A vergonha da fome
Entrevista a Pe. Martinho Lenz: A vergonha da fome
REVISTA MISSÕES
MISÉRIA E FOME têm solução. O padre Martinho Lenz, secretário-executivo do Mutirão para Superação da Miséria e da Fome, organizado pela CNBB, dá pistas deste caminho.
O Brasil que recebeu o papa Bento XVI e foi sede da V Conferência do CELAM e Caribe é o maior país católico do mundo. Ao mesmo tempo, aparece como um campeão da desigualdade social, título que envergonha e desafia a fé do católico consciente. Longe das preocupações com a perda de fiéis para outras denominações, setores da Igreja Católica pedem mais atenção ao mandamento novo de Jesus: "amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos... " (Jo 13, 34-35). É questão de credibilidade.
Nessa linha, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil criou o Mutirão para a Superação da Miséria e da Fome que foi aprovado na sua 40ª Assembléia Geral, em abril de 2002 (Doc. 69 da CNBB), e lançado em todo país na festa de Corpus Christi daquele ano. É uma iniciativa de caráter ecumênico, em colaboração com outras entidades da sociedade civil e de governos. O Mutirão quer dar uma resposta ao imperativo do Evangelho: "Dai-lhes vós mesmos de comer" (Mc 6, 37); e "eu tive fome e me destes de comer" (Mt 25, 35). Fundamento ético é a afirmação da alimentação adequada como um direito humano básico. Para o padre Martinho Lenz, 68, catarinense, sacerdote jesuíta, a miséria e a fome têm solução. Com doutorado em Sociologia pela Universidade Gregoriana de Roma, o nosso entrevistado é assessor da CNBB, como secretário-executivo do Mutirão.
Padre Martinho, por que um Mutirão para a superação da miséria e da fome?
O motivo foi a indignação de um bom número de bispos, inconformados com o escândalo de um Brasil rico em recursos naturais e gente de valor, com milhões de pessoas vivendo na mais triste miséria. Saber que a fome e a desnutrição têm solução, mas que a solução não ocorre por falta de decisão política e de organização do povo. Em resposta a essa inquietação, a Conferência dos Bispos do Brasil, comemorando seus 50 anos de existência em 2002, resolveu marcar essa data lançando um Mutirão para superar a fome e a miséria. O Mutirão foi assumido pelas Diretrizes Gerais da CNBB (2003-2007) e pelo Projeto Nacional de Evangelização - Queremos Ver Jesus: Caminho, Verdade e Vida (2004-2007).
Qual o principal objetivo do Mutirão?
Ele é uma forma de mobilização local, uma convocação para agir. Nosso objetivo maior é resgatar a dignidade vilipendiada de pessoas que passam fome crônica ou que se alimentam no lixo dos outros. O objetivo do mutirão é provocar uma grande mudança de mentalidade. Não dá para continuar desperdiçando, quando há gente passando fome.
Quais as ações que o Mutirão desenvolve no momento? Quais os resultados?
Atualmente, o Mutirão leva adiante um programa de Seminários Regionais. Em março e abril deste ano realizamos três Seminários: em Cuiabá, na Maranhão e em Manaus. Nesses Seminários, que reúnem umas 50 ou 60 pessoas, se realizam oficinas mostrando experiências bem sucedidas na região. Chamamos as entidades do governo que trabalham no combate à fome para conhecer seus programas e saber deles como a sociedade pode se valer dessas políticas e como pode colaborar. E ainda cultivamos a mística do Mutirão, que é o espírito do bom samaritano, que não fica apenas nas boas intenções.
Acha que a humanidade se habituou a aceitar a fome como mal inevitável?
O drama da fome é um drama oculto. A pessoa faminta sofre um estigma e por isso, esconde sua fome. A pessoa é vista como um preguiçoso, como um incompetente. E, na maior parte dos casos, isto não é verdade. A pobreza é produzida por políticas econômicas desastrosas, pela corrupção e pela ganância desmedida de uns poucos.
Como conciliar políticas públicas de segurança alimentar e distribuição de alimentos, com geração de renda e trabalho?
Políticas de assistência social são necessárias, porque o alimento é um direito e quem tem fome, tem pressa. Mas é preciso ensinar a pescar e cuidar que haja peixe no rio. Por outro lado, é preciso estimular as pessoas a buscarem saídas, a acreditar. Paulo Freire nos anima a exercer a pedagogia dos sonhos possíveis, a fazer o povo acreditar em si, a unir-se e aprender as boas experiências que já estão acontecendo. Um levantamento feito pela Cáritas Brasileira mostrou a existência de 15.000 empreendimentos de economia solidária, de cooperativa de artesãos à produção de alimentos e à reciclagem do lixo.
Que avaliação o senhor faz do Programa Fome Zero implementado pelo governo Lula?
Esse programa tem o mérito de colocar o combate à fome na agenda política. Um sucesso é o Bolsa-Família, que hoje assegura a 11,1 milhões de famílias um mínimo de renda para poder garantir o pão de cada dia. Mas, o que anda devagar são os programas estruturais, que visam tirar o povo da pobreza extrema e da dependência. Às vezes é por falta de recursos ou por falta de cooperação entre estados e municípios. Outras, pelo isolamento das elites, que não querem abrir mão de privilégios nem partilhar suas terras e outros bens. O vírus do egoísmo e do individualismo é um grande inimigo de soluções mais amplas.
A fome e a miséria têm alguma relação com a falta de uma reforma agrária eficaz e com a distribuição de renda no país?
Tem tudo a ver. Uma reforma agrária bem feita pode gerar trabalho e renda para milhares de famílias e garantir a segurança alimentar não só das próprias famílias dos agricultores, mas das populações locais e da região. O agricultor bem orientado e assistido é também um gerente da defesa do meio ambiente e da boa gestão do território. A renda no Brasil sofre uma concentração escandalosa e a diferença entre ricos e pobres em nosso país é uma das mais altas do mundo. Por que? Falta de uma política de educação de qualidade para todos, política de juros altos e de isenção dos lucros do capital especulativo. São exemplos de políticas que acentuam essa má distribuição de renda e de oportunidades.
Em julho acontece mais uma Conferência de Segurança Alimentar e Nutricional. O que o senhor espera desse evento?
O objetivo dessa III Conferência, que se realiza de 3 a 6 de julho em Fortaleza, é buscar mecanismos para pôr em prática a lei de Segurança Alimentar e Nutricional, que foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Lula em 15 de setembro de 2006. Prevê a construção de um Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) no Brasil. A fome será debelada no dia em que mudarmos de mentalidade e colocarmos como meta para o país o crescimento com justiça social, a produção com melhor distribuição de renda. A Igreja, com esse programa, quer contribuir para criar a vontade de mudar essa situação, com uma nova visão, baseada nos valores da partilha e da solidariedade e indo à frente com o bom exemplo. Recentemente lançamos um DVD, "Alimento dom de Deus, direito de todos", mostrando que uma outra economia e outra sociedade não só são possíveis, mas já estão acontecendo. Quero concluir citando o profeta Isaías. No capítulo 58 de seu livro, ele revela um caminho de felicidade na prática da solidariedade com o pobre e o faminto: "Se partilhas com o faminto o que mais gostas de comer, a tua luz brilhará..."(Is 58, 6).
(Publicado na Revista Missões, n.05 - Junho 2007): www.revistamissoes.org.br
Por Jaime Carlos Patias, imc
Mestre em Comunicação e diretor da revista Missões
quarta-feira, 14 de julho de 2010
A Propriedade e sua Função Social
A Propriedade e sua Função Social
Em breve síntese tentaremos resgatar os pontos centrais da doutrina católica sobre a propriedade e sua função social
por Pe. Martinho Lenz
"Não é o acaso que faz ricos e pobres, mas a rapina e a acumulação de riquezas"[1]. Essa frase de São João Crisóstomo, dentro da mais autêntica tradição da Igreja em relação à questão da propriedade, serve para introduzir-nos na questão da ética cristão relativa à propriedade. Desde logo nos damos conta que o assunto é polêmico. O ensino ético da Igreja nessa matéria surgiu da sua preocupação de orientar os fiéis no reto uso dos bens, face à tentação das riquezas, aos abusos praticados pelos ricos e poderosos, às desigualdades sociais e às imposições ou omissões de Estados e governos.
Em breve síntese tentaremos resgatar os pontos centrais da doutrina católica sobre a propriedade e sua função social, doutrina que foi adquirindo acentos novos, de acordo com os desafios de cada situação concreta, mas que surpreende pela constância e firmeza de seus princípios fundamentais. Depois apresentaremos alguns questionamentos e desafios que essa doutrina coloca na nossa realidade.
1. Algumas premissas
A economia foi feita para a pessoa humana e não a pessoa humana para a economia. Essa premissa básica é comum a todo o ensino social da Igreja e constitui uma advertência face ao equívoco de supor que a melhor ordem econômica é aquela que resulta do livre jogo das forças do mercado. Esse princípio afirma a pessoa humana como dotada de um valor incomparável, e de uma dignidade que se fundamenta na sua semelhança com Deus. Assim, pessoa alguma pode ser sacrificada às leis do mercado. As leis da economia não podem ser confundidas com os interesses dos que delas se servem para obter vantagens injustificáveis, concentrar renda e acumular bens. A não observância desse princípio leva a situações absurdas: em muitos processos de produção, a matéria agrega valor e se enobrece, enquanto a pessoa humana é explorada e sai embrutecida.
Outra premissa, ligada à anterior, é que o trabalho é (e deve ser) a principal via de acesso à propriedade e aos bens necessários à vida e ao bem-estar. O trabalho, adequadamente remunerado, deve proporcionar não só os meios para a subsistência do trabalhador, da trabalhadora e de sua família, mas possibilitar recursos para a seguridade social, a educação dos filhos e para a formação de um patrimônio familiar, por modesto que seja. A existência de um mercado financeiro globalizado, paralelo à economia real e em contraste com ela, sem falar dos ganhos ilícitos e das finanças ligadas a atividades ilegais ou criminosas, constituem graves desvios da economia moderna, desfigurando o verdadeiro sentido da propriedade.
2. Princípios básicos para uma ética da propriedade
a) A destinação universal dos bens
Esse princípio precede qualquer forma de propriedade ou distribuição concreta de bens. Deus é o Senhor último de toda criação. Todas as coisas foram por ele criadas e colocadas a serviço de todos. Ensina o Concílio Vaticano II: "Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para o uso de todos os homens e povos; de modo que os bens criados devem chegar eqüitativamente às mãos de todos, segundo a justiça, secundada pela caridade"[2]. Desse princípio geral decorre outro, enunciado por São Tomás de Aquino: "in necessitate sunt omnia communia", isto é, "em caso de necessidade, todas as coisas sãos comuns"[3]. De acordo com esse princípio, a doutrina da Igreja considera lícito a uma pessoa que passa fome de lançar mão de quanto ela precisa para se alimentar (no direito brasileiro, enquadra-se nessa situação o chamado "furto famélico"). Portanto, uma renda mínima (ou o "Bolsa Família" do Programa Fome Zero) concedida a uma pessoa pobre que não tem outra fonte de renda, não é um favor, mas um direito.
O direito da pessoas em extrema necessidade foi assim formulado pelo Concílio Vaticano II, na Constituição Pastoral Gaudium et Spes: "Aquele que se encontra em necessidade extrema tem o direito de procurar o necessário para si junto às riquezas dos outros" (GS, n. 69).
b) O direito de propriedade (privada)
É um poder de gestão de bens e de disposição sobre eles como próprios. Implica no direito ao uso ou desfrute dos mesmos bens, mas, conforme Santo Tomas, "quanto a isto [isto é, quanto ao desfrute] o homem não deve ter as coisas como próprias, mas como comuns, de modo que facilmente dê participação delas aos outros quando necessitam delas"[4]. Segundo a Encíclica Rerum Novarum (RN) - Sobre a Condição dos Operários, do Papa Leão XIII (1891), o direito de propriedade é um direito natural, na medida em que ajuda a garantir outros direitos do trabalhador, antes de tudo o direito à vida, o mais natural de todos os direitos.
O direito de propriedade é um direito natural, mas não absoluto. O direito de propriedade não deve tolher o direito à propriedade, isto é, o direito de alguns (ricos) não pode ser obstáculo a que muitos outros (pobres) acessem à propriedade. Nas palavras de Paulo VI, "não é lícito aumentar a riqueza dos ricos e o poder dos fortes, confirmando a miséria dos pobres e tornando maior a escravidão dos oprimidos"[5]. Por isso, a lei positiva deve regular a forma de acesso de todos aos diversos bens, combatendo a concentração da propriedade. Na questão da terra, a lei pode impor um limite ao tamanho da área de terra que um único dono pode possuir, para que um maior número de pessoas possa ter acesso à terra como meio de vida (um objetivo da Reforma Agrária).
c) A função social toda propriedade
A função social é inerente tanto aos bens de consumo quanto aos bens de produção. É legítima a apropriação privada de bens, desde que esses bens cumpram sua função pessoal e social. A propriedade tem primeiramente uma função pessoal: ajuda a criar um espaço para a afirmação da pessoa e de seus de direitos, para a garantia da liberdade, para o estímulo à operosidade.
Em relação aos bens de consumo, a função social nos diz que nada é tão meu que não possa ser também de outro. O direito de administrar um bem não significa que eu possa fruí-lo sem tomar os outros em consideração. Não posso destruir ou esbanjar um bem meu, só por eu ser o dono, quando esse bem faz falta a outros. O desperdício de alimentos é um abuso, agravado pelo fato de haver tantas pessoas passando fome. A função social de um bem de consumo impõe o dever de partilha com quem é necessitado. Essa partilha é obrigatória para os bens supérfluos (dever de justiça). Os antigos Padres da Igreja insistiam nesse ensino. Numa frase incisiva, S. Basílio afirma: "A terra foi dada a todos os homens. Ninguém considere próprio aquilo que está além do necessário e que foi tirado do acervo comum por meio da violência" [6].
Os bens de produção, mesmo quando apropriados privadamente, devem servir ao bem comum e nunca podem ser usados contra as pessoas. Um proprietário que deixa seus bens de produção ociosos, ou os administra mal, pode ser penalizado por isso. No limite, o Estado pode desapropriar esses bens, mediante indenização adequada à situação. Paulo VI, na Encíclica Populorum Progressio, diz que tais bens podem até ser expropriados, para servir ao bem comum.
d) O direito à iniciativa econômica
A responsabilidade básica para o desenvolvimento e produção dos bens necessários e úteis à vida é das pessoas, das comunidades, dos grupos empreendedores. O Estado exerce um papel supletivo no campo empresarial, embora também o Estado possa e às vezes deva possuir e administrar bens, para benefício comum. O doutrina social cristã sempre criticou a economia centralmente planejada, por conferir um poder demasiado a um ente impessoal, o Estado e aos que o controlam e por suprimir a iniciativa dos cidadãos e das entidades intermediárias (ferindo o princípio de subsidiariedade). Na Centesimus Annus, o Papa João II escreve:
"A Igreja reconhece o valor positivo do mercado e da empresa, mas indica ao mesmo tempo a necessidade de que estes estejam orientados para o bem comum. Ela reconhece também a legitimidade dos esforços dos trabalhadores por conseguirem o pleno respeito da sua dignidade e espaços maiores de participação na vida da empresa, de modo que eles, embora trabalhando em conjunto com outros e sob direção de outros, possam em certo sentido 'trabalhar por conta própria'[7], exercendo sua inteligência e liberdade"[8].
A doutrina social da Igreja favorece também a participação dos trabalhadores na gestão das empresas e nos lucros da mesma. Por outro lado, a Igreja incentiva a formação de cooperativas e de empresas de autogestão[9], por exemplo entre agricultores familiares, artesãos e trabalhadores por conta própria.
e) Função do Estado em relação à propriedade
Ao Estado cabe promover o bem comum, favorecer uma justa (re)distribuição dos bens e possibilitar a acesso à propriedade daqueles que não a tem. Mecanismos importantes são salários justos, um sistema equilibrado de tributos e impostos (que devem gravar mais sobre os mais ricos e menos sobre os mais pobres); a regulação da questão do salário justo e da previdência e assistência social; a realização de investimentos em saúde, educação, saneamento, segurança, cultura e bem-estar social; o incentivo aos investimentos produtivos, coibindo-se os abusos, como é a formação de monopólios e a especulação.
Escreve João Paulo II: "É tarefa do Estado prover à defesa e tutela de certos bens coletivos como o ambiente natural e o ambiente humano, cuja salvaguarda não pode ser garantida por simples mecanismos de mercado"[10]. Ao Estado cabe garantir a estabilidade institucional, jurídica e política, moeda estável e serviços públicos eficientes, de modo que, quem trabalha, se sinta estimulado a trabalhar com eficiência e honestidade. Escreve o Papa:
"A falta de segurança, acompanhada pela corrupção dos poderes públicos e pela difusão de fontes impróprias de enriquecimento e de lucros fáceis fundados em atividades ilegais ou puramente especulativas, é um dos obstáculos principais ao desenvolvimento e à ordem econômica"[11].
