quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

CEBs: memória, desafios, prospectivas, em tempos de Francisco…



CEBs: memória, desafios, prospectivas, em tempos de Francisco…



Há poucos dias, ao rememorar dois anos da realização do XIII Encontro Intereclesial das CEBs, em Juazeiro – CE, foi compartilhado um texto de autoria de Pe. Vileci Vidal, coordenador do mesmo Encontro, a título de memória. Tal iniciativa nos instiga à exploração de várias possibilidades de reflexão. Uma delas – que aqui trato de apenas enunciar: empreender um exercício retroprospectivo da caminhada das CEBs, em tempos de Francisco, Bispo de Roma, após quarenta anos desde a realização do primeiro Intereclesial, em Vitória – ES, em 1974, e após meio século desde o encerramento do Concílio Vaticano II e da celebração do Pacto das Catacumbas (1965) e da realização da Conferência Episcopal Latinoamericana de Medellín (1968).
Quem se propõe a um exercício do gênero – aqui apenas enunciado, vale reiterar -, deve estar pronto, não apenas a reconhecer avanços significativos feitos, desde então, mas sobretudo a ousar reconhecer insuficiências, desafios e apelos prospectivos que o Espírito nos propõe como novas tarefas, bem como a empenhar-nos em alternativas de enfrentamento e superação desses desafios, a curto, médio e longo prazos, sempre a partir de balizas referenciais de certo consenso.
1. Valores a não perdermos de vista
Principalmente em épocas de grave risco de amnésia e de ininterrupto bombardeio de sedutores modismos, vale refrescar a memória acerca de alguns desses valores referenciais, priorizados na caminhada das CEBs:
– Ao longo da caminhada das CEBs, tem sido saudável – seja do ponto de vista teológico como do ponto de vista político-pedagógico – assumir as atividades das CEBs mais como tarefas a serviço do Reino de Deus e Sua justiça do que como atividades diocesanas ou paroquiais, ainda que uma coisa não exclua necessariamente a outra, desde que as últimas se ponham a serviço do primeiro, e não como realidades “auto-referenciadas” (para usar uma expressão frequente nas reflexões do Papa Francisco). Nem a paróquia, nem a diocese, nem a(s) Igreja(s) existem em função de si mesmas, à maneira de uma instituição cuja meta máxima seja a autopreservação, e cujos ministros atuem como meros funcionários exclusivamente voltados para a “sua” instituição. Somos chamados a ser cada dia mais vigilantes e autocríticos quanto a este risco real, se queremos ser fiéis ao Seguimento de Jesus e do Reino por Ele anunciado e inaugurado: “Entre vocês, não seja assim!” (cf. Mc 10, 42-45).
– Com base na primazia do Reino de Deus e, portanto, do seguimento de Jesus, é que se tem encarado as CEBs, não apenas como “um novo jeito de ser Igreja”, mas também (o que, na prática, tem sido bem menos evidente) como “um jeito de toda a Igreja ser”. Isto merece, sim, ser aprofundado. Nesse sentido, até do ponto de vista da atual conjuntura eclesial, sopram ventos favoráveis, em tempos de Francisco. Ao redigir essas linhas, me vêm à lembrança mais de três décadas de perseguição à “Igreja na Base”, em pontificados precedentes. No auge dessa crise, eis que, num de tantos encontros de pastorais sociais, onde se encontravam leigos, leigas, religiosas, religiosos, padres, o próprio bispo diocesano, eis que Pe. José Comblin, ao dizer sua mensagem, referia-se às CEBs como o futuro da Igreja. Para além do seu tormentoso presente, elas portavam sementes vivas e vivificantes do Reino de Deus. A despeito das hesitações e medos de setores da hierarquia, as CEBs são espaços de exemplar convivência eclesial: nelas se fazem presentes e atuantes, como irmãos e irmãs, lado a lado, leigas, leigos, religiosas, religiosos, diáconos, padres, bispos, papa… O que, então, estaria por trás de tal desconfiança? Um recôndito desejo de controle, de manutenção de monopólio?
