Leonardo Boff ficou conhecido em todo o mundo em razão das censuras que sofreu da Igreja, com as punições que foram do afastamento das funções de professor e editor de instituições católicas ao silêncio. Cumpriu as determinações do Vaticano, em processo conduzido à época pelo então cardeal Ratzinger, atual papa Bento XVI. Novamente vítima de censura em razão de suas ideias, preferiu deixar a Igreja e seguir como teólogo e filósofo independente. No coração da discordância com a hierarquia católica estava a teologia da libertação, da qual foi um dos criadores e expoente teórico.
O livro Cristianismo libertador – Religião e política em Leonardo Boff, que será lançado hoje em Belo Horizonte, tem como propósito estudar a articulação entre fé e política na obra do pensador brasileiro. Resultado de dissertação de mestrado do autor junto à Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), o livro é um estudo detido da vasta produção teórica de Leonardo Boff, sobretudo no período de gênese do pensamento que está na base da teologia da libertação, a partir de textos publicados entre 1971 e 1990.
A escolha do período se justifica a partir da análise da evolução do pensamento de Boff. De 1963 a 1974, o teólogo publica artigos e livros influenciados pelo pensamento europeu, principalmente alemão, em razão de seus estudos de doutorado naquele país. O tema da libertação, que será o cerne da fase posterior, com sua perspectiva assumidamente sociopolítica, ocupa a parte principal de sua obra nos anos 1970, 80 e 90, que viria a dar origem ao cristianismo libertador, que propõe novo papel para a religião e a Igreja no contexto latino-americano e brasileiro. A terceira fase (que fica fora da abrangência do livro) incorpora o paradigma ecológico “como cosmovisão holística de todas as questões, inclusive libertadoras”.
O estudo de Rodrigo Marcos de Jesus se divide em três capítulos. No primeiro, “Do desenvolvimento à libertação: emergência de uma nova consciência”, o autor analisa o surgimento da ideia de libertação no pensamento brasileiro. Para isso, traça um quadro histórico dos anos 1950-60, quando a noção de desenvolvimento ocupava a posição central na reflexão nacional. O interesse é marcar o momento de passagem da ideia-força de desenvolvimento para a de libertação, a partir da análise das obras de Álvaro Vieira Pinto, Henrique Lima Vaz e Paulo Freire.
O segundo capítulo, “Concepção filosófico-teológica de Deus: a transparência do mundo”, chega ao pensamento de Leonardo Boff. A preocupação de Rodrigo Marcos é compreender a concepção de Deus na obra de Boff a partir do que define como uma forma de “pensar sacramental”. Trata-se do momento mais teórico da obra do teólogo e filósofo, que busca fundamentar sua reflexão em vários campos do saber, na busca da compreensão de Deus e de sua relação com o mundo. Nesse momento, o autor estuda as várias formas como se dá esse relacionamento, seja no campo lógico e histórico, no âmbito da tecnociência e, finalmente, na compreensão da relação entre Deus e mundo no horizonte da América Latina.
O terceiro momento do livro, “Religião no cristianismo libertador: a fé como crítica e inspiração”, apresenta a tese central, analisando de que forma a relação entre fé e política se constrói na Igreja Católica, a partir da visão de Leonardo Boff. Nesse momento, o autor torna explícita sua leitura da dimensão ética e política do cristianismo libertador, com suas implicações no campo da história e da política. Neste contexto, cabe a análise da instituição Igreja, em meio ao dilema do compromisso com a libertação em cenário de opressão (como vivido na América Latina). A reflexão de Leonardo Boff, mesmo nos momentos mais estritamente políticos, é sempre sustentada por um pensamento profundo, que vai da antropologia à ética, dando substância e vitalidade a seu pensamento.
Submundo
A reflexão sobre a Igreja, um dos pontos mais polêmicos da intervenção teológica do pensador, também ganha destaque ao final do estudo, na proposta que concretiza a abstração da instituição em instrumento real de libertação. Para Boff, a compreensão do que seja Igreja deve ser “referido à práxis histórica, a partir do contexto conflitivo social, político e cultural”. O teólogo, depois de acompanhar vários modelos (Igreja que se identifica com o mundo; Igreja que se separa do mundo; Igreja que se insere no mundo), defende a emergência de um novo patamar, a Igreja que está dentro do submundo. “A partir do lugar social do pobre se percebe a necessidade de mudança estrutural da sociedade.” É este modelo de Igreja, seguindo o exemplo de Jesus e com missão profética e libertadora, que vai colaborar com a mudança das relações de opressão. Essa seria a grande originalidade da Igreja latino-americana, que realizaria os princípios filosóficos da teologia da libertação.
Na conclusão, Rodrigo Marcos, depois de buscar a perspectiva da síntese entre libertação e salvação no projeto de Leonardo Boff, com sua dimensão ao mesmo tempo teológica, filosófica e política, avança para a síntese unitária. “Rimar ‘pai-nosso’ com ‘pão nosso’, oração com ação, constitui uma das características desse cristianismo de libertação, que buscou extrair de seu próprio arcabouço simbólico as motivações últimas de sua crítica e de sua utopia social e religiosa. Aqui não cabem dicotomias: céu ou terra, sagrado ou profano, fé e política. A história é una, a vida não está compartimentada em espaços estanques e incomunicáveis.” Para o cristianismo libertador, a política brota da fé.
O trabalho de Rodrigo Marcos conta ainda com dois anexos úteis para a leitura e estudo da obra de Leonardo Boff. No primeiro, apresenta um glossário para termos que se ligam mais aos estudos teológicos e que por isso podem soar técnicos ao leitor que não é da área, como cristianismo sociológico, Deus inversus, eclesiogênese, libertação, paradigma epistemológico-ontológico e pericorese, entre outros. O segundo anexo reproduz entrevista concedida por Leonardo Boff ao autor, tratando de temas como o problema do mal, o personalismo filosófico e a articulação entre a cristologia histórica e a cristologia cósmica, sob o olhar da dimensão libertadora.
O livro de Rodrigo Marcos de Jesus tem, entre outros méritos acadêmicos, a ampliação de um debate religioso para a história das ideias e da filosofia no Brasil, incorporando a problemática de Leonardo Boff no caminhar nacional em busca de um saber próprio, construído com elementos do nosso tempo e da nossa história intelectual e política.
Cristianismo libertador – Religião e política em Leonardo Boff
De Rodrigo Marcos de Jesus
Editora Loyola, 214 páginas, R$ 26
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