Referindo-se à distribuição desigual da propriedade, o próprio Concílio Vaticano II criticou a existência de "grandes e até vastíssimas propriedades rurais, fracamente cultivados ou deixados totalmente incultas com intentos especulativos, enquanto a maior parte do povo não tem terras ou apenas possui pequenas áreas", quando há urgência de aumentar a produção de alimentos e criar novas oportunidades de trabalho. Entre as reformas necessárias, o Concílio propõe "distribuir terras não suficientemente cultivadas àqueles que as possam tornar produtivas"[12].
f) Sistemas econômicos e a questão da propriedade
A Igreja critica fortemente ao comunismo e a socialização forçada de todos os bens de produção não só por sua ineficácia, mas por considerá-la injusta, isto é, por suprimir o direito à iniciativa dos cidadãos e das empresas e por promover um capitalismo de Estado. Também rejeita o comunismo por sua vinculação histórica com a materialismo e o ateísmo militante. Essas críticas muito contribuíram para a derrocada do socialismo real no Leste Europeu e na União Soviética.
Mas, por outro lado, sem rejeitar o sistema da economia de marcado, a Igreja critica severamente os abusos do capitalismo, sobretudo na sua versão neoliberal, pelos erros do consumismo, do materialismo prático, da exploração do trabalho e pelos desvios da globalização financeira, que provoca crises cambiais artificiais, que desestabilizam economias nacionais e possibilitam lucros exorbitantes em base à especulação.
g) Propriedade e a ordem internacional
O ensino social da Igreja advoga uma nova ordem econômica e social, fundada no respeito mútuo, no direito, na solidariedade e na cooperação entre as nações e com os organismos internacionais, especialmente do sistema da ONU. Defende a redução das desigualdades, o apoio ao desenvolvimento das nações do Terceiro Mundo, o perdão ou a redução das dívidas dos países pobres, relações comerciais mais justas, o combate ao terrorismo pela eliminação de suas causas e a promoção da paz e do entendimento entre os povos.
Para o terceiro milênio, João Paulo II propôs como grande meta a globalização da solidariedade, que ajude a enfrentar o atual cenário de exclusão social:
"O nosso mundo começa o novo milênio carregado com as contradições de um crescimento econômico, cultural e tecnológico que oferece a poucos afortunados grandes possibilidades e deixa milhões e milhões de pessoas não só à margem do progresso, mas a braços com condições de vida muito inferiores ao mínimo que é devido à dignidade humana. Como é possível que ainda haja, no nosso tempo, quem morra de fome, esteja condenado ao analfabetismo, quem viva privado dos cuidados médicos mais elementares, quem não tenha uma casa onde se abrigar?"[13].
A essas antigas pobrezas se acrescentam as novas, que atingem mesmo ambientes dotados de recursos, como a falta de sentido, a droga, a solidão na velhice e na doença, a marginalização e a discriminação social. Frente a esse cenário, o cristão deve aprender a decifrar o apelo que sua fé em Cristo lhe lança a partir do mundo da pobreza. Dando continuidade a uma tradição de serviço aos pobres, requer-se hoje uma nova capacidade inventiva, como nos lembra o Papa na mesma encíclica:
"É hora de uma nova fantasia da caridade, que se manifeste não só nem sobretudo na eficácia dos socorros prestados, mas na capacidade de pensar e ser solidário com quem sofre, de modo que o gesto de ajuda seja sentido, não como esmola humilhante, mas como partilha fraterna"[14].
3. Alguns questionamentos, a partir da doutrina social sobre a propriedade
Como levar essa doutrina, solidamente fundamentada, à prática efetiva dentro da nossa realidade? Que forças mobilizar para que ela se transforme em hábitos da população e em decisões de governo?
Começando por essa última questão, é preciso insistir em iniciativas que possam trazer mudanças efetivas, a médio e longo prazos. Assim, por exemplo, se o salário é a principal fonte de rendimentos para a maioria da população, não podemos conformar-nos com um salário mínimo que não cobre sequer as necessidades básicas no campo da alimentação. Não podemos aceitar a redução da massa salarial, que vem caindo nas últimas décadas, em benefício dos ganhos do capital industrial e financeiro. É preciso garantir que a reforma trabalhista, que está em discussão, não suprima justos direitos, mas facilite o acesso a um trabalho estável aos que hoje estão desempregados ou excluídos. Como incluir os que hoje vivem na informalidade, que corresponde aproximadamente a um terço da economia nacional?
Tema grave e sempre atual são as diversas formas de corrupção e apropriação indébita de recursos públicos por empresas, servidores, candidatos, políticos e partidos. Os escândalos que envolveram políticos de diversos partidos num esquema de pagamento de propinas e no financiamento das campanhas eleitorais com recursos de origem não declarada, requerem rigorosa apuração dos fatos, punição dos culpados, uma severa reforma política (com estabelecimento da fidelidade partidária, do financiamento público dos partidos) e, mas que tudo, uma profunda reforma de costumes e da moralidade pública.
É urgente que se tomem medidas legislativas que exonerem as pobres de impostos e taxas, sobretudo dos impostos indiretos. No outra ponta, se coloca a exigência de taxação das grandes fortunas e heranças. Proposta nesse sentido, apresentada por ocasião da reforma tributária, foi derrotada no Congresso. Por quê? Quem pode empenhar-se em reverter essa decisão?
Há necessidade de novos investimentos em áreas estratégicas do país, como infraestrutura, energia, saúde e educação. Não seria o caso de obrigar os bancos, que acumularam lucros fantásticos com as altas taxas de juros praticados no país (lucros eticamente injustificáveis) a constituírem um fundo compulsório para financiar tais investimentos? Porque não se dão passos nessa direção?
No setor da reforma agrária, as ações vão com uma lentidão preocupante. Será apenas devido à máquina burocrática pesada ou à escassez de recursos? Como dar agilidade à reforma agrária e agrícola, de que temos tanta necessidade? O agronegócio, dado como um grande gerador de divisas e ativador da economia, está atendendo às exigências da justiça social, da sustentabilidade e do equilíbrio ambiental? A atual regulamentação sobre os transgênicos atende aos reclamos da segurança alimentar, da saúde e de proteção contra o monopólio das sementes?
O combate à corrupção eleitoral certamente deu um grande passo à frente com a aplicação da Lei 9840. A aprovação da lei, fruto de iniciativa popular, foi resultado de muito trabalho de mobilização e acompanhamento por parte da Igreja e de entidades da sociedade civil. Como evitar retrocessos nesse campo? Que outros passos são necessários para combater a fraude, a corrupção e a malversação de recursos públicos, evitar a impunidade dos culpados e para fazer a auditoria da nossa dívida interna e externa?
No campo internacional, temos a falta de investimentos estáveis na luta contra a pobreza e a fome. Entre as Metas do Milênio até 2.015, estabelecidas pela ONU, está a redução pela metade do número de pessoas atingidas pela pobreza extrema e a desnutrição e a continuação dos esforços para responder aos desafios fixados na conferência de Monterrey e na Cúpula de Johannesburgo sobre o desenvolvimento sustentável. A proposta apresentada pelo Governo Brasileiro de criar um Fundo de Combate à Pobreza e à Fome teve o apoio do Secretário-Geral das Nações Unidas e de outros governantes. A 20 de setembro, em Nova York, na vésperas da sessão de abertura da 59ª Assembléia Geral da ONU, os líderes mundiais examinaram as conclusões do grupo de trabalho criado ad hoc, propondo formas de financiar e gerir esse fundo.
Além disso, é preciso somar esforços no sentido de articular um sistema multilateral de comércio justo, aumentar as inversões, combater a especulação financeira e aliviar a dívida externa dos países altamente endividados. Como o mundo encontrará forças para efetiva implantação dessas medidas?
4. Conclusão
A experiência tem mostrado que os ensinamentos da Igreja sobre a propriedade e outras dimensões da vida de um país se tornam eficazes à medida que seu povo e suas organizações tomarem conhecimento desses princípios, conscientizando-se de seus deveres e direitos e organizando-se para cumpri-los e fazer com que sejam respeitados. Daí a necessidade de continuar a difusão dessa doutrina social, de debatê-la e criar iniciativas cidadãs que impulsionem sua implementação.
A razão que torna necessária essa mobilização está no fato que, como escreveram os bispos do Brasil, no documento Exigências Evangélicas e Éticas de superação da Miséria e da Fome: "(...) só prevalecem na agenda da política social, os direitos respaldados pela consciência da cidadania e pela participação política de entidades e movimentos sociais organizados"[15].
Questões para debate:
1. Como combater o vício da apropriação privada da coisa pública?
2. Que medidas parecem eticamente mais recomendáveis para reduzir a desigualdade entre ricos e pobres no Brasil?
3. A atual política econômica do Brasil atende às exigências da doutrina social da Igreja em relação à propriedade? Porque sim ou porque não?
Bibliografia:
FATTORELLI CARNEIRO, Maria Lúcia, Auditoria da Dívida Externa: Questão de Soberania. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003.
PONTIFÍCIO CONSELHO "JUSTIÇA E PAZ", Compêndio da Doutrina Social. S. Paulo: Paulinas, 2005.
(Doutrina da Propriedade nos Santos Padres...)
[1] BAC: S. João Crisóstomo, Homilia sobre S. Mateus, p. 83.
[2] Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes (GS), 69
[3] S. Tomás, Summma Theologica, 2,2, q. 66, ad 7.
[4] Idem, 2, 2, 66, a.2.
[5] Paulo VI, Populorum Progressio (PP) - (Sobre o Desenvolvimento dos Povos), 1967, p. 33.
[6] Pierre Bigo e Fernando Bastos d´Ávila, Fé Cristã e Compromisso Social, p. 166)
[7] Cf. João Paulo II, Laborem Exercens (LE) - (Sobre o Trabalho Humano), 1981.
[8] João Paulo II, Centesimus Annus (CA) - (No Centenário da Rerum Novarum), n. 4, p. 166)
[8] Cf. João Paulo II, Laborem Exercens (LE) - (Sobre o Trabalho Humano 3.
[9] Cf. João XXIII, Mater et Magistra - MM (Sobre a Recente Evolução da Questão Social), 1961.
[10] CA, n. 40.
[11] CA, n. 48.
[12] GS, n. 71.
[13] João Paulo II, Novo Millennio Ineunte (NMI) - (No Início do Novo Milênio), 2001, n. 50.
[14] Idem, ibid.
[15] CNBB, Exigências Evangélicas e Éticas de Superação da Miséria e da Fome, Doc. 69, 2002, n. 52.
Em breve síntese tentaremos resgatar os pontos centrais da doutrina católica sobre a propriedade e sua função social
por Pe. Martinho Lenz
"Não é o acaso que faz ricos e pobres, mas a rapina e a acumulação de riquezas"[1]. Essa frase de São João Crisóstomo, dentro da mais autêntica tradição da Igreja em relação à questão da propriedade, serve para introduzir-nos na questão da ética cristão relativa à propriedade. Desde logo nos damos conta que o assunto é polêmico. O ensino ético da Igreja nessa matéria surgiu da sua preocupação de orientar os fiéis no reto uso dos bens, face à tentação das riquezas, aos abusos praticados pelos ricos e poderosos, às desigualdades sociais e às imposições ou omissões de Estados e governos.
Em breve síntese tentaremos resgatar os pontos centrais da doutrina católica sobre a propriedade e sua função social, doutrina que foi adquirindo acentos novos, de acordo com os desafios de cada situação concreta, mas que surpreende pela constância e firmeza de seus princípios fundamentais. Depois apresentaremos alguns questionamentos e desafios que essa doutrina coloca na nossa realidade.
1. Algumas premissas
A economia foi feita para a pessoa humana e não a pessoa humana para a economia. Essa premissa básica é comum a todo o ensino social da Igreja e constitui uma advertência face ao equívoco de supor que a melhor ordem econômica é aquela que resulta do livre jogo das forças do mercado. Esse princípio afirma a pessoa humana como dotada de um valor incomparável, e de uma dignidade que se fundamenta na sua semelhança com Deus. Assim, pessoa alguma pode ser sacrificada às leis do mercado. As leis da economia não podem ser confundidas com os interesses dos que delas se servem para obter vantagens injustificáveis, concentrar renda e acumular bens. A não observância desse princípio leva a situações absurdas: em muitos processos de produção, a matéria agrega valor e se enobrece, enquanto a pessoa humana é explorada e sai embrutecida.
Outra premissa, ligada à anterior, é que o trabalho é (e deve ser) a principal via de acesso à propriedade e aos bens necessários à vida e ao bem-estar. O trabalho, adequadamente remunerado, deve proporcionar não só os meios para a subsistência do trabalhador, da trabalhadora e de sua família, mas possibilitar recursos para a seguridade social, a educação dos filhos e para a formação de um patrimônio familiar, por modesto que seja. A existência de um mercado financeiro globalizado, paralelo à economia real e em contraste com ela, sem falar dos ganhos ilícitos e das finanças ligadas a atividades ilegais ou criminosas, constituem graves desvios da economia moderna, desfigurando o verdadeiro sentido da propriedade.
2. Princípios básicos para uma ética da propriedade
a) A destinação universal dos bens
Esse princípio precede qualquer forma de propriedade ou distribuição concreta de bens. Deus é o Senhor último de toda criação. Todas as coisas foram por ele criadas e colocadas a serviço de todos. Ensina o Concílio Vaticano II: "Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para o uso de todos os homens e povos; de modo que os bens criados devem chegar eqüitativamente às mãos de todos, segundo a justiça, secundada pela caridade"[2]. Desse princípio geral decorre outro, enunciado por São Tomás de Aquino: "in necessitate sunt omnia communia", isto é, "em caso de necessidade, todas as coisas sãos comuns"[3]. De acordo com esse princípio, a doutrina da Igreja considera lícito a uma pessoa que passa fome de lançar mão de quanto ela precisa para se alimentar (no direito brasileiro, enquadra-se nessa situação o chamado "furto famélico"). Portanto, uma renda mínima (ou o "Bolsa Família" do Programa Fome Zero) concedida a uma pessoa pobre que não tem outra fonte de renda, não é um favor, mas um direito.
O direito da pessoas em extrema necessidade foi assim formulado pelo Concílio Vaticano II, na Constituição Pastoral Gaudium et Spes: "Aquele que se encontra em necessidade extrema tem o direito de procurar o necessário para si junto às riquezas dos outros" (GS, n. 69).
b) O direito de propriedade (privada)
É um poder de gestão de bens e de disposição sobre eles como próprios. Implica no direito ao uso ou desfrute dos mesmos bens, mas, conforme Santo Tomas, "quanto a isto [isto é, quanto ao desfrute] o homem não deve ter as coisas como próprias, mas como comuns, de modo que facilmente dê participação delas aos outros quando necessitam delas"[4]. Segundo a Encíclica Rerum Novarum (RN) - Sobre a Condição dos Operários, do Papa Leão XIII (1891), o direito de propriedade é um direito natural, na medida em que ajuda a garantir outros direitos do trabalhador, antes de tudo o direito à vida, o mais natural de todos os direitos.
O direito de propriedade é um direito natural, mas não absoluto. O direito de propriedade não deve tolher o direito à propriedade, isto é, o direito de alguns (ricos) não pode ser obstáculo a que muitos outros (pobres) acessem à propriedade. Nas palavras de Paulo VI, "não é lícito aumentar a riqueza dos ricos e o poder dos fortes, confirmando a miséria dos pobres e tornando maior a escravidão dos oprimidos"[5]. Por isso, a lei positiva deve regular a forma de acesso de todos aos diversos bens, combatendo a concentração da propriedade. Na questão da terra, a lei pode impor um limite ao tamanho da área de terra que um único dono pode possuir, para que um maior número de pessoas possa ter acesso à terra como meio de vida (um objetivo da Reforma Agrária).
c) A função social toda propriedade
A função social é inerente tanto aos bens de consumo quanto aos bens de produção. É legítima a apropriação privada de bens, desde que esses bens cumpram sua função pessoal e social. A propriedade tem primeiramente uma função pessoal: ajuda a criar um espaço para a afirmação da pessoa e de seus de direitos, para a garantia da liberdade, para o estímulo à operosidade.
Em relação aos bens de consumo, a função social nos diz que nada é tão meu que não possa ser também de outro. O direito de administrar um bem não significa que eu possa fruí-lo sem tomar os outros em consideração. Não posso destruir ou esbanjar um bem meu, só por eu ser o dono, quando esse bem faz falta a outros. O desperdício de alimentos é um abuso, agravado pelo fato de haver tantas pessoas passando fome. A função social de um bem de consumo impõe o dever de partilha com quem é necessitado. Essa partilha é obrigatória para os bens supérfluos (dever de justiça). Os antigos Padres da Igreja insistiam nesse ensino. Numa frase incisiva, S. Basílio afirma: "A terra foi dada a todos os homens. Ninguém considere próprio aquilo que está além do necessário e que foi tirado do acervo comum por meio da violência" [6].
Os bens de produção, mesmo quando apropriados privadamente, devem servir ao bem comum e nunca podem ser usados contra as pessoas. Um proprietário que deixa seus bens de produção ociosos, ou os administra mal, pode ser penalizado por isso. No limite, o Estado pode desapropriar esses bens, mediante indenização adequada à situação. Paulo VI, na Encíclica Populorum Progressio, diz que tais bens podem até ser expropriados, para servir ao bem comum.
d) O direito à iniciativa econômica
A responsabilidade básica para o desenvolvimento e produção dos bens necessários e úteis à vida é das pessoas, das comunidades, dos grupos empreendedores. O Estado exerce um papel supletivo no campo empresarial, embora também o Estado possa e às vezes deva possuir e administrar bens, para benefício comum. O doutrina social cristã sempre criticou a economia centralmente planejada, por conferir um poder demasiado a um ente impessoal, o Estado e aos que o controlam e por suprimir a iniciativa dos cidadãos e das entidades intermediárias (ferindo o princípio de subsidiariedade). Na Centesimus Annus, o Papa João II escreve:
"A Igreja reconhece o valor positivo do mercado e da empresa, mas indica ao mesmo tempo a necessidade de que estes estejam orientados para o bem comum. Ela reconhece também a legitimidade dos esforços dos trabalhadores por conseguirem o pleno respeito da sua dignidade e espaços maiores de participação na vida da empresa, de modo que eles, embora trabalhando em conjunto com outros e sob direção de outros, possam em certo sentido 'trabalhar por conta própria'[7], exercendo sua inteligência e liberdade"[8].
