Ensaiava os gestos sabendo que teria de improvisar. Sabia o que queria...por isso, o perfume. Sabia que não podia. Não havia sido convidada. Não era esperada...por isso, a surpresa, o inesperado. Mas Jesus estava lá, por isso se atrevia.
"...aproximou-se dele uma mulher, trazendo um vaso de alabastro cheio de precioso bálsamo, que lhe derramou sobre a cabeça, estando ele à mesa." (Mateus 26,7)
O cheiro é inevitável. Escorre pela cabeça, respinga na mesa e na roupa do discípulo ao lado. A casa toda cheira a bálsamo. Impossível não sentir. Enebriada pelo perfume a memória já não sabe dizer se foi a cabeça (Mt 26; Mc 14) ou os pés (Jo 12)...o corpo todo! Mas houve a mulher e o perfume.
Uns dizem que a mulher fez mais: enxugou os pés de Jesus com o cabelo (Jo 12). Ela esteve lá. Ela toda: perfumada e descabelada.
A casa cheirava e os homens se irritavam.
"Vendo isto, indignaram-se os discípulos e disseram: Para que este desperdício? Pois este perfume podia ser vendido pôr muito dinheiro e dar-se aos pobres." (Mateus 26, 8 e 9)
Era Páscoa. A situação de Jesus era de fragilidade diante dos principais sacerdotes e os anciãos do povo que já tramavam sua morte (Mateus 26,3).
O sentimento da inevitabilidade do confronto rondava a cabeça e as emoções dos discípulos. Era páscoa e as prioridades estavam claras, os compromissos haviam sido feitos...até que aquela mulher e seu cheiro entraram pela casa a dentro.
A avaliação dos discípulos pode ser organizada na exclamação:
Que desperdício!
Bonito, mas fora de hora. Interessante, mas desnecessário. Significativo, mas não prioritário. Intrigante, mas inútil. Marcante, mas secundário.
Era páscoa. O confronto estava colocado e era preciso ser objetivo e eficiente.
Vende-se o perfume pôr muito dinheiro que poderia ser dado aos pobres. Este é o eixo. Esta a prioridade. Tudo mais é desperdício!
Mas o perfume derramado já não pode mais ser guardado no frasco.
Era Páscoa e todo o corpo de Jesus cheira a bálsamo precioso. E é bom. O perfume. O cabelo. A mulher. É páscoa. O confronto...os pobres estão aí, sempre. E daí? Mas é o perfume que qualifica o gesto da mulher no corpo de Jesus e pronuncia nomes ainda não ditos para a experiência de Deus que não se esgota em discurso formal algum, mesmo que seja o que se auto-proclama pelos pobres.
"Por que molestais esta mulher? Ela praticou boa ação para comigo." (Mateus 26,10)
O perfume era o sinal da cumplicidade entre Jesus e a mulher.
Cúmplices de um messianismo que tem sua mediação no corpo perfumado e prazeiroso. Ressurreição. As prioridades funcionais que orientam a análise e a reflexão dos discípulos não sabem o que é isso. Aprisionados na generalidade do discurso sobre o pobre, para pobre, não podiam perceber no gesto da mulher o tanto de afirmação política e teológica.
"...derramando este perfume sobre o meu corpo, ela o fez para o meu sepultamento." (Mateus 26,12)
Na memória de João 12,1 a 8 as prioridades dos discípulos são desmascaradas no comentário que sugere o desvio de recursos destinados aos pobres pôr parte de Judas.
O texto de Mateus 26 e Marcos 14 também articulam o relato da traição de Judas a este episódio localizando assim conflitos internos ao movimento de Jesus.
A leitura dos discípulos sobre o messianismo de Jesus não é unânime.
O gesto da mulher pode ser entendido como expressão de uma parte do movimento de Jesus que formulava o messianismo de modo distinto e específico daquele que comumente entendemos como oficial e que tem suas contradições apresentadas nos relatos da morte de Jesus.
Da mulher e seu gesto Jesus diz que ;
"Onde for pregado em todo o mundo este evangelho será também contado o que ela fez, para memória sua." (Mateus 26,13)
Para memória sua. Para memória sua.
O cheiro do perfume derramado atravessa o tempo e continua exigindo leitura, sentido...revelação.
Pra quem se faz aprendiz das teologias do continente latino-americano, pra quem se faz mulher e teóloga gerada e crescida nas lutas dos movimentos de libertação o gesto de invadir a casa aonde se reúnem os homens e derramar o perfume traduz bem o tanto de desafio e tarefa que vem sendo feito e ainda se tem pra fazer.
Nós também não fomos convidas, nem éramos esperadas neste momento de páscoa-confronto no qual a Teologia da Libertação se fez e se vai fazendo.
Prioridades elencadas, lutas fundamentais identificadas, preferências assumidas, agentes sociais privilegiados alimentam o esforço dos teólogos que se sentam à mesa do continente-leproso.
E já é muito que estejam sentados nesta mesa.
