quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Uma teologia pública muito viva. Crônica do Congresso Continental de Teologia

"O Congresso Continental de Teologia foi um energético de esperança. Teve muito de saudade, mas também de horizontes abertos para testemunhar que outro mundo é mais que possível", testemunha Vidal Enrique, participante do evento, vindo de São Paulo.

Naquela tarde do domingo 7 de Outubro começava o Congresso Continental de Teologia na Unisinos, em São Leopoldo (RS).
Estávamos acolhidos na casa de uma família amiga. O churrasco era aquele gaúcho com outros pratos mais caprichados de sabores locais para os que chegávamos de Colômbia, Argentina, dalgumas comunidades solidárias da Europa e do nordeste brasileiro. Num momento descontraído veio a pergunta: viemos a este congresso para o enterro da Teologia da Libertação -TdL? De modo oficial ninguém tinha nos convidado para essa cerimônia. Certo que algumas autoridades eclesiásticas e da situação conservadora tinham se empenhado a partir dos anos 80 em marginalizar e até torturar tal TdL.
O que vimos já na abertura do Congresso era algo bem diferente: 750 pessoas na expectativa e na alegria de se encontrar, chegando de tantos lugares de nossa América; alguns representantes de outros continentes, de outras confissões religiosas, uns 20 bispos, pessoal das comunidades, das pastorais sociais e do mundo indígena, da reflexão teológica, algumas irmãs com hábito, uns 70 ou 80 jovens ...
Os responsáveis das conferências centrais eram os mais veteranos. Aqueles que Leonardo Boff tratou na brincadeira como “dinossauros”. Foi na hora de convidar os representantes desta teologia para uma fotografia histórica de lembrança. Mas a espécie, pelo que deu para ver, está se reproduzindo e a TdL vai resistir a outras inclemências e temporais. A presença constante de Dom Jose Maria Pires, 94 anos, bispo emérito da Paraíba, trouxe-nos a memória viva do Vaticano II onde ele foi padre conciliar.
No início do Congresso nos encantou, e de modo muito colorido, a jovem teóloga irmã Geraldina Céspedes. Vive na Guatemala numa área militarizada perto dos barrancos na periferia da capital. Costurando em paralelo com a TdL, foi nos desfiando a parábola das mulheres que tecem suas peças maravilhosas entre o silêncio e a conversa de comadres. Podem trabalhar onze técnicas diferentes apalpando nos teares fios e cores, fios-guia e até o fio vermelho ou de ouro. Neste podemos tatear e imaginar o sangue de nossos mártires. Mantemos assim a trama básica de nossa própria vida e a do Jesus histórico. Esta é a realidade que vivenciamos e carregamos.
Como contraponto e de conteúdo denso, veio o testemunho teológico de Jon Sobrino, radicado na pequena república de El Salvador. Iniciou sua fala com a trajetória da sua vida. Chegava debilitado. Testemunha sobrevivente do massacre contra esses povos de América Central e, em concreto, do martírio de seus companheiros jesuítas e de duas mulheres trabalhadoras que os acompanhavam.  Em tempos criticados como relativistas Sobrino insiste que “absoluto é o Senhor e co-absoluto os seus  - e os nossos -  pobres”.
Nesta linha básica de pensamento trabalhamos durante o congresso com exposições e depoimentos de afamados e mais novas/os pensadores da libertação. As perspectivas eram variadas: econômica, social, ecumênica, religiosa e ecológica. Gostamos do diálogo e da harmonia de nossa teologia com outras reflexões emergentes nos continentes africano e asiático. Nas conferências da manhã, e nos paneis e oficinas da tarde, seguimos o método consagrado de nossa pastoral: Ver, julgar, agir e celebrar. Ação católica específica, JOC, Pastoral Operária e outras pastorais sociais marcaram o ritmo e os passos deste congresso. Partimos da realidade vivida e da sensibilidade com os pobres, seus sofrimentos e esperanças. Mantem-se viva a pergunta: o que significa ser seguidores de Jesus libertador nesta situação?
Gustavo Gutierrez, peruano, um dos iniciadores desta reflexão teológica há 40 anos, se fez presente por teleconferência. Combinava, de modo simples e evangélico, os capítulos 5 e 25 de Mateus para nos lembrar que a bem-aventurança e a caminhada dos pobres estão contempladas naquele critério de acolher/ser acolhidos como Jesus que está ao nosso lado: faminto, preso, sofrido e amante da justiça. Gustavo resumia a graça e o compromisso da TdL no grito confiante: “Cerca de Dios, cerca de los pobres!”. O Documento de Aparecida, n.393 já tinha confirmado que o relacionado com os pobres refere-se a Cristo. Aprofundando nesta espiritualidade, os jovens encerravam nosso encontro com o compromisso de “não somente pensar Deus, mas sentir e vivenciar o nosso Deus”. O mesmo Gustavo tinha lembrado com emoção às novas gerações de teólogos que estudem com vigor, sejam profundos; bem próximos das comunidades inseridas no mundo e dispostos até dar a sua vida pelos pobres.
Numa etapa de menos ataques à TdL e numa atitude menos defensiva, seguimos no processo normal de autocrítica, cobrindo os espaços que não eram tão visíveis nas etapas anteriores: a ecologia, a inculturação, os migrantes e refugiados, as novas gerações, as relações de gênero, os povos originários e afrodescendentes, os novos rostos da exclusão...
Victor Codina, veterano teólogo na Bolívia, nos animava, no mesmo sentido, a sermos menos paternalistas e prepotentes, sempre a favor da gratuidade e do afeto, com maior plasticidade e superando moralismos e ingenuidades.
Nas explicações incisivas do teólogo galego Andrés Torres Queiruga não faltou a perspectiva da secularização, como valor da autonomia do temporal. Também teve que escutar o outro lado e algumas críticas a partir da cultura e da religião de nossos povos latino-americanos. Podemos viver uma espiritualidade de libertação de modo diferente daquela do hemisfério norte.
Algumas teólogas de México e Colômbia, Chico Whitaker, Pedro Ribeiro de Oliveira, Oscar Beozzo relacionavam a fé e a espiritualidade com as pastorais sociais, os movimentos e a realidade histórica das últimas décadas.
Recolhemos a contribuição pedagógica de Paulo Freire para os nossos trabalhos. Agenor Brighenti, Carlos Mendoza e Luiz Carlos Susin aprofundaram em aspectos renovados da TdL. Contamos com o apoio de Carlos Mesters e Francisco Orofino para uma leitura popular da Bíblia. Esta raiz bíblica do Povo de Deus merecia ter sido mais cuidada; ela sustenta a espiritualidade e o compromisso da TdL.
Jung Mo Sung, na sua visão crítica, nos alertava sobre a inércia de reflexões que não consideram a ideologia e a sedução do modelo capitalista, a força religiosa e até sacramental do mercado individualista com os sonhos do povo consumidor.
Leonardo Boff na caminhada integral da libertação e nas suas últimas visões eco-dinâmicas sobre Terra e Vida, em contato com os melhores cientistas nessas áreas, resumia nossa atitude como de “razão cordial”, superando lógicas anteriores mais fechadas.
Era o final do Congresso no mesmo dia 11/10 quando se inaugurou o Concílio Vaticano II há 50 anos. As contribuições e os desafios para nossa TdL foram muito bem recolhidos na palestra final de João Batista Libânio. Entre parábolas e anedotas foi mais uma conversa viva que encantou mentes e corações. Nosso desafio é concertar a barca mesmo perplexos e dentro da tempestade. Nem por isso vamos deixar de preparar a festa e o bolo entre todos.