A doutrina social da Igreja favorece também a participação dos trabalhadores na gestão das empresas e nos lucros da mesma. Por outro lado, a Igreja incentiva a formação de cooperativas e de empresas de autogestão[9], por exemplo entre agricultores familiares, artesãos e trabalhadores por conta própria.
e) Função do Estado em relação à propriedade
Ao Estado cabe promover o bem comum, favorecer uma justa (re)distribuição dos bens e possibilitar a acesso à propriedade daqueles que não a tem. Mecanismos importantes são salários justos, um sistema equilibrado de tributos e impostos (que devem gravar mais sobre os mais ricos e menos sobre os mais pobres); a regulação da questão do salário justo e da previdência e assistência social; a realização de investimentos em saúde, educação, saneamento, segurança, cultura e bem-estar social; o incentivo aos investimentos produtivos, coibindo-se os abusos, como é a formação de monopólios e a especulação.
Escreve João Paulo II: "É tarefa do Estado prover à defesa e tutela de certos bens coletivos como o ambiente natural e o ambiente humano, cuja salvaguarda não pode ser garantida por simples mecanismos de mercado"[10]. Ao Estado cabe garantir a estabilidade institucional, jurídica e política, moeda estável e serviços públicos eficientes, de modo que, quem trabalha, se sinta estimulado a trabalhar com eficiência e honestidade. Escreve o Papa:
"A falta de segurança, acompanhada pela corrupção dos poderes públicos e pela difusão de fontes impróprias de enriquecimento e de lucros fáceis fundados em atividades ilegais ou puramente especulativas, é um dos obstáculos principais ao desenvolvimento e à ordem econômica"[11].
Referindo-se à distribuição desigual da propriedade, o próprio Concílio Vaticano II criticou a existência de "grandes e até vastíssimas propriedades rurais, fracamente cultivados ou deixados totalmente incultas com intentos especulativos, enquanto a maior parte do povo não tem terras ou apenas possui pequenas áreas", quando há urgência de aumentar a produção de alimentos e criar novas oportunidades de trabalho. Entre as reformas necessárias, o Concílio propõe "distribuir terras não suficientemente cultivadas àqueles que as possam tornar produtivas"[12].
f) Sistemas econômicos e a questão da propriedade
A Igreja critica fortemente ao comunismo e a socialização forçada de todos os bens de produção não só por sua ineficácia, mas por considerá-la injusta, isto é, por suprimir o direito à iniciativa dos cidadãos e das empresas e por promover um capitalismo de Estado. Também rejeita o comunismo por sua vinculação histórica com a materialismo e o ateísmo militante. Essas críticas muito contribuíram para a derrocada do socialismo real no Leste Europeu e na União Soviética.
Mas, por outro lado, sem rejeitar o sistema da economia de marcado, a Igreja critica severamente os abusos do capitalismo, sobretudo na sua versão neoliberal, pelos erros do consumismo, do materialismo prático, da exploração do trabalho e pelos desvios da globalização financeira, que provoca crises cambiais artificiais, que desestabilizam economias nacionais e possibilitam lucros exorbitantes em base à especulação.
g) Propriedade e a ordem internacional
O ensino social da Igreja advoga uma nova ordem econômica e social, fundada no respeito mútuo, no direito, na solidariedade e na cooperação entre as nações e com os organismos internacionais, especialmente do sistema da ONU. Defende a redução das desigualdades, o apoio ao desenvolvimento das nações do Terceiro Mundo, o perdão ou a redução das dívidas dos países pobres, relações comerciais mais justas, o combate ao terrorismo pela eliminação de suas causas e a promoção da paz e do entendimento entre os povos.
Para o terceiro milênio, João Paulo II propôs como grande meta a globalização da solidariedade, que ajude a enfrentar o atual cenário de exclusão social:
"O nosso mundo começa o novo milênio carregado com as contradições de um crescimento econômico, cultural e tecnológico que oferece a poucos afortunados grandes possibilidades e deixa milhões e milhões de pessoas não só à margem do progresso, mas a braços com condições de vida muito inferiores ao mínimo que é devido à dignidade humana. Como é possível que ainda haja, no nosso tempo, quem morra de fome, esteja condenado ao analfabetismo, quem viva privado dos cuidados médicos mais elementares, quem não tenha uma casa onde se abrigar?"[13].
A essas antigas pobrezas se acrescentam as novas, que atingem mesmo ambientes dotados de recursos, como a falta de sentido, a droga, a solidão na velhice e na doença, a marginalização e a discriminação social. Frente a esse cenário, o cristão deve aprender a decifrar o apelo que sua fé em Cristo lhe lança a partir do mundo da pobreza. Dando continuidade a uma tradição de serviço aos pobres, requer-se hoje uma nova capacidade inventiva, como nos lembra o Papa na mesma encíclica:
"É hora de uma nova fantasia da caridade, que se manifeste não só nem sobretudo na eficácia dos socorros prestados, mas na capacidade de pensar e ser solidário com quem sofre, de modo que o gesto de ajuda seja sentido, não como esmola humilhante, mas como partilha fraterna"[14].
3. Alguns questionamentos, a partir da doutrina social sobre a propriedade
Como levar essa doutrina, solidamente fundamentada, à prática efetiva dentro da nossa realidade? Que forças mobilizar para que ela se transforme em hábitos da população e em decisões de governo?
Começando por essa última questão, é preciso insistir em iniciativas que possam trazer mudanças efetivas, a médio e longo prazos. Assim, por exemplo, se o salário é a principal fonte de rendimentos para a maioria da população, não podemos conformar-nos com um salário mínimo que não cobre sequer as necessidades básicas no campo da alimentação. Não podemos aceitar a redução da massa salarial, que vem caindo nas últimas décadas, em benefício dos ganhos do capital industrial e financeiro. É preciso garantir que a reforma trabalhista, que está em discussão, não suprima justos direitos, mas facilite o acesso a um trabalho estável aos que hoje estão desempregados ou excluídos. Como incluir os que hoje vivem na informalidade, que corresponde aproximadamente a um terço da economia nacional?
Tema grave e sempre atual são as diversas formas de corrupção e apropriação indébita de recursos públicos por empresas, servidores, candidatos, políticos e partidos. Os escândalos que envolveram políticos de diversos partidos num esquema de pagamento de propinas e no financiamento das campanhas eleitorais com recursos de origem não declarada, requerem rigorosa apuração dos fatos, punição dos culpados, uma severa reforma política (com estabelecimento da fidelidade partidária, do financiamento público dos partidos) e, mas que tudo, uma profunda reforma de costumes e da moralidade pública.
É urgente que se tomem medidas legislativas que exonerem as pobres de impostos e taxas, sobretudo dos impostos indiretos. No outra ponta, se coloca a exigência de taxação das grandes fortunas e heranças. Proposta nesse sentido, apresentada por ocasião da reforma tributária, foi derrotada no Congresso. Por quê? Quem pode empenhar-se em reverter essa decisão?
Há necessidade de novos investimentos em áreas estratégicas do país, como infraestrutura, energia, saúde e educação. Não seria o caso de obrigar os bancos, que acumularam lucros fantásticos com as altas taxas de juros praticados no país (lucros eticamente injustificáveis) a constituírem um fundo compulsório para financiar tais investimentos? Porque não se dão passos nessa direção?
No setor da reforma agrária, as ações vão com uma lentidão preocupante. Será apenas devido à máquina burocrática pesada ou à escassez de recursos? Como dar agilidade à reforma agrária e agrícola, de que temos tanta necessidade? O agronegócio, dado como um grande gerador de divisas e ativador da economia, está atendendo às exigências da justiça social, da sustentabilidade e do equilíbrio ambiental? A atual regulamentação sobre os transgênicos atende aos reclamos da segurança alimentar, da saúde e de proteção contra o monopólio das sementes?
O combate à corrupção eleitoral certamente deu um grande passo à frente com a aplicação da Lei 9840. A aprovação da lei, fruto de iniciativa popular, foi resultado de muito trabalho de mobilização e acompanhamento por parte da Igreja e de entidades da sociedade civil. Como evitar retrocessos nesse campo? Que outros passos são necessários para combater a fraude, a corrupção e a malversação de recursos públicos, evitar a impunidade dos culpados e para fazer a auditoria da nossa dívida interna e externa?
No campo internacional, temos a falta de investimentos estáveis na luta contra a pobreza e a fome. Entre as Metas do Milênio até 2.015, estabelecidas pela ONU, está a redução pela metade do número de pessoas atingidas pela pobreza extrema e a desnutrição e a continuação dos esforços para responder aos desafios fixados na conferência de Monterrey e na Cúpula de Johannesburgo sobre o desenvolvimento sustentável. A proposta apresentada pelo Governo Brasileiro de criar um Fundo de Combate à Pobreza e à Fome teve o apoio do Secretário-Geral das Nações Unidas e de outros governantes. A 20 de setembro, em Nova York, na vésperas da sessão de abertura da 59ª Assembléia Geral da ONU, os líderes mundiais examinaram as conclusões do grupo de trabalho criado ad hoc, propondo formas de financiar e gerir esse fundo.
Além disso, é preciso somar esforços no sentido de articular um sistema multilateral de comércio justo, aumentar as inversões, combater a especulação financeira e aliviar a dívida externa dos países altamente endividados. Como o mundo encontrará forças para efetiva implantação dessas medidas?
4. Conclusão
A experiência tem mostrado que os ensinamentos da Igreja sobre a propriedade e outras dimensões da vida de um país se tornam eficazes à medida que seu povo e suas organizações tomarem conhecimento desses princípios, conscientizando-se de seus deveres e direitos e organizando-se para cumpri-los e fazer com que sejam respeitados. Daí a necessidade de continuar a difusão dessa doutrina social, de debatê-la e criar iniciativas cidadãs que impulsionem sua implementação.
A razão que torna necessária essa mobilização está no fato que, como escreveram os bispos do Brasil, no documento Exigências Evangélicas e Éticas de superação da Miséria e da Fome: "(...) só prevalecem na agenda da política social, os direitos respaldados pela consciência da cidadania e pela participação política de entidades e movimentos sociais organizados"[15].
Questões para debate:
1. Como combater o vício da apropriação privada da coisa pública?
2. Que medidas parecem eticamente mais recomendáveis para reduzir a desigualdade entre ricos e pobres no Brasil?
3. A atual política econômica do Brasil atende às exigências da doutrina social da Igreja em relação à propriedade? Porque sim ou porque não?
Bibliografia:
FATTORELLI CARNEIRO, Maria Lúcia, Auditoria da Dívida Externa: Questão de Soberania. Rio de Janeiro: Contraponto, 2003.
PONTIFÍCIO CONSELHO "JUSTIÇA E PAZ", Compêndio da Doutrina Social. S. Paulo: Paulinas, 2005.
(Doutrina da Propriedade nos Santos Padres...)
[1] BAC: S. João Crisóstomo, Homilia sobre S. Mateus, p. 83.
[2] Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes (GS), 69
[3] S. Tomás, Summma Theologica, 2,2, q. 66, ad 7.
[4] Idem, 2, 2, 66, a.2.
[5] Paulo VI, Populorum Progressio (PP) - (Sobre o Desenvolvimento dos Povos), 1967, p. 33.
[6] Pierre Bigo e Fernando Bastos d´Ávila, Fé Cristã e Compromisso Social, p. 166)
[7] Cf. João Paulo II, Laborem Exercens (LE) - (Sobre o Trabalho Humano), 1981.
[8] João Paulo II, Centesimus Annus (CA) - (No Centenário da Rerum Novarum), n. 4, p. 166)
[8] Cf. João Paulo II, Laborem Exercens (LE) - (Sobre o Trabalho Humano 3.
[9] Cf. João XXIII, Mater et Magistra - MM (Sobre a Recente Evolução da Questão Social), 1961.
[10] CA, n. 40.
[11] CA, n. 48.
[12] GS, n. 71.
[13] João Paulo II, Novo Millennio Ineunte (NMI) - (No Início do Novo Milênio), 2001, n. 50.
[14] Idem, ibid.
[15] CNBB, Exigências Evangélicas e Éticas de Superação da Miséria e da Fome, Doc. 69, 2002, n. 52.
Campanha Nacional pelo Limite da Propriedade da Terra, pela Soberania Territorial e Alimentar
Campanha Nacional pelo Limite da Propriedade da Terra, pela Soberania Territorial e Alimentar
Confira texto produzido por padre Nelito Dorneles, da CNBB, que traz as principais questões relacionadas ao Plebiscito Popular pelo Limite da Propriedade da Terra
por Padre Nelito Dorneles
1. O que é a Campanha pelo Limite da Propriedade da Terra?
Com o objetivo de conscientizar e mobilizar a sociedade brasileira sobre a necessidade e importância de se estabelecer um limite para a propriedade da terra, no ano 2000, o Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo - FNRA, lançou a Campanha pelo Limite da Propriedade da Terra: em defesa da reforma agrária e da soberania territorial e alimentar.
Esta campanha foi criada para acabar com a histórica concentração fundiária existente no país. É preciso estabelecer um limite para a propriedade da terra se o Brasil quiser fazer valer um dos objetivos fundamentais da república que é o de "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais." - artigo 3º, inciso III da Constituição.
2.O que é um Plebiscito Popular?
A participação popular é um direito dos cidadãos, pois ela está na essência do conceito de Estado Democrático de Direito. Ela pode ser exercida pela via indireta, quando se elege pelo voto, representantes que exercem o poder político em nome do população brasileira, ou pela via direta, quando a sociedade se manifesta diretamente sobre temas relevantes para o país, por meio de plebiscitos, referendos ou outra forma de iniciativa popular.
A participação popular legitima as decisões sobre os destinos a serem dados para a Nação, fazendo com que o povo seja protagonista direto deste processo. A Constituição Federal Brasileira de 1988, no seu artigo 14, determina que "a soberania popular será exercida pelo voto direto e secreto, e também, nos termos da lei, pelo plebiscito, referendo e pela iniciativa popular." Segundo o artigo 49, XV, compete ao Congresso Nacional, autorizar um referendo e convocar um plebiscito.
Mas a prática de consultar o povo está muito longe de ser concretizada. Até o presente só tivemos um plebiscito e um referendo convocados pelo governo. Diante disto, a sociedade civil organizada tem lançado mão de plebiscitos de iniciativa popular para que a sociedade possa se manifestar sobre problemas relevantes que atingem a vida de cada brasileiro. Mesmo não tendo valor jurídico legal, esta consulta popular tem um grande valor simbólico para mostrar que a sociedade está atenta às grandes questões nacionais e que, por isso mesmo, deveria ser ouvida com respeito e atenção.
3. Por que limitar as propriedades de terras no Brasil?
O Brasil é o campeão mundial em concentração de terra. E está comprovado que a pequena propriedade familiar é a principal produtora de alimentos que chega à mesa dos brasileiros. Ela é responsável por toda a produção de hortaliças, com 87% da mandioca, 70% do feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 21% do trigo; 58% do leite, 59% dos suínos, 50% das aves.
Ela emprega 74,4% das pessoas ocupadas no campo, enquanto que as grandes empresas do agronegócio só empregam 25,6% da mão de obra do total.
Enquanto a pequena propriedade ocupa a cada cem hectares 15 pessoas, as empresas do agronegócio ocupam 1,7 pessoas a cada cem hectares.
Os estabelecimentos com até 10 hectares apresentam os maiores ganhos por hectare, chegando até R$ 3.800,00.
A concentração de terras no latifúndio e grandes empresas expulsa as famílias do campo, jogando-as nas favelas e áreas de risco das grandes cidades e é responsável diretamente pelos conflitos e a violência no campo. Somente nos últimos 25 anos foram registrados os seguintes dados: 1.546 trabalhadores assassinados e houve uma média anual de 2.709 famílias expulsas de suas terras. 13.815 famílias foram despejadas. 422 pessoas presas por conflitos agrários.765 conflitos no campo diretamente relacionados à luta pela posse da terra. 92.290 famílias envolvidas em conflitos por terra.
Além do mais, as grandes empresas latifundiárias lançam mão de relações de trabalho análogas às do trabalho escravo. Em 25 anos foram registradas 2.438 ocorrências de trabalho escravo, envolvendo 163 mil trabalhadores escravizados.
4. Existem limites em outros países do mundo?
Sim. O limite para a propriedade da terra não é uma novidade. Muitos países o adotaram com sucesso. Na Coréia do Sul, Malásia, Japão, Filipinas e Tailândia a redistribuição da terra foi um instrumento para o desenvolvimento econômico e social.