Aí, entra a mulher e derrama seu perfume.
Desperdício! gritam os senhores teólogos ciosos de suas prioridades.
A mediação é o pobre! insistem entre irritados e indiferentes sugerindo que o que chamamos de teologia feminista poderia ser de alguma forma revertido na direção hermeneuticamente e politicamente adequada. Tratam de fazer do cheiro que exalamos um tema a mais, entre outros que se subordinam e se ajustam aos parâmetros da mediação do pobre.
Mais do que o gesto, a intenção. Mais do que o frasco, o corpo. Mais do que o perfume, o sentido.
Mais o que é as teologias feministas vem derramando e com o que vêm impregnando a casa, a igreja, as editoras, os institutos, as bibliotecas, os seminários, as gavetas, as assembléias e os concílios? Por que é que ouvimos tantas vezes que a teologia que fazemos é desperdício! ?
1- Nos recusamos a continuar pensando o sagrado a partir dos parâmetros patriarcais e mais que isso, denunciamos a teologia feita até aqui como idolátrica uma vez que incorpora o macho e seus atributos como extensão do divino.
Cheiramos a teologias que já não precisam de fundamentos mas que na exposição de suas motivações revelam o sagrado, com os muitos nomes que Deus pode ter.
A Teologia da Libertação ainda não denunciou o que nela mesma é patriarcalismo e fetichismo do macho: nem a nível metodológico nem nos desdobramentos eclesiológicos que ainda asseguram o privilégio masculino ao saber e administração do sagrado.
Continua o desafio de construção e apropriação de novos instrumentais teóricos, em especial a investigação e reflexão teológica que se utilize das categorias de gênero.
2- Nossas teologias têm cheiro de corpo. Já foi feito o caminho de construir a teologia a partir da realidade e seus conflitos, fazendo-o de modo comprometido na preferência pelos pobres.
As teologias feministas insistem que a mediação sócio-analítica não pode se esgotar no "pobre" como generalidade e insiste em apontar o corpo como ponto de mediação hermenêutica.
O corpo cheira, é contextualizado, datado, situado. Mais que isto, o corpo é sexuado. Raça e gênero não são portanto mero apetrecho decorativo da reflexão mas, na interação com o corte sócio-econômico circunscrevem as condições objetivas e subjetivas aonde a interpretação e a formulação do discurso e prática do sagrado acontecem.
A questão da mulher não é questão. Nem é tema específico. Não é uma dimensão, nem uma particularidade.
As teologia feministas não pretendem o todo, o universo sistêmico da teologia porque isto já não existe mais. Neste sentido cheiramos a ecumenismo, um que se esparrama para além das formalidades intra-eclesiais e se escracha no diálogo-embalo inter-religioso.
As teologias feministas têm a oferecer a possibilidade da convivência e da inculturação com as matrizes religiosas afro-indígenas do continente porque se assumem na pluralidade e na autonomia com as hierarquias.
3- Queremos que a casa cheire: a de Simão, a casa do povo e a casa dos teólogos e teólogas também. A Teologia da Libertação não sabe ficar em casa.
Daí que a casa continua sendo espaço vazio de dignidade e o cotidiano despossuído de beleza ou valor. As relações homem-mulher, adulto-criança não contam. A economia da casa, a reprodução e o trabalho doméstico não interferem nas análises sócio-econômicas que sustentam toda reflexão teológica libertadora. Daí que continuamos a não ter o que dizer e a conviver com a miséria emocional e sexual de nossos povos. E a nossa.
4- As teologias feministas querem mais. Cheiramos o orgasmo como dinâmica prazeirosa que dignifica a pessoa, as relações, a família e a casa. Fazemos teologia pôr prazer, porque é bom, porque liberta e dignifica a vida. Por isso nos ocuparmos da discussão sobre culpa e prazer, sexo e poder, sexualidade e política, produção e reprodução.
Isto tudo cheira demais e quase sempre o grito de desperdício! é mais forte do que as tentativas e alternativas que vamos tecendo.
5- Cheiramos das muitas jornadas de trabalho que compartilhamos com as mulheres do continente. Privilegiadas pelo acesso ao estudo e à vida acadêmica, convivemos em situações familiares e esquemas de vida religiosa opressoras.
Vivemos num continente que respira e convive com a miséria cotidianamente. Entre nós a pobreza tem sexo: são as mulheres e as crianças do continente que sofrem de modo mais imediato e direto com as crises econômicas e políticas que arrastam o continente latino-americano pôr 5 séculos.
Convivemos com números absurdos de violência doméstica contra as mulheres sem contar com mecanismos institucionais - policiais e jurídicos - de proteção. Convivemos com o trabalho mal remunerado de milhões de trabalhadores, em especial de mulheres, e um movimento sindical que continua privilegiando as questões masculinas e sendo liderados pôr homens que não se dão conta das formas específicas de exploração das mulheres tanto no trabalho das fábricas como no campo. Convivemos com esquemas de sexo-turismo e prostituição infanto-juvenil que perpetuam esquemas perversos de abuso e violentação sexual.
