“Hoje vivemos no Brasil uma epidemia de violência contra a população de rua. Parece que eles viraram o bode expiatório ou que, ao atingi-los, as pessoas estão fazendo um bem, tirando dos nossos olhos aquilo que nos incomoda”, constata o Pe. Júlio Lancelotti, vigário episcopal do povo de rua da Arquidiocese de São Paulo. Segundo ele, a violência contra os moradores de rua tem se tornado comum e demonstram a “incompetência da sociedade, do Estado e das comunidades de acolher e dar um encaminhamento a essas pessoas”.
Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line (publicação do Instituto Humanitas Unisinos), Lancellotti destaca que as políticas públicas elaboradas para transformar a condição de vida dos moradores de rua precisam fazer parte de um processo socioeducativo, pois “não existe solução imediata como internação compulsória, ações higenistas de limpeza da cidade” para resolver a questão. Apenas na cidade de São Paulo, informa, existem aproximadamente “13 mil pessoas [que] vivem em situação de rua”. E reitera: “Quem está na rua teve um caminho para chegar lá e agora precisa de um caminho para sair de lá com suas próprias pernas”.
Júlio Renato Lancellotti é formado em Pedagogia e Teologia, foi professor primário, professor universitário, membro da Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo e há mais de dez anos é o vigário episcopal do povo de rua. É pároco da Igreja São Miguel Arcanjo, na Mooca, zona leste de São Paulo.
Confira a entrevista.
O que leva as pessoas a se tornarem moradoras de rua?
Júlio Lancellotti – As causas não são fáceis de serem conhecidas e não há uma única causa. Cada pessoa é um mistério que precisamos conhecer. Só vamos conhecer uma pessoa quando convivermos com ela. Se as pessoas não convivem com o morador de rua, não é possível saber a causa que o levou a morar na rua. De todo modo, não é a causa sabida que imediatamente muda a situação. Ao conhecer as pessoas, percebemos que elas passaram a morar na rua porque tiveram perdas sucessivas, frustrações, desilusões muito fortes, situações econômicas difíceis, e até problemas de saúde mental, ou seja, uma série de situações que desumaniza a vida. E a vida fica tão desumanizada que as pessoas acabam abandonadas.
Para os moradores de rua, o fato de estar na rua significa que ninguém quis conviver com eles, ninguém soube socorrê-los e, portanto, estão expostos para que todos os vejam.
Por que muitas vezes os moradores de rua são agredidos e como eles reagem? Quais são as razões dessa violência e por que esses casos são abordados de maneira sutil pela mídia brasileira?
Júlio Lancellotti – A população de rua vive num anonimato: muitas vezes as pessoas veem o morador de rua, mas sequer sabem o seu nome. Ninguém se aproxima dele para saber qual é sua situação. É preciso saber quem são essas pessoas, por que elas vivem uma situação de exposição absoluta.
Pela fragilidade, ou às vezes pela agressividade, são agredidas até de maneira letal. Hoje vivemos no Brasil uma epidemia de violência contra a população de rua. Parece que eles viraram o bode expiatório ou que, ao atingi-los, as pessoas estão fazendo um bem, tirando dos nossos olhos aquilo que nos incomoda. Atingir os moradores de rua é um ato que se está tornando comum, mas que demonstra a incompetência da sociedade, do Estado e das comunidades de acolher e dar um encaminhamento a essas pessoas. Há um higienismo embutido em nós, porque não queremos ver aqueles que nos questionam e demonstram o quanto somos frágeis.
É possível estimar quantas pessoas vivem nas ruas atualmente? É possível traçar um perfil dos moradores de rua do Brasil? O uso de drogas favorece a vida nas ruas?
Júlio Lancellotti – A questão das drogas é um dilema: a pessoa usa drogas porque está na rua ou está na rua porque usa drogas? Essa é uma equação que ainda não podemos afirmar com clareza: as duas respostas são possíveis. Muitas vezes não há como sobreviver na rua sem ser envolvido pela questão das drogas.
Em São Paulo, atualmente mais de 13 mil pessoas vivem em situação de rua, número que é mais elevado do que a população de muitos municípios brasileiros. Um levantamento recente fez uma contagem do número de moradores de rua nas cidades com mais de 300 mil habitantes; viu-se que se pode elevar esse número para mais de 30 mil somente nas cidades que têm esse número populacional, sem considerar São Paulo e cidades maiores, que têm um censo próprio.