Países que estabeleceram limites para a propriedade no século XX:
País Ano
(lei agrária) Hectares
(limite) País Ano
(lei agrária) Hectares
(limite)
Japão 1946 12 Índia 1972 21,9
Itália 1950 300 Sri Lanka 1972 20
Coréia do Sul 1950 3 Argélia 1973 45
Taiwan 1953 11,6 Paquistão 1977 8
Indonésia 1962 20 El Salvador 1980 500
Cuba 1963 67 Nicarágua 1981 700
Síria 1963 300 Bangladesh 1984 8,1
Egito 1969 21 Filipinas 1988 5
Peru 1969 150 Tailândia 1989 8
Iraque 1970 500 Nepal 2001 6,8
Fonte: Carter, Miguel. Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil. São Paulo, Editora da Unesp, 2010, p. 48.
5. Qual é o limite proposto pelo Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo?
O Fórum propõe um limite de 35 módulos fiscais, que varia de região para região - entre cinco e cento e dez hectares cada módulo - e é definido para cada município de acordo com a situação geográfica, a qualidade do solo, o relevo e as condições de acesso.
O limite de 35 módulos significa uma variação entre 175 hectares, em casos de imóveis próximos às capitais com boa infra-estrutura e de fácil acesso aos mercados consumidores e até 3.500 hectares, em boa parte da região da amazônica.
Confira as variações dos módulos fiscais em seu estado:
ESTADO
MÓDULO MÁXIMO
(em hectare)
MÓDULO MÍNIMO
(em hectare)
MAIS FREQUENTE (em hectare)
Norte
Rondônia 60 60 60
Acre 100 70 100
Amazonas 100 10 100
Roraima 100 80 80
Pará 75 5 70
Amapá 70 50 70
Tocantins 80 70 80
Sul
Rio Grande do Sul 40 5 20
Santa Catarina 24 7 20
Paraná 30 5 18
Nordeste
Maranhão 75 15 70
Piauí 75 15 70
Ceará 90 5 55
Rio Grande do Norte 70 7 35
Paraíba 60 7 55
Pernambuco 70 5 14
Alagoas 70 7 16
Sergipe 70 5 70
Bahia 70 5 65
Sudeste
Minas Gerais 70 5 30
Espírito Santo 60 7 20
Rio de Janeiro 35 5 10
São Paulo 40 5 16
Centro Oeste
Mato Gr. do Sul 110 15 45
Mato Grosso 100 30 80
Goiás 80 7 30
Distrito Federal 5 5 5
6. O que é um módulo fiscal?
O módulo fiscal é uma referência, estabelecida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA-, que define a área mínima suficiente para prover o sustento e a vida digna de uma família de trabalhadores e trabalhadoras rurais. Ele varia de região para região - entre cinco e cento e dez hectares- e é definido para cada município a partir da análise de várias regras, como por exemplo, a situação geográfica, qualidade do solo, o relevo e condições de acesso.
A criação do módulo fiscal foi uma tentativa de adequar as propriedades às realidades regionais e municipais. Essa concepção está presente nas leis como, por exemplo, na Lei nº. 8.629. Essa lei foi instituída em 1993 para regulamentar os artigos 184, 185 e 186, da Constituição Federal, que tratam da reforma agrária. Essa Lei estabeleceu, em seu art. 4º, que a pequena propriedade é aquela "de área compreendida entre um e quatro módulos fiscais" - Inciso II. No mesmo artigo, estabelece-se que a média propriedade é aquele imóvel que possui "área superior a quatro até quinze módulos fiscais" - Inciso III. Esta definição é importante porque os imóveis abaixo deste tamanho não são passíveis de desapropriação para fins de reforma agrária, segundo consta no art. 185 da Constituição.
7. Por que o FNRA propõe um limite de 35 módulos fiscais?
Mesmo tendo este parâmetro legal de até 15 módulos para a média propriedade, o Fórum Nacional de Reforma Agrária propôs como limite máximo, 35 módulos. As entidades do Fórum entendem que, mesmo estabelecendo um limite máximo, a estrutura fundiária brasileira continuará composta de pequenas, médias e grandes propriedades.
O limite de 35 módulos significa uma variação entre 175 hectares, em casos de imóveis próximos às capitais, portanto, assistidos com infra-estrutura e bom acesso aos mercados consumidores e 3.500 hectares, em boa parte da região da amazônica. Este limite supera o limite máximo estabelecido na Constituição.
8. Como estão distribuídas as terras no Brasil?
A grande maioria das terras brasileiras está nas mãos de poucos. A concentração da propriedade da terra no Brasil remonta à época do descobrimento quando os portugueses aqui aportaram e se declararam senhores de tudo desconhecendo as populações aqui existentes.
Esta concentração perdura até hoje conforme revelam os dados do último Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2006. Quase 50% dos estabelecimentos agropecuários no Brasil têm menos de 10 hectares e ocupam somente 2,36 % da área. Na outra ponta do espectro fundiário, menos de 1% dos estabelecimentos rurais (46.911), tem área acima de um mil hectares cada, e ocupam 44% das terras. Vejam detalhes na tabela:
Número de estabelecimentos e Área dos estabelecimentos agropecuários por grupos de área total
Grupos de área total Variável
Número de estabelecimentos (unidades) % Área dos estabelecimentos (hectares) %
Menos de 10 hectares 2.477.071 47,86 7.798.607 2,36
10 a menos de 100 hectares 1.971.577 38,09 62.893.091 19,06
Menos de 100 hectares 4.448.648 85,96 70.691.698 21,43
100 a menos de 1000 há 424.906 8,21 112.696.478 34,16
1000 ha e mais 46.911 0,91 146.553.218 44,42
Total 5.175.489 100,00 329.941.393 100,00
Fonte: IBGE (2009) - Censo Agropecuário de 2006
Os estabelecimentos com mais de 2.500 hectares são só 15.012 e ocupam 98.480.672 hectares. Dezoito milhões de hectares a mais do que os quase quatro milhões e meio de estabelecimentos familiares. Como se refere à tabela que antes, deveria se dizer em vez de estabelecimentos familiares, estabelecimentos com 100 hectares ou menos.
9. O que o limite das propriedades rurais tem haver com o povo das cidades?
A elevada concentração fundiária brasileira dá origem a relações econômicas, sociais, políticas e culturais cristalizadas em um modelo inibidor de um desenvolvimento que combine a geração de riquezas e o crescimento econômico, com justiça social e cidadania para a população rural.
O modelo de desenvolvimento adotado hoje para o campo que estimula o agronegócio com suas imensas monoculturas gera um crescimento econômico perverso que empobrece a maioria da população e as expulsa do campo, inchando as grandes cidades, e jogando grande parte de sua população em situações de extrema pobreza e necessidade.
Sobre este processo de urbanização, os dados do IBGE são impressionantes e demonstram que em 1890 o Brasil possuía 14 milhões de habitantes e apenas 6,8% da população vivia nas cidades, em 1900, este número aumenta para 10%, em 1940 para 23%, em 1970 para 60%, e em 2002 este número passa para mais de 80%, com mais de 50 milhões de pessoas vivendo nas regiões metropolitanas.
O efeito desta expulsão dos pobres do campo contribuiu para a consolidação de enormes latifúndios e tem impacto sem precedentes, com um enorme processo de favelização, expansão horizontal das periferias, formando um verdadeiro cinturão de miseráveis no anel periférico das cidades e regiões metropolitanas do país.
No cenário urbano vão se formando e se consolidando duas cidades divididas: uma cidade formal, com todos os bens e serviços próximos das regiões valorizadas e bem servidas de infra-estrutura, e outra cidade informal, uma "não-cidade", onde as pessoas vão se virando para morar de forma improvisada e extremamente precária. Mais de 11 milhões de famílias vivem em favelas, em loteamentos irregulares e em áreas de risco.
10. O que posso fazer para contribuir com a campanha e com o plebiscito popular?
A realização e o sucesso do plebiscito dependem única e exclusivamente da participação e do empenho de cada um, de cada entidade, organização e pastoral, uma vez que não existe nenhum apoio público e da mídia. Representa a força e a determinação de quem acredita em que algo pode ser feito para corrigir esta absurda concentração de terras que acaba por excluir milhões de famílias de terem seus direitos protegidos.
• Fale, comente e divulgue, também pela internet e redes sociais (orkut, twitter), o plebiscito para seus amigos, sua família e colegas de trabalho.
• Integre-se aos comitês locais ou estaduais que vão organizar o Plebiscito.
Na Semana da Pátria:
• Intensifique a divulgação;
• Ajude a organizar os locais de votação;
• Participe de alguma mesa de votação;
• VOTE;
• Assine o abaixo-assinado que será levado ao Congresso Nacional para que seja votada uma emenda constitucional que determine um limite ao tamanho das propriedades;
• Na hora de escolher seus governantes e representantes para o Senado e a Câmara dos Deputados, vote naqueles que se comprometem a aprovar a Proposta de Emenda Constitucional - PEC 438 que confisca as propriedades onde se pratica o trabalho escravo, e que proponham uma emenda à Constituição para que seja determinado um limite à propriedade;
• Não vote naqueles que sempre defenderam o direito absoluto à propriedade sem se preocupar com os direitos dos outros.
11. A quem pertence a Terra?
Olhando a realidade à nossa volta, dominada pela brutal mercantilização da vida, em que todas as coisas são transformadas em mercadorias e dominados pelo mundo dos negócios, dizemos que a terra pertence aos que detém o poder, aos que controlam os mercados, aos que podem vender e comprar seu chão, seus bens e serviços, água, genes, sementes, alimentos, ar, energia, lazer, comunicação, transporte, segurança, educação, órgãos humanos e até mesmo pessoas feitas também mercadorias. Estes pretendem ser os donos da terra e dispõem dela como bem entendem.
Mas são donos ridículos, pois esquecem que não são donos deles mesmos, nem de sua origem nem de sua morte.
A quem pertence a terra? A resposta mais sensata e satisfatória nos vem das religiões, bem representadas pela tradição judaico-cristã. Nesta, Deus diz: "Minha é a terra e tudo o que ela contém e vocês são meus hóspedes e inquilinos" (Lv 25,23). Só Deus é senhor da terra e não passou escritura de posse a ninguém. Nós somos hóspedes temporários e simples cuidadores com a missão de torná-la o que um dia foi: o Jardim do Éden. Por ser geradora de vida, a terra possui a dignidade e o direito de ser cuidada e protegida.
12. Como está o planeta terra?
Vivemos um momento da história em que está em jogo nosso futuro comum. O encadeamento de crises e especialmente a questão ecológica podem originar uma tragédia de enormes proporções, que impõe a urgente adoção de medidas pessoais em nossa maneira de nos relacionar com a terra e urgentíssimas medidas políticas. O que importa não é a salvação do status quo, mas a salvação da vida e do sistema terra. Esta é a nova centralidade, que redefinirá os grandes rumos da política e das leis.
Hoje, aflora, em vários setores da sociedade, uma nova consciência que considera a terra e a humanidade como parte de um vasto universo em evolução, que possuem o mesmo destino e constituem, em sua complexidade, uma única entidade.
13. E a crise ambiental?
Como a crise ambiental deve ser enfrentada globalmente, é preciso definir o "bem comum da terra e da humanidade". As características do bem comum são a universalidade e a gratuidade. Deve incluir todos, pessoas e povos, e ao mesmo tempo é oferecido a todos gratuitamente porque representa o que é essencial, vital e insubstituível para a humanidade e a própria Terra. O primeiro bem é a terra, que é condição para todos os outros bens.
A biosfera é um patrimônio que a humanidade deve tutelar. Isto vale para todos os recursos naturais: ar, água, fauna, flora, micro-organismos e também para a manutenção do clima. Por isso as mudanças climáticas devem ser enfrentadas globalmente, como uma responsabilidade compartilhada. Fazem parte do patrimônio comum os bens públicos a serviço da vida, como os alimentos, as sementes, a eletricidade, as comunicações, os conhecimentos acumulados pelos povos e pela pesquisa, pelas culturas, artes, técnicas, música, religiões, saúde, educação e segurança.
O segundo bem comum é a humanidade, com seus valores intrínsecos como portadora de dignidade, consciência, inteligência, sensibilidade, compaixão, amor e abertura para o Todo. A humanidade aparece como um projeto infinito e por isso sempre inacabado. O fecundo conceito de bem comum proíbe que sejam patenteados recursos genéticos fundamentais para a alimentação e a agricultura, enquanto as descobertas técnicas patenteadas devem sempre ter um destino social. Pertence ao bem comum da humanidade e da Mãe Terra a convicção de que uma energia benfeitora está subjacente a todo o universo, sustenta cada um dos seres e pode ser invocada, acolhida e venerada.
Obs.: Organize aí na sua comunidade e cidade o Plebiscito Popular sobre o limite da Propriedade. Ajude nessa luta tão necessária, justa e sublime.
Confissões do Latinfúndio
Pedro Casaldáliga Bispo Emérito de São Felix do Araguaia, MT
Por onde passei, plantei a cerca farpada, plantei a queimada. Por onde passei,
plantei a morte matada.
Por onde passei, matei a tribo calada, a roça suada, a terra esperada...
Por onde passei,tendo tudo em lei, eu plantei o nada.
DEUS PAI NO SEIO DA TRINDADE
DEUS PAI NO SEIO DA TRINDADE
J. B. Libanio
1. Unidade e diversidade em Deus
Na raiz de todo monoteísmo há a afirmação inegociável: Há um único Deus. Nós cristãos somos monoteístas. Mas distinguimo-nos dos judeus e dos muçulmanos porque essa unidade absoluta de Deus é tão rica, tão irradiante, tão expansiva, que ela é apropriada por três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo.
Mais. Confessamos que no princípio de tudo está essa comunhão trinitária, esse único Deus tripessoal, que não existe na solidão do Um mas no entrelaçamento dos Três. Quando afirmamos que Deus é amor, queremos revelar precisamente a natureza trinitária de Deus. O Amor é a realidade que une os distintos, sem que eles deixam de ser distintos, mas os vincula entre si a uma unidade cada vez maior conforme a grandeza do amor. Nas criaturas, nunca a diversidade de pessoas chega à unidade da natureza singular. Comungamos numa mesma natureza de espécie. Em Deus, o amor é tão sublime, infinito que os Três divinos, as Três pessoas são uma só natureza, uma só essência.
2. Os diferentes nomes da Primeira Pessoa da Trindade
As pessoas em Deus são chamadas de modos diferentes. O nome mais conhecido da Primeira Pessoa é Deus Pai porque gera o Filho na eternidade. Ele tem outros nomes, como de “soprador” do Espírito. Em relação a si mesmo, a Primeira Pessoa é nomeada "princípio sem princípio", ingênito. Como pessoa divina é fonte de tudo o que existe. Mas ele é mais. É fonte no próprio interior da Trindade. Portanto, fonte-fonte, fonte-princípio e princípio-fonte. Não na linha do tempo, da causa, porque no interior da Trindade não há tempo, não há causalidade. Esse é o nosso mundo de criaturas. Entretanto, no seu seio divino há uma ordem eterna, em que a Primeira Pessoa é sempre a fonte inicial da geração eterna do Verbo e da " espiração" eterna do Espírito.
3. Deus, Primeira Pessoa, é, existe, constitui-se eternamente pelas relações
"Em Deus tudo é Um, onde não o impede a oposição da relação", é um dos famosos axiomas teológicos sobre a Trindade. Em palavras mais simples, todas as ações de Deus - a criação, a redenção, a santificação de nossa alma, a ressurreição dos mortos, a transformação final do mundo, etc. – são obras da Trindade, das Três Pessoas, posto cada uma tenha seu modo próprio de atuar. Elas, no entanto, se distinguem enquanto mantém entre si relação original, única. Para exprimir essas relações, antes que a razão teológica entrasse com seu trator teórico, a piedade, a liturgia, a fé mais simples, a experiência religiosa expressaram-se em imagens que revelam essa relação. A primeira imagem é a paternidade com seu correlato da filiação. A segunda é a da “espiração”, do sopro.
Nessa dupla imagem, a Primeira Pessoa da Trindade ocupa o lugar do Pai e do Soprador. Ele é Pai, porque gera o Filho. Se não houvesse Filho, nunca seria Pai. Portanto, constitui-se na e pela relação. É Soprador porque sopra o Espírito Santo juntamente com o Filho. Se não houvesse Espírito Santo, também Ele e o Filho nunca seriam o Princípio soprante do Espírito.
Só Ele é o Pai, porque só Ele gera o Filho. Nisso se distingue do Filho e do Espírito Santo. Como Soprador se distingue do Espírito, Aquele que foi soprado, mas não do Filho, pois ambos são um Único Soprador do Espírito. Os Padres gregos preferem também aí ver uma distinção. Pois, o Pai é a fonte do sopro por meio do Filho até o Espírito.Os latinos imaginam um único Sopro saindo de ambos.
A imagem da paternidade e do sopro participa tanto da riqueza quanto da pobreza de toda linguagem humana quando se refere a Deus. No entanto, não são puras imagens. Traduzem uma realidade muito além de nossa capacidade. Lançam-nos uma ponte em direção à terceira margem divina.
Tal reflexão pode ajudar-nos na fé? Não é pura fantasia ou especulação estéril? Não. Se nos pomos a pensar, percebemos que essa distinção em Deus nos permite vivências espirituais diferenciadas de cada pessoa trinitária, mas nunca separadamente. Em cada ação são sempre os Três Divinos atuando, mas cada um com modo próprio.
