Iniciamos mais um tempo quaresmal e nesta época é muito normal se falar em conversão, arrependimento dos pecados, jejuns, oração, retiros espirituais, penitência, confissões de pecado etc.
É um tempo em que se fala claramente e de forma bastante infantil, sobre a existência do céu e do inferno, de práticas que correspondem à vontade de Deus e à vontade do satanás. Nesta época, a cultura religiosa passa a restringir algumas manifestações sociais de lazer e de entretenimento que podem ser sentidas até pelas crianças, muitas vezes privadas pelos pais de certas brincadeiras inocentes, típicas do mundo infantil.
São atitudes que provocam muitas reflexões sobre o comportamento dos cristãos que, queiram ou não queiram, acabam sendo levados a um mergulho nos rios da introspecção para se autoquestionarem e recorrerem a infinita misericórdia do Pai divino, depois de reconhecida condição de filho errado. Isso é bom!
No entanto, contemplando o cenário de escancarada desgraça na sociedade, provocada por muitos que semanalmente ajudam a entupir os templos sacros para ironicamente rezarem e comungarem o corpo e sangue de Cristo fico a me perguntar “abestalhadamente”: será que todo este esforço religioso tem surtido efeito nas últimas décadas do cristianismo? Qual foi a grande transformação que aconteceu em virtude de tantos atos de piedade e de supostos arrependimentos quaresmais?
Parece que já faz algum tempo que a sociedade cristã abandonou a encarnação da espiritualidade conceituada nos apelos essenciais do tempo quaresmal. Basta olhar nos entornos da vida humana e perceber a indiferença explícita no crescente fortalecimento do sistema neoliberal que, em função do capitalismo, historicamente tenta exterminar as possibilidades de justiça, manipulando as relações humanas nas várias dimensões da vida, corrompendo a alma e o corpo dos pobres, gerando atos de violência, de corrupção no seu subalterno sistema político, de exploração sexual de crianças e adolescentes, de drogadição, atentados homofóbicos, de intolerância religiosa, no desrespeito ao meio ambiente e tantos outros desatinos. Uma realidade em estado crescente que cada vez mais finca suas raízes no mesmo solo onde os cristãos julgam também semear a boa nova do Reino. Não se trata do joio e do trigo crescendo juntos. Neste caso, trata-se dos sérios problemas dos semeadores do Reino.
Pecado, céu, inferno, Deus, satanás, vida, morte, conversão e tantas outras palavras de ordem que normalmente compõem os discursos da quaresma, devem ter de fato, um sentido profundo para serem aplicados com um revestimento de ousadia e de coragem profética, capaz de atingir aqui, nesta terra, a essência da maldade maior que impera no seio da sociedade. Neste sentido, erra feio quem usa a Palavra apenas para condenar os pobres utilizando o falso moralismo e um discurso unilateral, que em muitos casos servem meramente para acalantar os perversos e subjugar os que são vítimas da maldade maior. E aqui, refiro-me aos políticos corruptos, empresários inescrupulosos, latifundiários e grileiros das terras dos pobres que sob as nossas narinas, deitam e rolam promovendo a injustiça e a morte. A cultura faraônica dos ímpios
O período quaresmal deve provocar também conversão pastoral. Suscitar novas práticas pastorais almejando o abandono dos velhos discursos sem ressonância, e de certos vícios hereditários, hoje, sem efeitos algum perante a maldade moderna institucionalizada do sistema. A conversão pastoral sugere às Igrejas, um amplo olhar das realidades temporais, mudanças orgânicas e estruturais para que, o tão falado “ardor missionário” aconteça e a quaresma não se perpetue nas velhas ideias e práticas do século medieval. Caso contrário, nas próximas quaresmas encontraremos no comércio, acessórios de autoflagelação como os cinturões de castidade ou então vendedores ambulantes de boletos bancários para pagamentos de pecados, compra de indulgências ou até mesmo um terreno nos céus.
Por Carlos Jardel dos Santos - Articulador Diocesano das CEBs e da Comissão Paroquial de Pastoral Social
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