– Outro princípio que se tem revelado salutar, no enfrentamento da desejável diversidade de carismas dos membros da Igreja, é o chamado “sensus fidelium”, o sentimento expresso pela maioria dos membros eclesiais, de modo a constituir um saudável contraponto à sanha imperial ou à “mentalidade principesca” não raro ainda presente em setores hierárquicos, inclusive entre figuras bem-intencionadas, receosas de ser a Igreja tomada por gente sem confiança. Até que ponto nesse extremado zelo de ortodoxia institucional não incide certa pretensão a uma apropriação de interpretação da vontade do Espírito Santo, em Sua ação no mundo e na(s) Igreja(s)?
– Fala-se muito no legado do Concílio Vaticano II, inclusive no princípio da colegialidade, mas, na vida cotidiana, isto acaba, por vezes, letra morta, preferindo-se manter a segurança e o controle interno, refletindo, antes, a posição privilegiada de quem comanda.
– Em virtude de sua vocação transformadora, inspirada na incessante busca de “um novo céu e uma nova terra”, as CEBs se movem numa dupla e bem articulada perspectiva de renovação da(s) Igreja(s) e de renovação da(s) sociedade(s).
Ao buscar reavivar alguns princípios de referência para os protagonistas das CEBs (e de outros segmentos eclesiais similares), não nos esquecemos também de tomar em consideração as contradições e insuficiências, na observância dos mesmos. Isto não invalida nem deslegitima os sensíveis avanços ético-políticos desse período.
2. Conquistas acumuladas, graças (também) à vigência desses valores
Ao longo de meio século de caminhada (convém lembrar que o surgimento das CEBs remonta aos anos 60, bem antes do primeiro Encontro Intereclesial (Vitória – ES, 1974). Desde então temos observado significativas conquistas, tanto do ponto de vista intra-eclesial quanto do ponto de vista de sua inserção no tecido societal. Examinemos, de passagem, cada uma dessas dimensões (intra-eclesial e societal).
A) Ao interno da Igreja, temos conseguido, sobretudo desde o Vaticano II e, ainda com mais força, após Medellín, expressivas conquistas que vale a pena rememorar resumidamente:
· Na concepção de Igreja-Povo de Deus, firmando a consciência da dimensão comunitária do conviver eclesial, a contrapor-se a práticas e concepções centradas no controle hierarquizante , as CEBs foram firmando-se como pequenas comunidades de cristãos (católicos e de outras Igrejas- irmãs), sob o impulso do Espírito Santo, a fermentar o tecido social, com suas práticas inovadoras de solidariedade, de partilha, de serviço à causa libertadora dos pobres, ao sentimento de igualdade fraterna e de justiça social.
· A criação e a animação de pequenos núcleos de cristãos, no campo e na cidade, desejosos de aprofundar a vivência de sua fé, à luz do Evangelho, buscando ser “fermento na massa”, razão por que tanto priorizam o trabalho nos abençoados círculos bíblicos.
· Na animação desses pequenos núcleos, inclusive por meio dos círculos bíblicos, os membros das CEBs empenhavam-se em renovar a Igreja e o mundo, a partir do seu próprio testemunho de discípulos-missionários do Reino de Deus, cônscios de que a busca de Liberdade para a qual se sentiam vocacionados, só se viabilizava igualmente por caminhos de Liberdade. Nada de se pretender uma Igreja nova ou um mundo novo, sem que as respectivas sementes não estivessem fazendo o seu trabalho, já agora, em suas vidas, ainda que de forma embrionária.