4. O primeiro acesso a Deus Pai
A reflexão, que nos norteou nessa descoberta de Deus, Primeira Pessoa da Trindade, como Pai, como Soprador, não brotou do próprio seio interior de Deus. Quem somos nós para ouvir e sentir a Palavra e o Sopro eternos no coração mesmo da Trindade? Lá chegamos depois de tatear pelas revelações que Deus Trino nos foi fazendo ao longo da história. Foi Jesus Cristo que, na sua pretensão de Filho eterno do Pai, nos abriu o acesso a Deus como Pai. E o mesmo Cristo nos falou do Espírito e então chegamos a Deus também como aquele “Soprador” divino.
A fé no Único Deus nos impediu de cair na fácil tentação de confessar três deuses. Uma família de Três deuses poderia ser bela mensagem ao mundo pagão que conhecia tantos deuses. No entanto, a fé cristã resistiu firmemente ao triteísmo. Uma outra resposta fácil seria manter com o judaísmo o monoteísmo rígido e hierarquizar as outras duas pessoas divinas. Deus Pai seria o Deus maior, Jesus e o Espírito ser-lhe-iam subordinados. Mais uma vez a fé cristã teimou em manter a igualdade e a diferença. Dessa dupla certeza nasceu, portanto, toda a reflexão trinitária, que se desenvolveu ao longo sobretudo dos cinco primeiros séculos.
A figura de Santo Irineu (+202) aparece bem nesses inícios marcando o caminho do conhecimento de Deus Pai no interior desse movimento de manifestação histórica. "Eis a regra de nossa fé, o fundamento do edifício e o que confere solidez à nossa conduta: Deus Pai incriado, que não está contido, invisível, um só Deus e Criador do universo; este é o primeiro artigo de nossa fé. E como segundo artigo: O Verbo de Deus, o Cristo Jesus Senhor nosso" e seguem outras verdades sobre a humanidade histórica de Cristo. Acrescenta em seguida: "O Espírito Santo pelo qual os profetas profetizaram e os Pais aprenderam o que concerne a Deus", concluindo com as ações atribuídas ao Espírito. Esse núcleo da fé cristã foi desenvolvendo-se com ulteriores reflexões.
Foram forjando-se palavras para designar o Um e o Três em Deus. O Um é o que as Três Pessoas têm em comum. Chamou-se de essência, substância, natureza e todos os atributos divinos. O Três é o que cada uma tem de próprio. Aí se usaram a palavra Pessoa, Subsistente e os nomes para designar cada pessoa: Pai, Filho e Espírito Santo.
5. Deus Pai é a Primeira Pessoa da Trindade
Em todo catecismo se ensina essa verdade. Por aí se começa. Evidentemente essa frase tão curta encerra augusto mistério que nunca nossa inteligência vai conseguir captá-lo na sua riqueza. No entanto, entre a completa intelecção, impossível no caso de Deus, e a absoluta equivocidade de nada dizer de Deus, senão um sopro de voz, há um conhecimento sempre aberto a novas intelecções. Ora afirmando algo positivo, ora negando falsas compreensões, ora empurrando assintoticamente uma compreensão que será nosso gáudio, principiado aqui na fé, por toda a eternidade a dentro.
Deus é Pessoa, mas não como nós. Quando falamos pessoa, entendemos uma liberdade, uma consciência, uma vontade próprias. Deus Pai não tem nenhuma liberdade, consciência, vontade próprias no sentido de distinta das do Filho e do Espírito. É a mesma. Mas é pessoa no sentido que possui essa liberdade, essa consciência e todos os atributos divinos comuns às outras duas pessoas, de "maneira própria". Ele as possui como fonte primordial, princípio originante, "princípio sem princípio", ingênito, fonte de todo sopro. Aí está originalidade de sua Pessoa.
Ao chamar a Deus Pai de Pessoa, queremos reconhecer que ele é uma realidade distinta do Filho e do Espírito. É um Divino ao lado de dois outros Divinos. Não se confunde com eles, não os absorve, nem se deixa esmaecer pela realidade dos outros dois Divinos. Afirmar a pessoa de Deus é confessar que nenhuma delas pode ser esquecida, deixada de lado, como se bastasse somente falar de um Deus-essência. Obriga-nos a voltar-nos a cada uma das Pessoas, distintamente. Os Padres gregos, ao falarem da distinção das pessoas, querem dizer que cada uma é um subsistente próprio. Não são invenção de nossa fantasia, nem projeção de arquétipos humanos ancestrais.
Nós, latinos, entendemos mais a relação entre elas. Ambas verdades devem ser mantidas. Não há pessoa divina sem distinção, mas também só há único Deus se as três pessoas mantiverem uma relação tão profunda entre si que são um só amor, uma só bondade, uma só misericórdia, etc. Cada uma das pessoas tem sua subjetividade, sua autoconsciência própria, em eterna abertura às outras duas.
6. O Pai nos três caminhos da Trindade
O dado simples de nossa fé de que há um só Deus em três pessoas realmente distintas, como tantas vezes repetimos no catecismo, permite três itinerários. Cada um tem sua beleza. Podemos partir da unidade da natureza divina. Afirmamos a existência de um só Deus. As Pessoas divinas ficam na sombra. É a experiência riquíssima que fazemos de que a idolatria, os muitos deuses, o paganismo com sua floresta divina, não dão conta dessa realidade primeira e última. Há o UM, com letra maiúscula. É o Mistério supremo, ainda não nomeado cristãmente, mas presente no judaísmo, no islamismo, em tantas outras experiências religiosas.
A imensa maioria dos que crêem em Deus permanecem nesse momento. Dessa unidade última de Deus vivem, para ela tendem. O pessoal dessa unidade ainda não recebeu a face de Pai, nem de Filho, nem de Espírito. É a consciência, a liberdade, a espiritualidade infinitas da natureza divina, comum às três pessoas.
Mesmo sem conhecer as pessoas divinas da Trindade cristã, muitos experimentam que esse mistério primeiro e maior é irradiante, transborda de si. Não sabem ainda que tal abundância se consusbstancia em três pessoas. Mas vivem, sem dúvida, essa força divina tripessoal no anonimato de uma revelação não conhecida.
Outros, já alimentados pela fé cristã, sabem que esse primeiro Um é o Pai. Dirigem-se a Ele nesse primeiro momento. Creio num Deus Um Pai. As três pessoas são divinas, mas o Pai é Deus por antonomásia. Quando a Escritura ou a liturgia fala de Deus, sem mais, refere-se quase sempre a Deus Pai. Vale a pena conferir lendo os textos e rezando as orações. Nele começa todo culto, toda oração. Nele termina toda adoração, toda veneração. Dele vem toda bênção, toda graça, para ele volta e sobe toda nossa gratidão. Essa experiência filial em relação a Deus Pai tem a beleza e pureza das águas cristalinas da fonte primordial de nossa fé. Tudo começa e termina em Deus Pai.
Enfim, podemos partir da experiência de um Deus comunhão. "No princípio está a comunhão dos Três e não a solidão do Um" (L. Boff). Antes que os nomes divinos aflorem aos nossos lábios, antes que vivamos a experiência da Unidade radical de Deus, somos envolvidos pela comunhão, pela comunicação interna de Deus que nos alcança. Experimentamos o Pai todo no Filho e no Espírito Santo numa comunhão maravilhosa de amor. Entendemos então o que Jesus uma vez disse: "Quem me viu, viu o Pai" (Jo 14, 9). E poderia ter dito também, "quem me viu, viu o Espírito Santo". Enfim, quem experimenta uma das pessoas, experimenta a comunhão que as une entre si. Noutras palavras, percebemos em primeiro lugar a dimensão de Amor-comunhão entre as Três pessoas divinas. Somos remetidos assim a uma Comunidade primigênia e chamados a viver na terra a dimensão comunitária como realização de nossa dimensão ontológica de ser-comunhão.
7. Deus não é nem masculino, nem feminino, nem neutro, mas Trindade
Deus não é pessoa como nós. É pessoa num sentido sublime. Muito menos têm gênero. Quando o chamamos de Pai, de "Ele" na forma masculina, não queremos, de maneira alguma, atribuir-Lhe uma dimensão de gênero. São arquétipos culturais que influenciaram nessa masculinização dos termos aplicados a Deus, por causa da imagem que fazemos tanto de nós mesmos quanto de Deus. Os antigos só podiam conceber a Deus numa linha de poder, de força, de senhorio. E, por sua vez, o homem encarnava tais estereótipos na sociedade patriarcal dominante no mundo das grandes religiões monoteístas. À mulher se reservavam funções e qualidades de submissão, de cuidados menores. O mundo celeste reproduzia o mundo terrestre do império masculino.
Estamos diante de um antropomorfismo extremamente limitado que teve, infelizmente, muitas conseqüências negativas para a piedade e teologia. Não é solução cair em outro antropomorfismo feminista. Cabe compreender tanto o masculino quanto o feminino como expressões culturais. Mais: importa corrigir as suas deturpações. Hoje o homem e a mulher são entendidos como expressões originais de totalidade do ser humano e não partes nem mesmo complementares. Pois, quer o homem quer a mulher possuem a dimensão masculina e feminina, embora não mesma proporção. E Deus é a fonte e criador dessa totalidade. Por isso, nele existem em sumo grau as qualidades que definem o masculino e o feminino, sem que ele seja algum dos dois gêneros. A tematização do masculino e do feminino são processos culturais, posto tenham fundamento na realidade biológica. Em outras culturas, a explicitação dessas dimensões tem sido e é diferente.
Podemos evidentemente, num momento transitório, para corrigir nossa linguagem sexista e os efeitos colaterais de seu uso, insistir em chamar a Deus, ora de ele, ora de ela; ou invocá-lo, como o Papa João Paulo I o fez: Deus Pai e Mãe! Mais interessante ainda é valorizar na própria revelação os traços masculinos e femininos aplicados a Deus.
Já que Deus transcende os gêneros e realiza, em suprema perfeição, aquilo que o masculino e feminino humanos são, nada impede que, no nível de nossa devoção, atendamos mais, ora às qualidades masculinas, ora às femininas em Deus. Nunca, porém, podemos perder a clara consciência do alcance e do limite de nossos conceitos. Destarte, quando valorizamos o lado masculino de Deus, acentuamos o seu senhorio, sua onipotência criadora, suas gestas libertadoras na história. Por sua vez, quando nos apraz louvar o lado feminino de Deus Mãe, então cultuamo-Lhe as dimensões interiores da vida, o gesto delicado da criação, a animação, o consolo, o último aconchego, a ternura, a gratuidade do dom, a beleza, o repouso, o sossego, a dedicação, o secreto do mistério.
Em toda essa consideração de gênero, o mais importante talvez seja perguntar-se porque Deus quis criar os seres humanos sexuados. Poderia evidentemente ter sido outra a evolução da vida. O mundo material expandiu-se pelas leis físicas. O gênero surgiu com a vida mais complexa. A resposta pode ser encontrada na própria natureza de Deus. Deus é amor. O Amor é o princípio que organiza e sustenta todo o universo. Teilhard de Chardin formulou tão belamente o princípio da amorização que já se manifesta desde o entrelaçar-se das partículas subatômicas. Mas ele atua sobretudo quando a criação chegou ao grau mais perfeito – o ser humano. Então Deus o pensou masculino e feminino, para que assim aparecesse com mais clareza essa sua natureza de amor, reciprocidade, comunhão. Só o masculino ou só o feminino não gera a vida. Deus introduziu para o seu surgir o princípio da participação, da partilha, da comunicação. Podem os homens e mulheres perverter o ato de amor, gerador da vida, mas sua dinâmica interna toda ela fala de dom, de entrega, de aconchego, de reciprocidade. Deus escreveu na estrutura da vida a partilha, o dom mútuo, a entrega confiante, a espera amorosa. A dualidade sexual permite infinitas formas de amor e dessa maneira os seres humanos refletem a imagem de Deus. Nessa perspectiva, o sexo perde toda a mácula que triste tradição ascética lhe impingiu para recuperar a beleza primigênia do projeto de Deus. Com efeito, o masculino e o feminino, na sua dualidade, revelam mais uma faceta do Amor infinito de Deus. Na sua última realidade de verdadeiro Deus Pai e Mãe, Ele quis que tivéssemos pai e mãe para que surgíssemos para a vida.
Conclusão
No seio da Trindade, tudo é Amor. Não só porque a pessoa do Espírito Santo o torna substancial, mas também porque todo o Pai está no Filho e no Espírito Santo, como Três eternos amantes. O mesmo se pode dizer de cada pessoa que está toda na outra. Essa é a forma do amor divino. Ele se irradiou na criação, ao estabelecer-se como princípio organizador de tudo. E sobretudo na criação do feminino e do masculino de modo que a nova vida surgisse de sua fusão. E no panorama da existência, a dualidade do gênero, para além da geração da vida, vem criando, ao longo da história, infinitas possibilidades de expressão para que os seres humanos comecem também a realizar já na terra o seu último fim de ser eternamente amor com Deus amor.
J. B. Libanio
1. Unidade e diversidade em Deus
Na raiz de todo monoteísmo há a afirmação inegociável: Há um único Deus. Nós cristãos somos monoteístas. Mas distinguimo-nos dos judeus e dos muçulmanos porque essa unidade absoluta de Deus é tão rica, tão irradiante, tão expansiva, que ela é apropriada por três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo.
Mais. Confessamos que no princípio de tudo está essa comunhão trinitária, esse único Deus tripessoal, que não existe na solidão do Um mas no entrelaçamento dos Três. Quando afirmamos que Deus é amor, queremos revelar precisamente a natureza trinitária de Deus. O Amor é a realidade que une os distintos, sem que eles deixam de ser distintos, mas os vincula entre si a uma unidade cada vez maior conforme a grandeza do amor. Nas criaturas, nunca a diversidade de pessoas chega à unidade da natureza singular. Comungamos numa mesma natureza de espécie. Em Deus, o amor é tão sublime, infinito que os Três divinos, as Três pessoas são uma só natureza, uma só essência.
2. Os diferentes nomes da Primeira Pessoa da Trindade
As pessoas em Deus são chamadas de modos diferentes. O nome mais conhecido da Primeira Pessoa é Deus Pai porque gera o Filho na eternidade. Ele tem outros nomes, como de “soprador” do Espírito. Em relação a si mesmo, a Primeira Pessoa é nomeada "princípio sem princípio", ingênito. Como pessoa divina é fonte de tudo o que existe. Mas ele é mais. É fonte no próprio interior da Trindade. Portanto, fonte-fonte, fonte-princípio e princípio-fonte. Não na linha do tempo, da causa, porque no interior da Trindade não há tempo, não há causalidade. Esse é o nosso mundo de criaturas. Entretanto, no seu seio divino há uma ordem eterna, em que a Primeira Pessoa é sempre a fonte inicial da geração eterna do Verbo e da " espiração" eterna do Espírito.
3. Deus, Primeira Pessoa, é, existe, constitui-se eternamente pelas relações
"Em Deus tudo é Um, onde não o impede a oposição da relação", é um dos famosos axiomas teológicos sobre a Trindade. Em palavras mais simples, todas as ações de Deus - a criação, a redenção, a santificação de nossa alma, a ressurreição dos mortos, a transformação final do mundo, etc. – são obras da Trindade, das Três Pessoas, posto cada uma tenha seu modo próprio de atuar. Elas, no entanto, se distinguem enquanto mantém entre si relação original, única. Para exprimir essas relações, antes que a razão teológica entrasse com seu trator teórico, a piedade, a liturgia, a fé mais simples, a experiência religiosa expressaram-se em imagens que revelam essa relação. A primeira imagem é a paternidade com seu correlato da filiação. A segunda é a da “espiração”, do sopro.
Nessa dupla imagem, a Primeira Pessoa da Trindade ocupa o lugar do Pai e do Soprador. Ele é Pai, porque gera o Filho. Se não houvesse Filho, nunca seria Pai. Portanto, constitui-se na e pela relação. É Soprador porque sopra o Espírito Santo juntamente com o Filho. Se não houvesse Espírito Santo, também Ele e o Filho nunca seriam o Princípio soprante do Espírito.
Só Ele é o Pai, porque só Ele gera o Filho. Nisso se distingue do Filho e do Espírito Santo. Como Soprador se distingue do Espírito, Aquele que foi soprado, mas não do Filho, pois ambos são um Único Soprador do Espírito. Os Padres gregos preferem também aí ver uma distinção. Pois, o Pai é a fonte do sopro por meio do Filho até o Espírito.Os latinos imaginam um único Sopro saindo de ambos.
A imagem da paternidade e do sopro participa tanto da riqueza quanto da pobreza de toda linguagem humana quando se refere a Deus. No entanto, não são puras imagens. Traduzem uma realidade muito além de nossa capacidade. Lançam-nos uma ponte em direção à terceira margem divina.
Tal reflexão pode ajudar-nos na fé? Não é pura fantasia ou especulação estéril? Não. Se nos pomos a pensar, percebemos que essa distinção em Deus nos permite vivências espirituais diferenciadas de cada pessoa trinitária, mas nunca separadamente. Em cada ação são sempre os Três Divinos atuando, mas cada um com modo próprio.
4. O primeiro acesso a Deus Pai
A reflexão, que nos norteou nessa descoberta de Deus, Primeira Pessoa da Trindade, como Pai, como Soprador, não brotou do próprio seio interior de Deus. Quem somos nós para ouvir e sentir a Palavra e o Sopro eternos no coração mesmo da Trindade? Lá chegamos depois de tatear pelas revelações que Deus Trino nos foi fazendo ao longo da história. Foi Jesus Cristo que, na sua pretensão de Filho eterno do Pai, nos abriu o acesso a Deus como Pai. E o mesmo Cristo nos falou do Espírito e então chegamos a Deus também como aquele “Soprador” divino.