A articulação entre o movimento nacional da população em situação de rua, do trabalho da pastoral de rua nacional e outros grupos, conseguiu que no próximo censo o IBGE faça também a contagem da população de rua porque até então isso não era feito. Já estão sendo feitas pesquisas e levantamentos para isso, porque não basta somente contar o número de pessoas que vivem nas ruas, mas é preciso fazer pesquisas para averiguar questões qualitativas.
Quais são hoje as políticas públicas destinadas aos moradores de rua? Como o senhor avalia as políticas públicas para moradores de rua?
Júlio Lancellotti – Hoje, existe uma política pública nacional para a população em situação de rua. Essa política pública instituída pela presidência da República tem que ser seguida. O morador de rua é o elo mais frágil e mostra como nós ainda não somos capazes de chegar a todas as pessoas e o quanto nós ainda temos que aprender com eles para construir conjuntamente as respostas que dignifiquem a vida.
A política pública prevê o trabalho intersetorial, ligando a questão da saúde, do trabalho, moradia, educação, do acolhimento destas pessoas. Hoje existe o Centro de Atenção Especial de Assistência Social– CREAS, que atende pessoas em situação de rua. As cidades de menor porte têm mais possibilidades de atender a essas pessoas, devido às políticas de assistência social, moradia, aluguel social, repúblicas terapêuticas, trabalhos ligados à saúde mental. Também há possibilidade mais fácil em acolher essas pessoas em pequenos grupos, de ter atividades produtivas, frentes de trabalho, cotas de trabalho para que elas sejam empregadas etc. Esse é um trabalho que já está com suas diretrizes estabelecidas nesta política nacional da população de rua e precisa ser assumida pelos estados e municípios.
Quais são as maiores dificuldades enfrentadas pelos moradores de rua?
Júlio Lancellotti – O desprezo, a invisibilidade, o não levar em conta a indiferença, a ausência de políticas públicas que não o tenham como clientes, mas como uma pessoa sujeita de direitos que deve ser respeitado. Falta um trabalho para lidar com essa questão como um processo socioeducativo. Não existe solução imediata como internação compulsória, ações higenistas de limpeza da cidade. É preciso trabalhar com eles, formar comunidades. O que existe é uma vontade muito rápida de resolver o problema, não levando em conta que quem está na rua teve um caminho para chegar lá e agora precisa de um caminho para sair de lá com suas próprias pernas.
Como o senhor vê o contraste existente entre vários prédios públicos e privados abandonados e o alto índice de moradores de rua? O que dificulta a habitação desses locais?
Júlio Lancellotti – Poderia haver locação social e a inclusão da população de rua em programas habitacionais. É um escândalo ter prédios públicos e privados abandonados. Isso atenta aos direitos fundamentais da pessoa humana: toda a pessoa precisa ter um local para viver, um local para descansar, para fazer sua alimentação, para viver a sua vida. Ter prédios vazios só serve para especulação imobiliária.
Qual é o conceito de dignidade que os moradores de rua têm?
Júlio Lancellotti – Eles não querem ser humilhados; querem ser tratados com dignidade. Precisam de alguém que seja capaz de dar a mão e olhar nos olhos, saber o seu nome, conversar com eles sem asco, estar ao seu lado. Precisam ter um lugar digno para deitar e descansar o corpo, ter uma assistência que cuide de suas feridas e dos sofrimentos, que saiba que eles também têm sonhos e pesadelos, que eles também dançam e festejam, buscam companhia, que eles querem ter alguém que converse com eles sem ter pressa, sem estar preenchendo apenas uma ficha. De alguém que olhe para eles e os vejam como seres humanos e não uma coisa, um objeto ou um número.
O que os moradores de rua lhe ensinaram nesse tempo de caminhada? Na sua experiência de vida, o que mais aprendeu com eles?
Júlio Lancellotti – Muitas coisas, entre elas que ninguém está livre de viver esta situação. Há pessoas das mais diferentes classes sociais que estão pelas ruas das cidades do Brasil. Eles nos ensinam a ser mais humildes, a viver do essencial, a não buscar o supérfluo e nem a acumulação. Eles ensinam que o pão dividido tem gosto de amor.
O morador de rua não pode ser tratado como lixo. Deve ser tratado como pessoa, ter a sua dignidade respeitada. É preciso ter coragem para amá-los.
Fonte: IHU
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