Convivemos com altas taxas de mortalidade de mulheres no período de gestação, parto e pós-parto o que revela a total inexistência de políticas públicas de saúde da mulher.
É o cheiro dessas mulheres que queremos em nossa teologia e não o cheiro de uma mulher ideal que alguns teólogos insistem em continuar exalando quando tratam da mulher como tema, item, questão adjetiva e não substantiva da política e da teologia.
6- Temos cheiro de mãe. Mas já não queremos vestir as vestes apertadas e incômodas da maternidade despossuída de dignidade.
Entre estas vestes que cheiram a mofo está todo o discurso religioso que mistifica e idealiza a maternidade, em especial no aprisionamento de Maria, mãe de Jesus. Enclausurada numa virgindade absurda e desnecessária Maria, passa a assumir no discurso da Teologia o papel da mãe que tudo sofre, tudo crê, tudo suporta pelo amor dos filhos e do povo na afirmação de um novo tipo de virgindade: a sócio-política. Recauchuta-se os dogmas e Maria e todas nós continuamos a ser depósitos virtuosos e militantes da causa do Reino e do povo.
Queremos derramar o perfume do corpo sexuado de Maria e de todas nós, tomando o discurso sobre a maternidade, virgindade, concepção e fecundidade em nossas mãos, em nosso ventre, em nosso sexo. Queremos continuar a engravidar só de ouvir as canções que o sagrado sopra sobre nós.
Mas inteiras. Virgens ou não.
7- Mães ou não. Aceitamos o diálogo com outras mulheres, cristãs ou não, que se colocam o desafio de pensar sobre direitos reprodutivos, inclusive o aborto.
Conversamos também com as milhares de mulheres que morrem todos os anos em abortos clandestinos desesperados e malfeitos.
Nos recusamos a conversar com o clero e senhores da lei e da moral incapazes de fazer da experiência do corpo matéria teológica. Esta conversa tem de ter cheiro de mulher. Ninguém quer o aborto. Mas ele existe e precisa ser descriminalizado para que a conversa aconteça de modo libertador.
Precisa ser legalizado para que o sacrifício sistemático de mulheres pobres acabe.
A Teologia da Libertação tem afirmado o primado da vida como critério regulador das questões morais e éticas. Vamos juntas... mas queremos mais. Não existe a vida como um valor em si mesmo, fora dos limites e determinantes sócio-culturais. Afirmamos a vida em sua concretude, é dizer suas contradições e feixe de relações.
Daí que a ética deixa de ser a defesa de absolutos pra ser o discernimento do que é justo e belo nas particularidades.
8- Nossa teologia tem cheiro de criança. E que cheiros uma criança tem! São tantos e todos e nenhum deles perpassa a teologia. Nenhuma delas...nem a da Libertação. As crianças empobrecidas aparecem como tema, como exemplo de situação de opressão e sacrifício mas não são afirmadas como agente eclesial e social ativos. Merecem as ações libertadoras dos adultos mas não são entendidas como parte ativa e presença profética no meio da comunidade de fé.
9-Também nos gritam desperdício! quando derramamos a exigência de democratização e socialização dos sacramentos e ordens.
Até mesmo entre as teólogas existe as que fazem coro dizendo que a luta pela ordenação feminina não é prioritária. Correto: nossa prioridade não é o púlpito ou o poder de administrar o sacramento.
Mas não dá pra conviver com formas de organização da vida eclesial que continuam a proibir o acesso de mulheres a esta ou aquela instância da vida interna da comunidade cristã.
A luta pela ordenação feminina não se esgota no acesso à ordem e aos sacramentos mas se articula com um processo mais amplo de avaliação e na busca de novas formas de ser igreja.
Qualquer discussão sobre poder e carisma que não aponte para o acesso inclusivo ao ministério joga água no moinho da discriminação nas igrejas e na sociedade.
10-E cheiramos a Bíblia. Lemos a Bíblia não mais com os olhos da tradição ou da ciência, mas desconfiando das duas permitimos que o nosso faro nos aponte as possibilidades de leitura da memória do povo de Deus que não reforce os mecanismos eclesiais e sociais de opressão da mulher.
Cheiramos mulheres pôr toda a Bíblia. Até mesmo aonde elas não estão. Cheiramos a palavra de Deus no texto e na vida cientes de que a revelação está nessa dinâmica de leitura e construção de sentido. Nos aproximamos do texto perguntando pelo contexto.
Usamos o instrumental científico disponível no trato com as línguas e as culturas que sustentam o texto. Mas não abrimos mão de cheirar o texto, de suspeitar dele e até mesmo de recusá-lo se nos cheira mal. Recriamos o texto não nele mesmo mas ao recitá-lo o reinventamos a partir de nós mesmas que somos donas do nosso nariz.
Nancy Cardoso
pastora metodista, com formação específica na área de Bíblia
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