A palavra “mística” tem múltiplas conotações.
Pode significar espiritualidade, reza, esoterismo, experiência de Deus e prática
religiosa.
Os companheiros do MST, por exemplo, no contexto de uma ocupação de
terra, fazem uma “mística”, um culto ecumênico cujos símbolos e palavras
antecipam o êxito desejado do evento.
Também os povos indígenas, quando
preparam uma luta importante, pintam seus corpos, fazem danças e invocam seus
espíritos para favorecer o empreendimento.
A mística dos oprimidos, geralmente,
é uma vivência comunitária de coragem, o fortalecimento de uma responsabilidade
em rede, uma prática religiosa que lembra uma vitória do passado e antecipa uma
transformação que permite o infinito se fazer presente na concretude da vida,
nos trabalhos corriqueiros e nas lutas pela causa.
Nossa mística não é uma
mística de olhos fechados, mas um caminho espiritual para crescer e transformar-se
na vida cotidiana.
As pessoas deste caminho são companheiros e companheiras
nossos com os quais não só repartimos o pão, mas abrimos mão de tudo.
Tudo que
queremos segurar, pode se tornar veneno. Deus ama as mãos vazias. Abrir mão de
conquistas e certezas de ontem, pode ser um portal para a vida de hoje. Transformar
significa sempre abrir mão de algo. E a vida se dá somente na
transformação e na passagem.
A mística missionária militante é a mística do
Reino, vigília pascal, essência da Vida na existência histórica, atravessada
por desejos humanos; presença do espírito na ação e no caminho. Nossa
mística está enraizada na fé.
Acreditamos no projeto de Jesus e na presença de
Deus na realidade do mundo em construção. Ao revelar o incógnito
de Deus no mundo, como os hóspedes na tenda de Abraão (Gn 18) e o forasteiro de
Emaús (Lc 24,13ss), os povos indígenas e os pobres são sinais
de Deus no tempo.
Questionam a vida sedentária e as simulações de
agitação, avisando que o conforto da “gaiola dourada” e o tratamento do tempo
como se fosse dinheiro, não compensam o sofrimento que causam.
A mística nos permite viver a memória e
a utopia de um mundo para todos, livres e iguais, iguais em direitos e deveres,
mas com caminhadas históricas diferentes.
Na caminhada se cruzam muitos
caminhos. Não existe a hegemonia do caminho único ou da leitura definitiva da
realidade. Ninguém tem a última palavra. Novas misturas, pontos de vista
diferentes e enfoques inusitados lembram a possibilidade de outros caminhos. A
verdade do caminho é uma opção histórica, não uma necessidade.
A utopia do Reino está presente em atitudes e
relações, não em sistemas, instituições ou partidos. Tomamos partido, mas não
somos partido.
Fizemos a opção pelos povos indígenas e definimos prioridades,
mas não somos um partido indigenista. Por sua própria natureza, os partidos
criam divisão e produzem uma acomodação burocrática.
No caminho do Reino, os
partidos têm, como as próprias Igrejas, um caráter transitório. A aproximação
da utopia, como nova criação, está vinculada a uma diminuição institucional.
A globalização, com sua visibilidade e rapidez,
simulando baixo custo e prazer imediato no interior de estruturas
concorrenciais, colocou a mística da missão em desvantagem.
A mística tem pouca
visibilidade, porque não cabe na mídia.
As tentativas miméticas de algumas
Igrejas, recorrendo ao showbusiness da fé, são espiritualmente
superficiais, teologicamente sectárias e fundamentalistas, e eticamente vazias.
Legitimam a violência em curso, porque escondem a cruz de Cristo e os rostos
dos crucificados. Procuram reencantar a vida com deuses e diabos,
infantilizando os fieis.
Nisso são complementares, de uma maneira grosseira, à
atual estetização da violência, da pobreza e da sexualidade nos cinemas. Certas
cenas do filme „A paixão de Cristo“, de Mel Gibson, lembram pinturas de
Matthias Gruenewald (1470-1528) num salão de tortura.
O mercado financeiro não pode ser vencido pelo
mercado religioso, mas pela gratuidade da cruz. Entre vencedores e vencidos,
seja no mercado ou no campo de futebol, existe uma relação mimética.
A atitude
mimética é tendencialmente violenta, porque exige um sacrifício recíproco para
manter a diferença (para ser melhor que o outro) ou faz da própria eliminação
da diferença o sacrifício mediante a identificação, a incorporação, a imitação
ou eliminação do outro.
Nós cristãos, peregrinos das Américas e do mundo,
contemplamos nos crucificados da história nosso irmão e mestre, fundador
crucificado e ressuscitado.
Num ato de justiça definitiva, Deus rompeu com os
sacrifícios humanos. Jesus de Nazaré, morto na cruz, liberta da necessidades de
outros sacrifícios redentores.
Redenção e libertação
não estão mais sob a pressão da magia ou do rito sacrificial. Não precisamos
fazer, nem pagar promessas.
Precisamos converter-nos.
E conversão significa,
neste contexto, romper o círculo vicioso sacrificial e reassumir nosso
compromisso com os povos indígenas, seguindo (não imitando!) Jesus, o
Irmão-Mestre, no meio deles, na lógica e na locura da gratuidade que é a
condição de um mundo sem violência.
Paulo Suess
" Pedras e Horizontes" - fevereiro de 2006
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