. Poeta renomado, traz a alma
sintonizada com as grandes conquistas populares na Pátria Grande
latino-americana. Ergue sua pena e sua voz em protestos contra o FMI, a
ingerência da Casa Branca nos países do Continente, a defesa da
Revolução cubana e, anos atrás, em solidariedade à Revolução sandinista
ou para denunciar os crimes dos militares de El Salvador e da Guatemala.
Hoje, inquietam-lhe a demora do governo Lula em realizar a reforma
agrária e o lastro de miséria e destruição que o agronegócio deixa em
terras do Mato Grosso.
Dom
Pedro tornou-se também pastor dos negros e dos indígenas, introduzindo
suas riquezas culturais nas liturgias que celebra. Em sua prelazia
habitam os índios Tapirapé, salvos da extinção graças aos cuidados
tomados pelo bispo.
Convocado às visitas periódicas (“ad limina”)
que todos os bispos devem fazer ao Vaticano para prestar contas,
Casaldáliga faltou a inúmeras, por considerar os gastos de viagem
incompatíveis com a pobreza de sua gente. No entanto, remeteu aos papas
cartas proféticas, exortando-os à opção pelos pobres e ao compromisso
com a libertação dos oprimidos.
Certa
ocasião fez uma longa viagem a cavalo para visitar a família de um
posseiro que se encontrava preso. Chegou sem aviso prévio. Diante de um
prato de arroz branco e outro de bananas, a filha mais velha,
constrangida, desculpou-se à hora do almoço: “Se soubéssemos que viria o
bispo teríamos feito outra comida”. A pequena Eva, de sete anos,
reagiu: “Ué, bispo não é mais melhor que nós!” Esta uma lição que ele
guardou. E sempre praticou, evitando privilégios e mordomias.
Fundador
da Comissão Pastoral da Terra e do Conselho Indigenista Missionário,
Casaldáliga admite que a sabedoria popular tem sido a sua grande mestra.
Indagou a um posseiro o que ele esperava para seus filhos. O homem
respondeu: “Quero apenas o mais ou menos para todos”. Pedro guardou a
lição, lutando por um mundo em que todos tenham direito ao “mais ou
menos”. Nem demais, nem de menos.
Em
setembro de 1985 viajei a Cuba com os irmãos e teólogos Leonardo e
Clodovis Boff. Falamos com Fidel que dom Pedro se encontrava em
Manágua, participando da Jornada de Oração pela Paz, e o líder cubano
insistiu para que o trouxéssemos a Havana. Tão logo desembarcou na
capital de Cuba, a 11 de setembro, o bispo foi conduzido diretamente ao
gabinete de Fidel. Este mostrava-se interessado na literatura sobre a
Teologia da Libertação. Dom Pedro observou com a sua fina ironia:
- Para a direita é preferível ter o papa contra a Teologia da Libertação do que Fidel a favor.
Na mesma noite, Casaldáliga discursou na abertura de um congresso mundial juvenil sobre a dívida externa:
-
Não é só imoral cobrar a dívida externa, também é imoral pagá-la,
porque, fatalmente, significará endividar progressivamente os nossos
povos.
Ao reparar que os sapatos do prelado estavam em péssimo estado, o secretário de Fidel lhe ofereceu um par novo de botas.
— Deixo os meus sapatos ao Museu da Revolução – brincou dom Pedro.
Fomos
juntos para a Nicarágua no dia 13. Ali Dom Pedro participou de inúmeros
atos contra a agressão do governo dos EUA à obra sandinista e batizou o
quarto filho de Daniel Ortega, Maurice Facundo
Em sua segunda viagem a Cuba, em fevereiro de 1999, Casaldáliga declarou em público, em Pinar del Río:
-
O capitalismo é um pecado capital. O socialismo pode ser uma virtude
cardeal: somos irmãos e irmãs, a terra é para todos e, como repetia
Jesus de Nazaré, não se pode servir a dois senhores, e o outro senhor é
precisamente o capital. Quando o capital é neoliberal, de lucro onímodo,
de mercado total, de exclusão de imensas maiorias, então o pecado
capital é abertamente mortal.
E enfatizou:
-
Não haverá paz na Terra, não haverá democracia que mereça resgatar este
nome profanado, se não houver socialização da terra no campo e do solo
na cidade, da saúde e da educação, de comunicação e da ciência.
Em
2003, ao completar 75 anos, Casaldáliga apresentou seu pedido de
renúncia à prelazia, como exige o Vaticano de todos os bispos, exceto ao
de Roma, o papa. Só agora, em 2005, o Vaticano nomeou-lhe um sucessor.
Antes, porém, enviou-lhe um bispo que, em nome de Roma, pediu que ele se
afastasse da prelazia, de modo a não constranger o novo prelado. Dom
Pedro não gostou do apelo e, coerente com o seu esforço de tornar mais
democrático e transparente o processo de escolha de bispos, recusou-se a
atendê-lo. O novo bispo, frei Leonardo Ulrich Steiner, pôs fim ao
impasse ao declarar que dom Pedro é bem-vindo à São Félix.
Frei Betto
Fonte: Adital
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