· Os avanços alcançados tiveram muito que ver com o jeito de organização dessas comunidades, sob vários aspectos, tais como: zelar pela horizontalidade das relações entre seus membros – leigas, leigos, religiosos, religiosas, diáconos, padres, bispos… A este propósito, não é à toa que os espaços de reuniões e encontros tinham a forma de círculo; a efetiva participação dos seus membros nas decisões tomadas; a forma colegiada de coordenação, e por tempo determinado, sem se permitir que a equipe coordenadora se apossasse da comunidade, eternizando-se na coordenação; a prática da cotização para assegurar a realização das atividades que requeressem despesas, sem precisarem de apelar a “doações” comprometedoras; a seriedade com que se assumiam as tarefas de formação; o costume de não se deixar controlar pela assessoria, razão por que muito se estimavam o rodízio e a forma horizontal de se fazer assessoria; o cuidado em não se cultuar uma pessoa ou um pequeno grupo, mas, antes, primar pelo incentivo ao exercício de uma profecia coletiva (um povo de profetas e profetisas); o zelo por cantos capazes de traduzir os valores correspondentes; o cuidado de não confundir as tarefas próprias de CEBs com a agenda da paróquia, entre tantos outros pontos.
B) No âmbito societal, vamos, igualmente, perceber a densidade e o potencial transformador da contribuição das CEBs, na perspectiva de ousarem caminhos alternativos, do ponto de vista ético-político que tiveram efetiva e reconhecida influência na gênese de movimentos populares, sindicais e políticos, em especial a partir do final dos anos 70 e começos dos anos 80. Que práticas principais das CEBs e de semelhantes organizações eclesiais conhecidas como “Igreja na Base” podem ser destacadas, como decisivas na configuração organizativa e formativa daqueles movimentos e forças sociais de transformação? Eis algumas:
– o trabalho de nucleação, tão característico das organizações de base de nossa sociedade, em fins dos anos 70 e começos dos anos 80, deve muito ao jeito das CEBS (e de organizações eclesiais similares), de se organizarem. Núcleos eram uma referência emblemática, na gênese desses movimentos de caráter transformador;
– a forma circular que tomavam as reuniões e os encontros, conferindo um sentido de horizontalidade e de promoção do protagonismo de todos, constituía uma espécie de antídoto contra a tendência de esquerdas ortodoxas, centradas no poder do chefe ou de um pequeno grupo mandante, ao mesmo tempo em que se contrapunha à tendência ao culto do indivíduo, em prol do protagonismo da base, do conjunto dos sujeitos em ação;
– a coordenação dos núcleos se exercia de forma colegiada, em equipe – e equipe com tempo determinado, de modo a assegurar vez na coordenação a quem era da base, e de retornar à base quem tivesse assumido um período de coordenação;
– a cultura do ofício de delegado, delegada: alguém escolhido coletivamente para representar o núcleo, não ia por conta própria, a representar a si mesmo, mas tinha a incumbência de levar para a respectiva instância a posição do coletivo, função pela qual devia prestar contas à assembléia, após o retorno dessa ou naquela instância;
– a rotatividade de dirigentes e coordenadores, também, característica do jeito organizativo das CEBs, teve forte influência nas organizações de base de nossa sociedade, do período considerado;
– o hábito de autofinanciamento de suas atividades, igualmente, teve influência nas mesmas organizações de base. Isto evitava dependência de instâncias poderosas, as quais, uma vez “ajudando” aquelas organizações de base, sentiam-se no direito de extrair vantagens diretas ou indiretas. Havia uma forte consciência do dito popular, segundo o qual: “Quem come do meu pirão, prova do meu cinturão”, risco a evitar!
– revelava-se igualmente salutar a diversificação de tarefas, a serem assumidas por todos, cada um, cada uma, à sua vez. Estimulava-se que, dentro do possível, todos pudessem assumir diferentes tarefas, de modo a evitar os privilégios concedidos aos “especialistas”, como se fossem os únicos que pudessem dar conta dessa ou daquela tarefa. Em princípio, todos fazem de tudo: trabalhos manuais e trabalhos intelectuais;
– seja no dia-a-dia, seja nos intereclesiais, o foco do processo organizativo, quanto aos compromissos em relação ao âmbito social, era o engajamento na busca de construção da nova sociedade, e não de um “novo Estado”, razão por que se mantinha um saudável distanciamento crítico frente às instâncias do Estado, algo que se foi perdendo perigosamente, como se vê atualmente;
– o cultivo prazeroso de uma espiritualidade incarnada de compromisso e de testemunho evangélico, exercitada tanto de modo coletivo, quanto de modo individual: a oração constitui verdadeiro alimento e reabastecimento para o enfrentamento dos desafios cotidianos. Esta dimensão também influiu positivamente nas organizações de base de nossa sociedade, à medida que adotavam a prática da mística (aqui, já num sentido laical, alguns chamam de “mística revolucionária”).