A fé no Único Deus nos impediu de cair na fácil tentação de confessar três deuses. Uma família de Três deuses poderia ser bela mensagem ao mundo pagão que conhecia tantos deuses. No entanto, a fé cristã resistiu firmemente ao triteísmo. Uma outra resposta fácil seria manter com o judaísmo o monoteísmo rígido e hierarquizar as outras duas pessoas divinas. Deus Pai seria o Deus maior, Jesus e o Espírito ser-lhe-iam subordinados. Mais uma vez a fé cristã teimou em manter a igualdade e a diferença. Dessa dupla certeza nasceu, portanto, toda a reflexão trinitária, que se desenvolveu ao longo sobretudo dos cinco primeiros séculos.
A figura de Santo Irineu (+202) aparece bem nesses inícios marcando o caminho do conhecimento de Deus Pai no interior desse movimento de manifestação histórica. "Eis a regra de nossa fé, o fundamento do edifício e o que confere solidez à nossa conduta: Deus Pai incriado, que não está contido, invisível, um só Deus e Criador do universo; este é o primeiro artigo de nossa fé. E como segundo artigo: O Verbo de Deus, o Cristo Jesus Senhor nosso" e seguem outras verdades sobre a humanidade histórica de Cristo. Acrescenta em seguida: "O Espírito Santo pelo qual os profetas profetizaram e os Pais aprenderam o que concerne a Deus", concluindo com as ações atribuídas ao Espírito. Esse núcleo da fé cristã foi desenvolvendo-se com ulteriores reflexões.
Foram forjando-se palavras para designar o Um e o Três em Deus. O Um é o que as Três Pessoas têm em comum. Chamou-se de essência, substância, natureza e todos os atributos divinos. O Três é o que cada uma tem de próprio. Aí se usaram a palavra Pessoa, Subsistente e os nomes para designar cada pessoa: Pai, Filho e Espírito Santo.
5. Deus Pai é a Primeira Pessoa da Trindade
Em todo catecismo se ensina essa verdade. Por aí se começa. Evidentemente essa frase tão curta encerra augusto mistério que nunca nossa inteligência vai conseguir captá-lo na sua riqueza. No entanto, entre a completa intelecção, impossível no caso de Deus, e a absoluta equivocidade de nada dizer de Deus, senão um sopro de voz, há um conhecimento sempre aberto a novas intelecções. Ora afirmando algo positivo, ora negando falsas compreensões, ora empurrando assintoticamente uma compreensão que será nosso gáudio, principiado aqui na fé, por toda a eternidade a dentro.
Deus é Pessoa, mas não como nós. Quando falamos pessoa, entendemos uma liberdade, uma consciência, uma vontade próprias. Deus Pai não tem nenhuma liberdade, consciência, vontade próprias no sentido de distinta das do Filho e do Espírito. É a mesma. Mas é pessoa no sentido que possui essa liberdade, essa consciência e todos os atributos divinos comuns às outras duas pessoas, de "maneira própria". Ele as possui como fonte primordial, princípio originante, "princípio sem princípio", ingênito, fonte de todo sopro. Aí está originalidade de sua Pessoa.
Ao chamar a Deus Pai de Pessoa, queremos reconhecer que ele é uma realidade distinta do Filho e do Espírito. É um Divino ao lado de dois outros Divinos. Não se confunde com eles, não os absorve, nem se deixa esmaecer pela realidade dos outros dois Divinos. Afirmar a pessoa de Deus é confessar que nenhuma delas pode ser esquecida, deixada de lado, como se bastasse somente falar de um Deus-essência. Obriga-nos a voltar-nos a cada uma das Pessoas, distintamente. Os Padres gregos, ao falarem da distinção das pessoas, querem dizer que cada uma é um subsistente próprio. Não são invenção de nossa fantasia, nem projeção de arquétipos humanos ancestrais.
Nós, latinos, entendemos mais a relação entre elas. Ambas verdades devem ser mantidas. Não há pessoa divina sem distinção, mas também só há único Deus se as três pessoas mantiverem uma relação tão profunda entre si que são um só amor, uma só bondade, uma só misericórdia, etc. Cada uma das pessoas tem sua subjetividade, sua autoconsciência própria, em eterna abertura às outras duas.
6. O Pai nos três caminhos da Trindade
O dado simples de nossa fé de que há um só Deus em três pessoas realmente distintas, como tantas vezes repetimos no catecismo, permite três itinerários. Cada um tem sua beleza. Podemos partir da unidade da natureza divina. Afirmamos a existência de um só Deus. As Pessoas divinas ficam na sombra. É a experiência riquíssima que fazemos de que a idolatria, os muitos deuses, o paganismo com sua floresta divina, não dão conta dessa realidade primeira e última. Há o UM, com letra maiúscula. É o Mistério supremo, ainda não nomeado cristãmente, mas presente no judaísmo, no islamismo, em tantas outras experiências religiosas.
A imensa maioria dos que crêem em Deus permanecem nesse momento. Dessa unidade última de Deus vivem, para ela tendem. O pessoal dessa unidade ainda não recebeu a face de Pai, nem de Filho, nem de Espírito. É a consciência, a liberdade, a espiritualidade infinitas da natureza divina, comum às três pessoas.
Mesmo sem conhecer as pessoas divinas da Trindade cristã, muitos experimentam que esse mistério primeiro e maior é irradiante, transborda de si. Não sabem ainda que tal abundância se consusbstancia em três pessoas. Mas vivem, sem dúvida, essa força divina tripessoal no anonimato de uma revelação não conhecida.
Outros, já alimentados pela fé cristã, sabem que esse primeiro Um é o Pai. Dirigem-se a Ele nesse primeiro momento. Creio num Deus Um Pai. As três pessoas são divinas, mas o Pai é Deus por antonomásia. Quando a Escritura ou a liturgia fala de Deus, sem mais, refere-se quase sempre a Deus Pai. Vale a pena conferir lendo os textos e rezando as orações. Nele começa todo culto, toda oração. Nele termina toda adoração, toda veneração. Dele vem toda bênção, toda graça, para ele volta e sobe toda nossa gratidão. Essa experiência filial em relação a Deus Pai tem a beleza e pureza das águas cristalinas da fonte primordial de nossa fé. Tudo começa e termina em Deus Pai.
Enfim, podemos partir da experiência de um Deus comunhão. "No princípio está a comunhão dos Três e não a solidão do Um" (L. Boff). Antes que os nomes divinos aflorem aos nossos lábios, antes que vivamos a experiência da Unidade radical de Deus, somos envolvidos pela comunhão, pela comunicação interna de Deus que nos alcança. Experimentamos o Pai todo no Filho e no Espírito Santo numa comunhão maravilhosa de amor. Entendemos então o que Jesus uma vez disse: "Quem me viu, viu o Pai" (Jo 14, 9). E poderia ter dito também, "quem me viu, viu o Espírito Santo". Enfim, quem experimenta uma das pessoas, experimenta a comunhão que as une entre si. Noutras palavras, percebemos em primeiro lugar a dimensão de Amor-comunhão entre as Três pessoas divinas. Somos remetidos assim a uma Comunidade primigênia e chamados a viver na terra a dimensão comunitária como realização de nossa dimensão ontológica de ser-comunhão.
7. Deus não é nem masculino, nem feminino, nem neutro, mas Trindade
Deus não é pessoa como nós. É pessoa num sentido sublime. Muito menos têm gênero. Quando o chamamos de Pai, de "Ele" na forma masculina, não queremos, de maneira alguma, atribuir-Lhe uma dimensão de gênero. São arquétipos culturais que influenciaram nessa masculinização dos termos aplicados a Deus, por causa da imagem que fazemos tanto de nós mesmos quanto de Deus. Os antigos só podiam conceber a Deus numa linha de poder, de força, de senhorio. E, por sua vez, o homem encarnava tais estereótipos na sociedade patriarcal dominante no mundo das grandes religiões monoteístas. À mulher se reservavam funções e qualidades de submissão, de cuidados menores. O mundo celeste reproduzia o mundo terrestre do império masculino.
Estamos diante de um antropomorfismo extremamente limitado que teve, infelizmente, muitas conseqüências negativas para a piedade e teologia. Não é solução cair em outro antropomorfismo feminista. Cabe compreender tanto o masculino quanto o feminino como expressões culturais. Mais: importa corrigir as suas deturpações. Hoje o homem e a mulher são entendidos como expressões originais de totalidade do ser humano e não partes nem mesmo complementares. Pois, quer o homem quer a mulher possuem a dimensão masculina e feminina, embora não mesma proporção. E Deus é a fonte e criador dessa totalidade. Por isso, nele existem em sumo grau as qualidades que definem o masculino e o feminino, sem que ele seja algum dos dois gêneros. A tematização do masculino e do feminino são processos culturais, posto tenham fundamento na realidade biológica. Em outras culturas, a explicitação dessas dimensões tem sido e é diferente.
Podemos evidentemente, num momento transitório, para corrigir nossa linguagem sexista e os efeitos colaterais de seu uso, insistir em chamar a Deus, ora de ele, ora de ela; ou invocá-lo, como o Papa João Paulo I o fez: Deus Pai e Mãe! Mais interessante ainda é valorizar na própria revelação os traços masculinos e femininos aplicados a Deus.
Já que Deus transcende os gêneros e realiza, em suprema perfeição, aquilo que o masculino e feminino humanos são, nada impede que, no nível de nossa devoção, atendamos mais, ora às qualidades masculinas, ora às femininas em Deus. Nunca, porém, podemos perder a clara consciência do alcance e do limite de nossos conceitos. Destarte, quando valorizamos o lado masculino de Deus, acentuamos o seu senhorio, sua onipotência criadora, suas gestas libertadoras na história. Por sua vez, quando nos apraz louvar o lado feminino de Deus Mãe, então cultuamo-Lhe as dimensões interiores da vida, o gesto delicado da criação, a animação, o consolo, o último aconchego, a ternura, a gratuidade do dom, a beleza, o repouso, o sossego, a dedicação, o secreto do mistério.
Em toda essa consideração de gênero, o mais importante talvez seja perguntar-se porque Deus quis criar os seres humanos sexuados. Poderia evidentemente ter sido outra a evolução da vida. O mundo material expandiu-se pelas leis físicas. O gênero surgiu com a vida mais complexa. A resposta pode ser encontrada na própria natureza de Deus. Deus é amor. O Amor é o princípio que organiza e sustenta todo o universo. Teilhard de Chardin formulou tão belamente o princípio da amorização que já se manifesta desde o entrelaçar-se das partículas subatômicas. Mas ele atua sobretudo quando a criação chegou ao grau mais perfeito – o ser humano. Então Deus o pensou masculino e feminino, para que assim aparecesse com mais clareza essa sua natureza de amor, reciprocidade, comunhão. Só o masculino ou só o feminino não gera a vida. Deus introduziu para o seu surgir o princípio da participação, da partilha, da comunicação. Podem os homens e mulheres perverter o ato de amor, gerador da vida, mas sua dinâmica interna toda ela fala de dom, de entrega, de aconchego, de reciprocidade. Deus escreveu na estrutura da vida a partilha, o dom mútuo, a entrega confiante, a espera amorosa. A dualidade sexual permite infinitas formas de amor e dessa maneira os seres humanos refletem a imagem de Deus. Nessa perspectiva, o sexo perde toda a mácula que triste tradição ascética lhe impingiu para recuperar a beleza primigênia do projeto de Deus. Com efeito, o masculino e o feminino, na sua dualidade, revelam mais uma faceta do Amor infinito de Deus. Na sua última realidade de verdadeiro Deus Pai e Mãe, Ele quis que tivéssemos pai e mãe para que surgíssemos para a vida.
Conclusão
No seio da Trindade, tudo é Amor. Não só porque a pessoa do Espírito Santo o torna substancial, mas também porque todo o Pai está no Filho e no Espírito Santo, como Três eternos amantes. O mesmo se pode dizer de cada pessoa que está toda na outra. Essa é a forma do amor divino. Ele se irradiou na criação, ao estabelecer-se como princípio organizador de tudo. E sobretudo na criação do feminino e do masculino de modo que a nova vida surgisse de sua fusão. E no panorama da existência, a dualidade do gênero, para além da geração da vida, vem criando, ao longo da história, infinitas possibilidades de expressão para que os seres humanos comecem também a realizar já na terra o seu último fim de ser eternamente amor com Deus amor.
Plano Nacional dos Direitos Humanos
O olhar do teólogo
Plano Nacional dos Direitos Humanos
J. B. Libanio
fev/2010
A chegada da justiça transparente não significa revanchismo, mas unicamente a hora da verdade. Toda violação dos direitos humanos não prescreve. Em princípio, o crime nunca deixa de ser crime. O tempo não transforma a maldade em bondade, o crime em inocência, a injustiça em justiça. A única realidade capaz de produzir tal transformação se chama: arrependimento, confissão, reconciliação, perdão e não ocultação, escondimento, negação.
Qualquer plano dos Direitos Humanos funda-se no princípio da inalienável dignidade da pessoa humana. A razão chegou lá com muito esforço. Muitas revoluções, lutas, sofrimentos, mortes custaram aos combatentes e defensores dessa causa. A Revolução Francesa, embora na ambigüidade de toda realidade humana, assinalou marco definitivo na linha dos direitos humanos. A três palavrinhas mágicas – liberdade, igualdade e fraternidade – ressoam até hoje.
O oposto mostra o lado escuro da existência humana. Contra a liberdade, existem as opressões, dominações, prisões arbitrárias, abuso dos presos, torturas de indefesos, assassinatos e tantas outras violações.
Contra a igualdade grassam as doenças dos racismos, discriminação religiosa, escandalosas situações sociais, vergonhosas distâncias salariais, exclusões, elitismos, violação do direito ao trabalho e lá vão inúmeras outras situações que segregam, marginalizam.
Contra a fraternidade, levantam-se o monstruoso individualismo moderno, a insensibilidade em face do sofrimento e da pobreza e miséria alheia, a concorrência desleal, a criação dos clubes fechados, as minorias arrogantes, a segregação de classes e até nações.
Não basta afirmar a tríade da Revolução Francesa. A ONU avançou e detalhou tais direitos na Carta dos Direitos Humanos. Lá os países têm um paradigma a seguir. O Plano Nacional adquire sentido ao tornar tais conquistas da humanidade e patrimônio da cultura ocidental em lei exigente, em realização em nossas terras. Estamos longe de viver tais valores da dignidade humana. A cada passo deparamos com violações do ser humano, não só nas formas monstruosas da tortura e assassinatos de presos indefesos, mas também em mil outras expressões de injustiça social.
A Igreja, que cometeu crimes contra a pessoa humana pela Inquisição e por formas opressoras de evangelização, em tempo em que a consciência humana ainda não tinha chegado ao patamar atual, lavou sua culpa passada por pública confissão desses pecados. João Paulo II celebrou na Basílica de São Pedro no início do milênio, em tempo quaresmal, comovedora celebração penitencial. Lá desfilaram os cardeais e arcebispos dos dicastérios romanos pedindo perdão a Deus e à humanidade pelos crimes passados. Isso nos falta no Brasil dos anos escuros da repressão.
Plano Nacional dos Direitos Humanos
J. B. Libanio
fev/2010
A chegada da justiça transparente não significa revanchismo, mas unicamente a hora da verdade. Toda violação dos direitos humanos não prescreve. Em princípio, o crime nunca deixa de ser crime. O tempo não transforma a maldade em bondade, o crime em inocência, a injustiça em justiça. A única realidade capaz de produzir tal transformação se chama: arrependimento, confissão, reconciliação, perdão e não ocultação, escondimento, negação.
Qualquer plano dos Direitos Humanos funda-se no princípio da inalienável dignidade da pessoa humana. A razão chegou lá com muito esforço. Muitas revoluções, lutas, sofrimentos, mortes custaram aos combatentes e defensores dessa causa. A Revolução Francesa, embora na ambigüidade de toda realidade humana, assinalou marco definitivo na linha dos direitos humanos. A três palavrinhas mágicas – liberdade, igualdade e fraternidade – ressoam até hoje.
O oposto mostra o lado escuro da existência humana. Contra a liberdade, existem as opressões, dominações, prisões arbitrárias, abuso dos presos, torturas de indefesos, assassinatos e tantas outras violações.
Contra a igualdade grassam as doenças dos racismos, discriminação religiosa, escandalosas situações sociais, vergonhosas distâncias salariais, exclusões, elitismos, violação do direito ao trabalho e lá vão inúmeras outras situações que segregam, marginalizam.
Contra a fraternidade, levantam-se o monstruoso individualismo moderno, a insensibilidade em face do sofrimento e da pobreza e miséria alheia, a concorrência desleal, a criação dos clubes fechados, as minorias arrogantes, a segregação de classes e até nações.
Não basta afirmar a tríade da Revolução Francesa. A ONU avançou e detalhou tais direitos na Carta dos Direitos Humanos. Lá os países têm um paradigma a seguir. O Plano Nacional adquire sentido ao tornar tais conquistas da humanidade e patrimônio da cultura ocidental em lei exigente, em realização em nossas terras. Estamos longe de viver tais valores da dignidade humana. A cada passo deparamos com violações do ser humano, não só nas formas monstruosas da tortura e assassinatos de presos indefesos, mas também em mil outras expressões de injustiça social.
