quarta-feira, 30 de março de 2011

Interpretação feminista do relato da criação

As teólogas feministas nos despertaram para traços antifeministas no atual relato da criação de Eva (Gn 1,18-25) e da queda original (Gn 3,1-19), o que veio reforçar na cultura o preconceito contra as mulheres. Consoante este relato, a mulher é formada da costela de Adão que, ao vê-la, exclama: "eis os ossos de meus ossos, a carne de minha carne; chamar-se-á varoa (hebraico: ishá) porque foi tirada do varão (ish); por isso o varão deixará pai e mãe para se unir a sua varoa: e os dois serão uma só carne"(2,23-25).

O sentido originário visava mostrar a unidade homem/mulher. Mas, a anterioridade de Adão e a formação a partir de sua costela foi, porém, interpretada como superioridade masculina. O relato da queda soa também antifeminista: "Viu, pois, a mulher que o fruto daquela árvore era bom para comer..tomou do fruto e o comeu; deu-o também a seu marido e comeu; imediatamente se lhes abriram os olhos e se deram conta de que estavam nus"(Gn 3,6-7).

Interpreta-se a mulher como sexo fraco, pois foi ela que caiu na tentação e, a partir daí, seduziu o homem. Eis a razão de seu submetimento histórico, agora ideologicamente justificado: "estarás sob o poder de teu marido e ele te dominará"(Gn 3,16).

Há uma leitura mais radical, apresentada por duas teólogas feministas, entre outras: Riane Eisler (Sacred Pleasure, Sex Myth and the Politics of the Body,1995) e Françoise Gange (Les dieux menteurs 1997) que aqui resumo. Estas autoras partem do dado histórico de que houve uma era matriarcal anterior à patriarcal. Segundo elas, o relato do pecado original seria introduzido no interesse do patriarcado como uma peça de culpabilização das mulheres para arrebatar-lhes o poder e consolidar o domínio do homem. Os ritos e os símbolos sagrados do matriarcado teriam sido diabolizados e retroprojetados às origens na forma de um relato primordial, com a intenção de apagar totalmente os traços do relato feminino anterior. O atual relato do pecado original coloca em xeque os quatro símbolos fundamentais do matriarcado.

O primeiro símbolo atacado é a mulher em si que na cultura matriarcal representava o sexo sagrado, gerador de vida. Como tal ela simbolizava a Grande-Mãe. Agora é feita a grande sedutora.

No segundo, desconstrói-se o símbolo da serpente que representava a sabedoria divina que se renovava sempre como se renova a pele da serpente.

No terceiro, desfigura-se a árvore da vida, tida como um dos símbolos principais da vida, gestada pelas mulheres, agora colocada sob o interdito: "não comais nem toqueis de seu fruto" (3,3).

No quarto, se distorce o caráter simbólico da sexualidade, tida como sagrada, pois permitia o acesso ao êxtase e ao conhecimento místico, representada pela relação homem-mulher.

Ora, o que faz o atual relato do pecado original? Inverte totalmente o sentido profundo e verdadeiro desses símbolos. Desacraliza-os, diaboliza-os e transforma o que era bênção em maldição.

A mulher é eternamente maldita, feita um ser inferior, sedutora do homem que "a dominará" (Gen 3,16). O poder de dar a vida será realizado entre dores (Gn 3,16).

A serpente será maldita, feita inimigo fidagal da mulher que lhe ferirá a cabeça mas que será mordida no calcanhar (Gn 3,15).

A árvore da vida e da sabedoria cai sob o signo do interdito. Antes, na cultura matriarcal, comer da árvore da vida era se imbuir de sabedoria. Agora comer dela significa perigo letal (Gn 3,3).

O laço sagrado entre o homem e a mulher é substituído pelo laço matrimonial, ocupando o homem o lugar de chefe e a mulher de dominada (Gn 3,16).

Aqui se operou uma desconstrução profunda do relato anterior, feminino e sacral. Hoje todos somos, bem ou mal, reféns do relato adâmico, antifeminista e culpabilizador como está no Gênesis.

Por que escrever sobre isso? É para reforçar o trabalho das teólogas feministas que nos apontam quão profundas são as raízes da dominação das mulheres. Ao resgatarem o relato mais arcaico, feminista, elas visam propor uma alternativa mais originária e positiva na qual apareça uma relação nova com a vida, com os gêneros, com o poder, com o sagrado e com a sexualidade.


Leonardo Boff

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