3. Apelos prospectivos
Diante desse denso legado, somados a velhos desafios, despontam alguns, de novo tipo, em relação aos quais submeto, fraternalmente, à nossa reflexão comum algumas considerações, em forma de perguntas. E o faço, com humildade, buscando dialogar, especialmente, com quem pensa diferente de mim, e de quem espero sinceramente seguir aprendendo.
– Especialmente pelo seu caráter celebrativo, seguem sendo uma bênção os Intereclesiais e os encontros preparativos. Diante das cada vez mais complexas exigências organizativas contemporâneas, será que, aos Intereclesiais e encontros preparatórios, não se requer um acompanhamento mais orgânico das atividades rotineiras das CEBs, em suas distintas instâncias organizativas?
– Reconhecendo e exaltando a fecundidade dos vários espaços formativos (encontros, seminários, etc.), será que, sozinhos, eles se acham mesmo à altura dos velhos e novos desafios? Ao me/nos fazer tal pergunta, penso em uma série de condições do processo formativo contínuo, tais como
– os atuais espaços formativos têm sido normalmente acompanhados presencialmente pelo conjunto da base ou, em geral, são destinados a membros da coordenação?
– Sabemos a crescente complexidade própria de uma “mudança de época”, com desdobramentos também na esfera formativa. Nesse contexto, já não bastam os conteúdos até aqui trabalhados. Há imperiosa urgência de se articular diferentes dimensões – econômica, política, cultural, religiosa… -, de modo a permitir um contínuo exercício da memória histórica (dos feitos sócio-históricos e da caminhada eclesial), das diversas dimensões das relações humanas – de gênero, de espacialidade, geracional, étnica, política, cultural, espiritualidade, bíblico-teológica, pastoral, subjetividade, ecológica, cósmica, etc., etc., etc. Em que espaços são trabalhadas, de modo articulado, tais dimensões? Quem as acompanha, enquanto equipe formadora?
– E quanto aos formadores e formadoras, têm tido o ininterrupto cuidado com sua prória reeducação permanente? Qual o perfil de nossos assessores e assessoras? Tem havido renovação?
– Do ponto de vista do acompanhamento ético-político da caminhada das CEBs (e da “Igreja na Base”), será que não se faz urgente um amplo exercício de autocrítica frente à qualidade dos laços tecidos com o poder? Será que, a despeito de tantos sinais preventivos, não se tem ido com sede demais ao pote das instâncias políticas e governamentais, sem a necessária vigilância crítica, fundamental ao exercício da profecia, independentemente do tempo e do lugar e frente a não importa que tipo de poder?
– Não será hora de, em vez de seguirmos apostando no que não tem dado certo, ousar ensaiar passos alternativos, na busca de construção de um novo mundo, inspirados em práticas e concepções e caminhos que já experimentamos, com o compromisso de fazè-lo, a partir dos desafios da atualidade?
– Após décadas de duras adversidades ao interno da própria Igreja, não é chegada a hora de as CEBs potencializarem seu protagonismo, nas pegadas do Papa Francisco, assumindo como prioridade também sua as reiteradas inquietações do Bispo de Roma, tão bem expressas, inclusive, em três dos seus escritos: a Exortação Apostólica “Evanelii Gaudium”, a Encíclica “Laudato si´ e seus discursos dirigidos aos movimentos populares, em Roma e em Santa Cruz de la Sierra (Bolívia), que devem ser profundamente estudados e debatidos, como uma de suas tarefas organizativas e formativas?

Por Alder Júlio Ferreira Calado em 14 de Janeiro de 2016

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