A Igreja, que cometeu crimes contra a pessoa humana pela Inquisição e por formas opressoras de evangelização, em tempo em que a consciência humana ainda não tinha chegado ao patamar atual, lavou sua culpa passada por pública confissão desses pecados. João Paulo II celebrou na Basílica de São Pedro no início do milênio, em tempo quaresmal, comovedora celebração penitencial. Lá desfilaram os cardeais e arcebispos dos dicastérios romanos pedindo perdão a Deus e à humanidade pelos crimes passados. Isso nos falta no Brasil dos anos escuros da repressão.
Diocese de Tocantinopólis e Paróquia de Araguatins promoveram grande encontro das CEBs no Bico do Papagaio
Aconteceu no dia 06 de junho de 2010 (Domingo) uma grande assembléia das CEBs – Comunidades Eclesiais de Base de Araguatins. O encontro reuniu 500 pessoas vindas de 42 comunidades do município de Araguatins e outros municípios do Bico do Papagaio. Houve a presença do Bispo da Diocese de Tocantinopólis, Dom Giovane, das irmãs helena, articuladora das CEBS no Tocantins, e Teresinha membro da Diocese, alem de representantes de entidades que atuam na região, APA-TO (João palmeira/assessor), CPT (Irenir/agente), e Lideranças de Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais (João Abelha e Lucena).
Abertura com Pe. Edison e comissão organizadora
Valorização da cultura popular - Bispo D. Giovane e J. Abelha
Plenária dos participantes da assembléia
O objetivo da assembléia foi de fortalecer a articulação entre as comunidades e aprofundar os temas relacionados a caminhada destas. O que é CEBs; O modelo de igreja onde foram identificadas os 04 aspectos que são sustento de uma comunidade: 1)Formação; 2)Espiritualidade; 3) Missionariedade e 4) Realidade-contexto. Na formação falou-se da importância de fazer uma formação que ajude o cristão a tomar consciência da sua atuação eclesial, política e comprometida com a casa comum : O UNIVERSO. No ponto da Espiritualidade para tomarmos consciência da importância de uma espiritualidade comprometida com a causa dos pobres, onde a fé se constitui na motivação para a construção do reino. Na Missionariedade, a missão é vivida nos valores da solidariedade da partilha, da justiça e do encontro com o outro. E por ultimo na realidade, que está relacionado com o eixo central das CEBs, onde há o elo entre FÉ e VIDA. O que acontece na vida é conteúdo para as celebrações, compromissos e espiritualidades das CEBs, que estas são fonte e semente de variados serviços e ministérios a favor da vida na sociedade e na igreja .
Na parte da tarde, foi realizado trabalho de grupos para os presentes responderem aos seguintes questionamentos: Que práticas, ações, posturas, atitudes temos em nossa diocese, paróquias, pastorais, movimentos e organismos que vale a pena continuar trabalhando? ; Que modelo de Igreja e de pastoral queremos construir na realidade de nossa diocese? ; Que novas realidades, que novos desafios, que novas perguntas a realidade está colocando para nós Igreja, hoje? E Que novas práticas sugerimos para responder a essas realidades, desafios e perguntas?
Muitas foram as respostas que os fies , forma participativa e envolvente, deram a própria igreja, dentre estas destacamos algumas: Queremos continuar com os movimentos e pastorais já existentes com mais engajamento, compromisso e conscientização; Queremos igreja alegre, viva, participativa, missionária e comprometida com o Evangelho e com a realidade social (educação, saúde, política, segurança pública, meio ambiente); Queremos Igreja que vai aonde o povo está, nas escolas, no trabalho, nas prisões, nos hospitais, em todos os lugares; Como atrair os jovens/adolescentes e fazer que eles permaneçam e se envolvam nos serviços da Igreja; Queremos evangelizar a partir da realidade, colocar-se a serviço de Deus e de nossos irmãos através da doação em prol de uma igreja justa e fraterna; Queremos que os grupos de jovens sejam preparados e assessorados por adultos, para que tenham um direcionamento, metodologia de encontros, para que sejam jovens missionários e futuros adultos que dêem continuidade na missão.
Momento da mística de abertura
Muita alegria e participação
Momento lúdico com canto
O rosto de nossos jovens presente
Durante todo o evento houve muita animação e participação dos comunitários, que trouxeram muitos cantos, poesias, encenações e testemunhos, que alegraram o ambiente do encontro, animando a todos e todas presentes. "Esperamos que esta iniciativa aqui realizada contagiem outras paróquias, outros padres e lideranças para realizarem encontros das CEBS em outras comunidades do Bico do Papagaio", comentou a Irmã Helena com grande satisfação . A assembléia foi encerrada pelo Bispo Dom Giovane e Pe. Edison com a realização da missa final e a benção de envio das participantes para suas comunidade para serem novas sementes de paixão pela causa do POVO e de DEUS.
Dom Giovane e Pe. Josimo : Sementes de inspiração de uma nova CEBs
Irmãs da Diocese de Tocantinopólis visitam comunidades de Axixa e Praia Norte para rearticular as CEBs no Bico do Papagaio.
Estiveram participando neste sábado (05/junho), na comunidade de Lagoa de São Salvador no município de Axixá , durante a feira das quebradeiras de coco da comunidade e inauguração do galpão de reunião da comunidade as irmãs da Diocese de Tocantinopólis, Irmã Helena e Terezinha , que são responsáveis pela articulação das Comunidades Eclesiais de Base, as chamadas CEBs, acompanhadas da D. Raimundinha de Araguaina. Nesta oportunidade também estiveram presentes e prestigiando o evento da comunidade, João Palmeira e D. Raimunda , o primeiro assessor da APA-TO e apoiador de diversos movimentos sociais da região e do estado, e a segunda liderança e quebradeira de coco do Bico do Papagaio.
Na seqüência as irmãs, foram para a comunidade de São Felix, no município de Praia Norte, visitar o cantor da terra João Abelha e prestar solidariedade a líder comunitária Irenir que é quebradeira de coco e agente da Comissão Pastoral da Terra – CPT no Bico do Papagaio. Estas visitas foram partes do roteiro de viagem das irmãs para participar da grande assembléia de CEBs de Araguatins, que aconteceu no domingo, com a participação de 500 pessoas vindas de 42 comunidades e conduzidas pelo Pe. Edison, Paróquia São Vicente Ferrer e Bispo D. Giovane da Diocese de Tocantinopólis.
Raimundinha, João Palmeira, Ir. Helena , D. Raimunda e Ir. Terezinha
Uma vida na América Latina a serviço da libertação
Entrevista com José Comblin:
Uma vida na América Latina a serviço da libertação
O IHU recebeu a visita do Pe. José Comblin, em junho de 2008 Ele palestrou sobre a originalidade histórica da Conferência de Medellín durante o evento De Medellín a Aparecida: marcos, trajetórias e perspectivas da Igreja Latino-Americana. A IHU On-Line aproveitou a sua vinda e conversou pessoalmente com ele sobre sua trajetória, sua vida e sobre alguns aspectos prática teológica, hoje. Muito franco, ele afirma que não haverá outra geração como a de Medellín. "Uma geração como aquela que fez Medellín só acontece uma vez na história. Quando diversos países se encontram com a mesma perspectiva, é milagroso! É muito difícil se imaginar que isso possa se reproduzir novamente". Um pouco da sua história pode ser lida nesta entrevista. Um pouco apenas, visto que a história de quem dedicou praticamente uma vida toda à América Latina, como é seu caso, é bastante longa e profunda. José Comblin é teólogo. Participou do primeiro grupo da Teologia da Libertação. Esteve na raiz das equipes de formação de seminaristas no campo em Pernambuco e na Paraíba (1969), do seminário rural de Talca, no Chile (1978) e, depois, na Paraíba, em Serra Redonda (1981). Estas iniciativas deram origem à chamada Teologia da enxada. Além disso, esteve na origem da criação dos Missionários do Campo (1981), das Missionárias do Meio Popular (1986), dos Missionários formados em Juazeiro da Bahia (1989), na Paraíba (1994) e em Tocantins (1997). É autor de inúmeros livros, dentre eles A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978). O IHU acaba de publicar o Cadernos Teologia Pública nº 36, intitulado Conferência Episcopal de Medellín: 40 anos depois, com a conferência que ele proferiu no evento.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o senhor veio para o Brasil?
José Comblin - Eu vim a pedido do Papa Pio XII, que tinha um temor tremendo do comunismo. Ele fez um apelo, na década de 1950, a todos os episcopados do mundo para mandar sacerdotes à América Latina com o intuito de salvar o continente do comunismo, porque estava convencido de que este ia invadir toda a América Latina. Aí, então, todas as dioceses foram avisadas pelos seus respectivos bispos de que o Papa tinha pedido isso. O meu bispo deu a entender que não gostava muito da idéia, mas, já que era um pedido do Papa, se houvesse algum candidato ele iria examinar. Aí me apresentei porque já estava cansado de ficar lá (na Bélgica) e procurava uma oportunidade para sair do país. Quase todos que saíram de lá para lutar contra o comunismo viraram comunistas (risos). Porque, chegando aqui, logo se viu que quem tinha preocupação social era visto como comunista. Então, foi isso. Havia muitos "comunistas" e por isso havia a impressão de que o país iria se transformar. Agora, comunista mesmo, do partido...
Trabalhei por quatro anos em Campinas e um dia estava trabalhando com os operários de lá e perguntei se havia comunismo no país e eles me responderam que sim. Então, eu disse que ainda não tinha visto e me falaram: "Sim, tem muitos comunistas em Campinas, mas a metade é da polícia que está infiltrada". Era, de fato, um número insignificante diante do temor do Papa. Getúlio Vargas tinha acabado com o comunismo.
Antes de vir, sabia que precisava vir para a América Latina e que era necessário escolher entre a língua espanhola e o português. Escolhi o português, mas é claro que eu não sabia nada do Brasil. Ninguém, aliás, conhecia o país. Então, com dois colegas, respondemos ao pedido do arcebispo de Campinas. Ele queria três sacerdotes que fossem doutores, mas nunca explicou o motivo e para quê. Ficamos lá quatro anos e ele nunca disse o que queria. Depois de quatro anos, eu falei: "Eu tenho a impressão de estar sobrando; o senhor permite que a gente vá buscar outros desafios?". E ele nos respondeu: "Ah! Pois não, pois não". Eu só soube a explicação 30 anos depois. O bispo não estava satisfeito com o reitor da Universidade Católica. O reitor administrava a universidade como um negócio e não tinha lá nenhuma pessoa para substituí-lo e aí foi pedir lá fora. O reitor logo entendeu e criou todo um movimento de resistência e queria defender sua posição. Então, o bispo viu que o reitor tinha uma força social muito grande e, depois de quatro anos, ele nos liberou e cada um foi procurar outra trabalho.
IHU On-Line - E, hoje, olhando para trás, como o senhor analisa a sua vida na América Latina?
José Comblin - Isso foi a salvação, porque eu, há 60 anos, estava muito consciente do movimento de descristianização da Europa, que hoje já está quase completo. Os sinais já eram claros naquele tempo. A Igreja estava no governo da maioria dos países, havia uma democracia cristã, escolas poderosas, organizações, sindicatos... Mas faltava fé! Como passar a vida toda assistindo uma decadência? Primeiro, eu procurei ir para a África, mas não não foi possível e, em seguida, veio Pio XXI com essa campanha e aproveitei. Foi muito interessante. Toda etapa entre 1960 e 1985 foi uma aventura muito grande, uma época muito interessante.
IHU On-Line - E como foi seu retorno para o Brasil depois do exílio?
José Comblin - Houve dois retornos. Em 1962, eu recebi um convite da Faculdade de Teologia da Universidade do Chile. Como não tinha nada definido no Brasil, aceitei o convite deles e assinei um contrato de três anos. Nas férias, eu vinha passear pelo Brasil e aí Dom Hélder me convidou. Ele já estava no Recife. Ali fiquei sete anos. Em 1972, aconteceu a expulsão do Brasil e voltei para o Chile que estava sob o governo de Allende. Pensei que naquele país poderiam acontecer coisas interessantes. Só que um ano depois aconteceu o golpe. Fiquei lá até 1980 e fui expulso do Chile também. Nessa época, as portas do Brasil voltaram a se abrir para mim e com isso voltei. Dom Hélder já estava no final do seu mandato e procuramos Dom José Maria Pires, arcebispo da Paraíba, que tinha a mesma inspiração, mas era bem mais jovem. Dom José Maria Pires nos acolheu e acolheu todos os projetos que a gente tinha.
IHU On-Line - Pode nos contar um pouco sobre o seu trabalho teórico antes de vir para o Brasil?
José Comblin - Antes de vir para o Brasil, não fiz muita coisa de Teologia. Depois dos estudos, fui enviado a uma paróquia onde fiquei oito anos. Fiz alguns cursinhos sem significado importante, algumas assistências... Nada de importante.
IHU On-Line - Como o senhor analisa hoje a presença da Igreja em sua vida e a sua presença na evolução da Igreja Católica?
José Comblin - Parte dessa resposta você precisa perguntar aos outros o que eles acham. Para mim, foi muito interessante. Eu aproveitei muito. Eu pude conviver com Dom Hélder por muitos anos, assim como com Dom Leônidas Proaño, no Equador, com Manuel Larraín, no Chile... Com todos os grandes da Igreja latino-americana. Conheci os grandes bispos de Medellín pessoalmente, colaborando muito, porque andei muito pela América Latina. Depois veio um novo pontificado e aí a coisa mudou. Mas, como eu digo sempre, uma geração como aquela que fez Medellín só acontece uma vez na história. Quando diversos países se encontram com a mesma perspectiva, é milagroso! É muito difícil se imaginar que isso possa se reproduzir novamente. Daqui a mil anos, talvez. Foi uma situação privilegiada para mim.
IHU On-Line - Como o senhor avalia a evolução da Igreja e das religiões?
José Comblin - Depois da aventura do Concílio, chegou João Paulo II, o Papa polonês. Sabendo que era polonês, já se podia prever tudo o que iria acontecer depois. Polonês é autoritário. Na Polônia, nunca houve experiência democrática: o chefe é o chefe, simplesmente. Ele era assim. Era muito gentil e amável, mas autoritário. Os novos bispos nomeados pelo Papa eram piores do que os que estavam antes. Isso ainda continua. Alguns se salvam, claro. A impressão que se tem é que primeiro se escolhe aqueles que têm obediência à Santa Sé. Essa é a primeira condição. A segunda é não ter pensamento nem iniciativa, para não se comprometer. Criou-se uma ideologia e um tipo de religião para poucos. Muita gente escapa, mas globalmente é a hierarquia que fala. Às vezes, alguém levanta a palavra, como Dom Luiz Cappio. A primeira vez que ele fez o jejum veio uma carta de Roma obrigando-o a deixar dele, isso porque o Lula mandou um embaixador à Roma, porque ele não conseguiu fazer com que Dom Luiz cessasse o jejum. Durante o segundo jejum, Roma foi mais prudente, mas ele me contou que recebeu uma carta que recomendava a desistência. Ele me disse que como era uma recomendação, e não ordem, não tinha por que aceitar a recomendação, até que houve o incidente do desmaio e ele finalmente deixou do jejum.
IHU On-Line - Como o senhor analisa o trabalho teológico atual?
José Comblin - Faltou outra geração da Teologia. Agora todos têm mais de 70 anos e depois disso um ou outro se destacou. Coincide com o fato de que todos os seminaristas que estudam fora vão para Roma. Precisamos de uma nova geração que não queira estudar em Roma, mas até agora isso ainda não aconteceu. No Terceiro Mundo, apareceram, depois da crise sacerdotal posterior ao Concílio, seminaristas com um nível intelectual muito fraco. Na medida em que o nível intelectual é fraco, eles são mais autoritários e se agarram no direito canônico. Mas, hoje, os evangelizadores são os movimentos, pois João Paulo II sempre desconfiou dos religiosos. No entanto, esses movimentos são burgueses. De qualquer modo, o mundo sempre muda...
No entanto, se hoje a Igreja não se move é porque a sociedade não se move. O que acontece na América Latina são sinais positivos, porque a influência que os Estados Unidos têm sobre ela não conseguiu derrubar Chávez e Correa. Vamos ver o que acontece na Bolívia! Agora, depende do Lula, porque se grandes países aceitam a divisão da Bolívia isso se dará tranqüilamente, mas, se o Brasil e Argentina se opõem, o projeto de divisão não andará. De qualquer maneira, só a eleição de um índio mostra que a sociedade latino-americana também está mudando
José Comblin
Uma vida na América Latina a serviço da libertação
O IHU recebeu a visita do Pe. José Comblin, em junho de 2008 Ele palestrou sobre a originalidade histórica da Conferência de Medellín durante o evento De Medellín a Aparecida: marcos, trajetórias e perspectivas da Igreja Latino-Americana. A IHU On-Line aproveitou a sua vinda e conversou pessoalmente com ele sobre sua trajetória, sua vida e sobre alguns aspectos prática teológica, hoje. Muito franco, ele afirma que não haverá outra geração como a de Medellín. "Uma geração como aquela que fez Medellín só acontece uma vez na história. Quando diversos países se encontram com a mesma perspectiva, é milagroso! É muito difícil se imaginar que isso possa se reproduzir novamente". Um pouco da sua história pode ser lida nesta entrevista. Um pouco apenas, visto que a história de quem dedicou praticamente uma vida toda à América Latina, como é seu caso, é bastante longa e profunda. José Comblin é teólogo. Participou do primeiro grupo da Teologia da Libertação. Esteve na raiz das equipes de formação de seminaristas no campo em Pernambuco e na Paraíba (1969), do seminário rural de Talca, no Chile (1978) e, depois, na Paraíba, em Serra Redonda (1981). Estas iniciativas deram origem à chamada Teologia da enxada. Além disso, esteve na origem da criação dos Missionários do Campo (1981), das Missionárias do Meio Popular (1986), dos Missionários formados em Juazeiro da Bahia (1989), na Paraíba (1994) e em Tocantins (1997). É autor de inúmeros livros, dentre eles A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978). O IHU acaba de publicar o Cadernos Teologia Pública nº 36, intitulado Conferência Episcopal de Medellín: 40 anos depois, com a conferência que ele proferiu no evento.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o senhor veio para o Brasil?