Na celebração final, como Via Lucis, caminho de luz, respondíamos: “Porque por tua santa Ressurreição remiste o mundo”. Com símbolos bem elementares: cântaro de barro com água, jornais, megafone acompanhamos estações por uma Igreja samaritana, aberta, pobre, missionária e profética.
Surpreendeu-nos o mapa-mundi virado: quando o sul é o nosso norte. Uma mulher experiente passou a chama de um círio maior para outras velas de mãos mais jovens.
Foi muito oportuna a expressão de boa parte do Congresso na língua espanhola pois contamos com uma boa participação de representantes de outros países de A.L. e Caribe. E com o testemunho de resistência da Igreja/Assembleia de Sucumbios, Equador, com suas declarações de base e seu estande na entrada do anfiteatro. Profunda e simples foi a mistura de som, imagens e silêncio na hora da primeira celebração com que abríamos a jornada.
Nesses dias não faltaram intercâmbios, reconhecimentos, abraços e gratidão aos simples funcionários ao nosso serviço; à organização e aos apoios recebidos. De modo especial, à Companhia de Jesus com seu Instituto Humanitas Unisinos - IHU que teve que enfrentar vários desafios, imaginamos, para acolher este Congresso.
O Congresso foi um energético de esperança. Teve muito de saudade, mas também de horizontes abertos para testemunhar que outro mundo é mais que possível. Sobretudo quando as comunidades com sua teologia fazem vivo o projeto do Senhor, o seu Reinado com os pobres da terra. E já está acontecendo porque “o espírito se derrama na carne, nossos jovens tem visões e nossos velhos se animam com sonhos”, Joel 3,1-2.

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