José Comblin - Eu vim a pedido do Papa Pio XII, que tinha um temor tremendo do comunismo. Ele fez um apelo, na década de 1950, a todos os episcopados do mundo para mandar sacerdotes à América Latina com o intuito de salvar o continente do comunismo, porque estava convencido de que este ia invadir toda a América Latina. Aí, então, todas as dioceses foram avisadas pelos seus respectivos bispos de que o Papa tinha pedido isso. O meu bispo deu a entender que não gostava muito da idéia, mas, já que era um pedido do Papa, se houvesse algum candidato ele iria examinar. Aí me apresentei porque já estava cansado de ficar lá (na Bélgica) e procurava uma oportunidade para sair do país. Quase todos que saíram de lá para lutar contra o comunismo viraram comunistas (risos). Porque, chegando aqui, logo se viu que quem tinha preocupação social era visto como comunista. Então, foi isso. Havia muitos "comunistas" e por isso havia a impressão de que o país iria se transformar. Agora, comunista mesmo, do partido...
Trabalhei por quatro anos em Campinas e um dia estava trabalhando com os operários de lá e perguntei se havia comunismo no país e eles me responderam que sim. Então, eu disse que ainda não tinha visto e me falaram: "Sim, tem muitos comunistas em Campinas, mas a metade é da polícia que está infiltrada". Era, de fato, um número insignificante diante do temor do Papa. Getúlio Vargas tinha acabado com o comunismo.
Antes de vir, sabia que precisava vir para a América Latina e que era necessário escolher entre a língua espanhola e o português. Escolhi o português, mas é claro que eu não sabia nada do Brasil. Ninguém, aliás, conhecia o país. Então, com dois colegas, respondemos ao pedido do arcebispo de Campinas. Ele queria três sacerdotes que fossem doutores, mas nunca explicou o motivo e para quê. Ficamos lá quatro anos e ele nunca disse o que queria. Depois de quatro anos, eu falei: "Eu tenho a impressão de estar sobrando; o senhor permite que a gente vá buscar outros desafios?". E ele nos respondeu: "Ah! Pois não, pois não". Eu só soube a explicação 30 anos depois. O bispo não estava satisfeito com o reitor da Universidade Católica. O reitor administrava a universidade como um negócio e não tinha lá nenhuma pessoa para substituí-lo e aí foi pedir lá fora. O reitor logo entendeu e criou todo um movimento de resistência e queria defender sua posição. Então, o bispo viu que o reitor tinha uma força social muito grande e, depois de quatro anos, ele nos liberou e cada um foi procurar outra trabalho.
IHU On-Line - E, hoje, olhando para trás, como o senhor analisa a sua vida na América Latina?
José Comblin - Isso foi a salvação, porque eu, há 60 anos, estava muito consciente do movimento de descristianização da Europa, que hoje já está quase completo. Os sinais já eram claros naquele tempo. A Igreja estava no governo da maioria dos países, havia uma democracia cristã, escolas poderosas, organizações, sindicatos... Mas faltava fé! Como passar a vida toda assistindo uma decadência? Primeiro, eu procurei ir para a África, mas não não foi possível e, em seguida, veio Pio XXI com essa campanha e aproveitei. Foi muito interessante. Toda etapa entre 1960 e 1985 foi uma aventura muito grande, uma época muito interessante.
IHU On-Line - E como foi seu retorno para o Brasil depois do exílio?
José Comblin - Houve dois retornos. Em 1962, eu recebi um convite da Faculdade de Teologia da Universidade do Chile. Como não tinha nada definido no Brasil, aceitei o convite deles e assinei um contrato de três anos. Nas férias, eu vinha passear pelo Brasil e aí Dom Hélder me convidou. Ele já estava no Recife. Ali fiquei sete anos. Em 1972, aconteceu a expulsão do Brasil e voltei para o Chile que estava sob o governo de Allende. Pensei que naquele país poderiam acontecer coisas interessantes. Só que um ano depois aconteceu o golpe. Fiquei lá até 1980 e fui expulso do Chile também. Nessa época, as portas do Brasil voltaram a se abrir para mim e com isso voltei. Dom Hélder já estava no final do seu mandato e procuramos Dom José Maria Pires, arcebispo da Paraíba, que tinha a mesma inspiração, mas era bem mais jovem. Dom José Maria Pires nos acolheu e acolheu todos os projetos que a gente tinha.
IHU On-Line - Pode nos contar um pouco sobre o seu trabalho teórico antes de vir para o Brasil?
José Comblin - Antes de vir para o Brasil, não fiz muita coisa de Teologia. Depois dos estudos, fui enviado a uma paróquia onde fiquei oito anos. Fiz alguns cursinhos sem significado importante, algumas assistências... Nada de importante.
IHU On-Line - Como o senhor analisa hoje a presença da Igreja em sua vida e a sua presença na evolução da Igreja Católica?
José Comblin - Parte dessa resposta você precisa perguntar aos outros o que eles acham. Para mim, foi muito interessante. Eu aproveitei muito. Eu pude conviver com Dom Hélder por muitos anos, assim como com Dom Leônidas Proaño, no Equador, com Manuel Larraín, no Chile... Com todos os grandes da Igreja latino-americana. Conheci os grandes bispos de Medellín pessoalmente, colaborando muito, porque andei muito pela América Latina. Depois veio um novo pontificado e aí a coisa mudou. Mas, como eu digo sempre, uma geração como aquela que fez Medellín só acontece uma vez na história. Quando diversos países se encontram com a mesma perspectiva, é milagroso! É muito difícil se imaginar que isso possa se reproduzir novamente. Daqui a mil anos, talvez. Foi uma situação privilegiada para mim.
IHU On-Line - Como o senhor avalia a evolução da Igreja e das religiões?
José Comblin - Depois da aventura do Concílio, chegou João Paulo II, o Papa polonês. Sabendo que era polonês, já se podia prever tudo o que iria acontecer depois. Polonês é autoritário. Na Polônia, nunca houve experiência democrática: o chefe é o chefe, simplesmente. Ele era assim. Era muito gentil e amável, mas autoritário. Os novos bispos nomeados pelo Papa eram piores do que os que estavam antes. Isso ainda continua. Alguns se salvam, claro. A impressão que se tem é que primeiro se escolhe aqueles que têm obediência à Santa Sé. Essa é a primeira condição. A segunda é não ter pensamento nem iniciativa, para não se comprometer. Criou-se uma ideologia e um tipo de religião para poucos. Muita gente escapa, mas globalmente é a hierarquia que fala. Às vezes, alguém levanta a palavra, como Dom Luiz Cappio. A primeira vez que ele fez o jejum veio uma carta de Roma obrigando-o a deixar dele, isso porque o Lula mandou um embaixador à Roma, porque ele não conseguiu fazer com que Dom Luiz cessasse o jejum. Durante o segundo jejum, Roma foi mais prudente, mas ele me contou que recebeu uma carta que recomendava a desistência. Ele me disse que como era uma recomendação, e não ordem, não tinha por que aceitar a recomendação, até que houve o incidente do desmaio e ele finalmente deixou do jejum.
IHU On-Line - Como o senhor analisa o trabalho teológico atual?
José Comblin - Faltou outra geração da Teologia. Agora todos têm mais de 70 anos e depois disso um ou outro se destacou. Coincide com o fato de que todos os seminaristas que estudam fora vão para Roma. Precisamos de uma nova geração que não queira estudar em Roma, mas até agora isso ainda não aconteceu. No Terceiro Mundo, apareceram, depois da crise sacerdotal posterior ao Concílio, seminaristas com um nível intelectual muito fraco. Na medida em que o nível intelectual é fraco, eles são mais autoritários e se agarram no direito canônico. Mas, hoje, os evangelizadores são os movimentos, pois João Paulo II sempre desconfiou dos religiosos. No entanto, esses movimentos são burgueses. De qualquer modo, o mundo sempre muda...
No entanto, se hoje a Igreja não se move é porque a sociedade não se move. O que acontece na América Latina são sinais positivos, porque a influência que os Estados Unidos têm sobre ela não conseguiu derrubar Chávez e Correa. Vamos ver o que acontece na Bolívia! Agora, depende do Lula, porque se grandes países aceitam a divisão da Bolívia isso se dará tranqüilamente, mas, se o Brasil e Argentina se opõem, o projeto de divisão não andará. De qualquer maneira, só a eleição de um índio mostra que a sociedade latino-americana também está mudando
José Comblin
O IMPÉRIO MANDA, AS COLÔNIAS OBEDECEM
O IMPÉRIO MANDA, AS COLÔNIAS OBEDECEM
Frei Betto e João Pedro Stédile
Após a Segunda Guerra Mundial, quando as forças aliadas saíram vitoriosas, o governo dos EUA tentou tirar o máximo proveito de sua vitória militar. Articulou a Assembléia das Nações Unidas dirigida por um Conselho de Segurança integrado pelos sete países mais poderosos, com poder de veto sobre as decisões dos demais.
Impôs o dólar como moeda internacional, submeteu a Europa ao Marshall, de subordinação econômica, e instalou mais de 300 bases militares na Europa e na Ásia, cujos governos e mídia jamais levantam a voz contra essa intervenção branca.
O mundo inteiro só não se curvou à Casa Branca porque existia a União Soviética para equilibrar a correlação de forças. Contra ela, os EUA travaram uma guerra sem limites, até derrotá-la política, militar e ideologicamente.
A partir da década de 90, o mundo ficou sob hegemonia total do governo e do capital estadunidenses, que passaram a impor suas decisões a todos os governos e povos, tratados como vassalos coloniais.
Quando tudo parecia calmo no império global, dominado pelo Tio Sam, eis que surgem resistências. Na América Latina, além de Cuba, outros povos elegem governos antiimperialistas. No Oriente Médio, os EUA tiveram que apelar para invasões militares a fim de manter o controle sobre o petróleo, sacrificando milhares de vidas de afegãos, iraquianos, palestinos e paquistaneses.
Nesse contexto surge no Irã um governo decidido a não se submeter aos interesses dos EUA. Dentro de sua política de desenvolvimento nacional, instala usinas nucleares e isso é intolerável para o Império.
A Casa Branca não aceita democracia entre os povos. Que significa todos os países terem direitos iguais. Não aceita a soberania nacional de outros povos. Não admite que cada povo e respectivo governo controlem seus recursos naturais.
Os EUA transferiram tecnologia nuclear para o Paquistão e Israel, que hoje possuem bomba atômica. Mas não toleram o acesso do Irã à tecnologia nuclear, mesmo para fins pacíficos. Por quê? De onde derivam tais poderes imperiais? De alguma convenção internacional? Não, apenas de sua prepotência militar.
Em Israel, há mais de vinte anos, Moshai Vanunu, que trabalhava na usina atômica, preocupado com a insegurança que isso representa para toda a região, denunciou que o governo já tinha a bomba. Resultado: foi sequestrado e condenado à prisão perpetua, comutada para 20 anos, depois de grande pressão internacional. Até hoje vive em prisão domiciliar, proibido de contato com qualquer estrangeiro.
Todos somos contra o armamento militar e bases militares estrangeiras em nossos países. Somos contrários ao uso da energia nuclear, devido aos altos riscos, e ao uso abusivo de tantos recursos econômicos em gastos militares.
O governo do Irã ousa defender sua soberania. O governo usamericano só não invadiu militarmente o Irã porque este tem 60 milhões de habitantes, é uma potência petrolífera e possui um governo nacionalista. As condições são muito diferentes do atoleiro chamado Iraque.
Felizmente, a diplomacia brasileira e de outros governos se envolveu na contenda. Esperamos que sejam respeitados os direitos do Irã, como de qualquer outro país, sem ameaças militares.
Resta-nos torcer para que aumentem as campanhas, em todo mundo, pelo desarmamento militar e nuclear. Oxalá o quanto antes se destinem os recursos de gastos militares para solucionar problemas como a fome, que atinge mais de um bilhão de pessoas.
Os movimentos sociais, ambientalistas, igrejas e entidades internacionais se reuniram recentemente em Cochabamba, numa conferência ecológica mundial, convocada pelo presidente Evo Morales. Decidiu-se preparar um plebiscito mundial, em abril de 2011. As pessoas serão convocadas a refletir e votar se concordam com a existência de bases militares estrangeiras em seus países; com os excessivos gastos militares e que os países do Hemisfério Sul continuem pagando a conta das agressões ao meio ambiente praticadas pelas indústrias poluidoras do Norte.
A luta será longa, mas nessa semana podemos comemorar uma pequena vitória antiimperialista.
Frei Betto
Frei Betto e João Pedro Stédile
Após a Segunda Guerra Mundial, quando as forças aliadas saíram vitoriosas, o governo dos EUA tentou tirar o máximo proveito de sua vitória militar. Articulou a Assembléia das Nações Unidas dirigida por um Conselho de Segurança integrado pelos sete países mais poderosos, com poder de veto sobre as decisões dos demais.
Impôs o dólar como moeda internacional, submeteu a Europa ao Marshall, de subordinação econômica, e instalou mais de 300 bases militares na Europa e na Ásia, cujos governos e mídia jamais levantam a voz contra essa intervenção branca.
O mundo inteiro só não se curvou à Casa Branca porque existia a União Soviética para equilibrar a correlação de forças. Contra ela, os EUA travaram uma guerra sem limites, até derrotá-la política, militar e ideologicamente.
A partir da década de 90, o mundo ficou sob hegemonia total do governo e do capital estadunidenses, que passaram a impor suas decisões a todos os governos e povos, tratados como vassalos coloniais.
Quando tudo parecia calmo no império global, dominado pelo Tio Sam, eis que surgem resistências. Na América Latina, além de Cuba, outros povos elegem governos antiimperialistas. No Oriente Médio, os EUA tiveram que apelar para invasões militares a fim de manter o controle sobre o petróleo, sacrificando milhares de vidas de afegãos, iraquianos, palestinos e paquistaneses.
Nesse contexto surge no Irã um governo decidido a não se submeter aos interesses dos EUA. Dentro de sua política de desenvolvimento nacional, instala usinas nucleares e isso é intolerável para o Império.
A Casa Branca não aceita democracia entre os povos. Que significa todos os países terem direitos iguais. Não aceita a soberania nacional de outros povos. Não admite que cada povo e respectivo governo controlem seus recursos naturais.
Os EUA transferiram tecnologia nuclear para o Paquistão e Israel, que hoje possuem bomba atômica. Mas não toleram o acesso do Irã à tecnologia nuclear, mesmo para fins pacíficos. Por quê? De onde derivam tais poderes imperiais? De alguma convenção internacional? Não, apenas de sua prepotência militar.
Em Israel, há mais de vinte anos, Moshai Vanunu, que trabalhava na usina atômica, preocupado com a insegurança que isso representa para toda a região, denunciou que o governo já tinha a bomba. Resultado: foi sequestrado e condenado à prisão perpetua, comutada para 20 anos, depois de grande pressão internacional. Até hoje vive em prisão domiciliar, proibido de contato com qualquer estrangeiro.
Todos somos contra o armamento militar e bases militares estrangeiras em nossos países. Somos contrários ao uso da energia nuclear, devido aos altos riscos, e ao uso abusivo de tantos recursos econômicos em gastos militares.
O governo do Irã ousa defender sua soberania. O governo usamericano só não invadiu militarmente o Irã porque este tem 60 milhões de habitantes, é uma potência petrolífera e possui um governo nacionalista. As condições são muito diferentes do atoleiro chamado Iraque.
Felizmente, a diplomacia brasileira e de outros governos se envolveu na contenda. Esperamos que sejam respeitados os direitos do Irã, como de qualquer outro país, sem ameaças militares.
Resta-nos torcer para que aumentem as campanhas, em todo mundo, pelo desarmamento militar e nuclear. Oxalá o quanto antes se destinem os recursos de gastos militares para solucionar problemas como a fome, que atinge mais de um bilhão de pessoas.
Os movimentos sociais, ambientalistas, igrejas e entidades internacionais se reuniram recentemente em Cochabamba, numa conferência ecológica mundial, convocada pelo presidente Evo Morales. Decidiu-se preparar um plebiscito mundial, em abril de 2011. As pessoas serão convocadas a refletir e votar se concordam com a existência de bases militares estrangeiras em seus países; com os excessivos gastos militares e que os países do Hemisfério Sul continuem pagando a conta das agressões ao meio ambiente praticadas pelas indústrias poluidoras do Norte.
A luta será longa, mas nessa semana podemos comemorar uma pequena vitória antiimperialista.
Frei Betto
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