quinta-feira, 8 de novembro de 2012

A recepção do Vaticano II na América Latina

A recepção do Vaticano II na América Latina

Leonardo Boff: um teólogo brasileiro conhecido no exterior.


O Concílio Vaticano II (1962-1965) foi a resposta tardia, mas verdadeira, quinhentos anos depois, à Reforma protestante do século XVI. Esta clamava por reformas na Cabeça (hierarquia) e nos membros (cristandade). E nunca viera. Finalmente os tempos maduraram e ela veio. Por isso o Concílio representa uma ruptura do curso que a Igreja Católica vinha percorrendo por séculos.

Era uma Igreja transformada em fortaleza sitiada, defendendo-se de tudo o que vinha do mundo moderno, da ciência, da técnica e das conquistas civilizatórias como a democracia, os direitos humanos e a separação entre Igreja e  Estado. O Papa Pio XII (+1958) foi  o último representante do sonho medieval da Igreja que havia se transformado num verdadeiro pesadelo coletivo e um corpo estranho dentro do mundo atual.

Mas uma lufada de ar fresco veio de um Papa ancião do qual  não se esperava nada: João XXIII (+1963). Ele abriu portas e janelas da Igreja. Disse: ela não pode ser um museu respeitável; ela tem que ser a casa de todos, arejada e agradável para se viver.

Recepção 

Em primeiro lugar o Concílio Vaticano II representou, na linguagem cunhada pelo Papa XXIII, um "aggionamento", quer dizer, uma atualização e uma reconstrução de sua  auto compreensão, de suas instituições, de sua linguagem  de seus ritos e do tipo de presença no mundo.

Não se trata aqui de sumariar os elementos principais introduzidos pelo Concílio. Interessa-nos como este "aggiornamento" foi acolhido e traduzido pela Igreja latino-americana. A esse processo se chama de recepção que nunca é uma mera adaptação ou aplicação das decisões oficiais, mas uma releitura e um refazimento das intuições conciliares dentro do contexto latino-americano, bem diferente daquele europeu no qual se elaboram todos os documentos. Enfatizaremos apenas alguns pontos essenciais à moda de uma leitura de cego que capta só o que é relevante.

O primeiro, sem dúvida, foi a profunda mudança de atmosfera eclesial: antes predominava a Grande Disciplina, a uniformização romana e o ar sombrio e severo da vida eclesial. As Igrejas da América Latina, da África e da Ásia eram Igrejas-espelho da Igreja Romana. De repente começaram a sentir-se  Igrejas-fonte. Podiam se inculturar e criar linguagens novas. Por isso, agora se irradia alegria, entusiasmo e coragem de criar. Finalmente a Igreja Católica encontrou seu lugar dentro o mundo de hoje participando de suas alegrias e tristezas, de suas busca e avanços.

Visão social 

Em segundo lugar na América Latina se processou uma redefinição do lugar social da Igreja. O Vaticano II foi um Concílio universal, mas na perspectiva dos países centrais e ricos. Isso se nota no seu documento pastoral, o mais aberto, a Gaudium et Spes no qual se definiu a Igreja dentro do mundo moderno. A Igreja latino-americana olha em volta e se dá conta do submundo da periferia e da opressão. A Igreja deve se deslocar do centro humano para as periferias sub-humanas. Se aqui vigora opressão, sua missão deve ser de libertação e de transformação. Valorizaram-se as palavras do Papa João XXIII um mês antes do Concílio: “a Igreja é de todos, mas principalmente quer ser uma Igreja dos pobres”.

Esta viragem se traduziu em Medellín (1968) na opção solidária e preferencial pelos pobres, contra a pobreza e em prol da vida e da liberdade. Ela ganhou centralidade em Puebla (1979) e se consolidou depois como a marca registrada da Igreja latino-americana.

Em terceiro lugar é a concretização da Igreja como Povo de Deus. O Vaticano II colocou esta categoria antes daquela da Hierarquia. Para a Igreja latino-americana povo de Deus não é uma metáfora; a grande maioria do povo é cristão e católico, logo é Povo de Deus, gemendo sob a opressão como outrora no Egito. Dai nasce a dimensão de libertação que a Igreja assume oficialmente em todos os documentos de Medellín (1968) até Aparecida (2009). Este visão da Igreja-povo-de-Deus ensejou algo original da América Latina: as Comunidades Eclesiais de Base, entendidas como a Igreja na base e a Igreja da libertação.

Em quarto lugar, o Concílio entendeu a Palavra de Deus, contida nas Escrituras, como a alma da vida eclesial, especialmente, da reflexão teológica. Isso foi traduzido na América Latina pela leitura popular da Bíblia e pelos milhares e milhares de círculos bíblicos. Neles os cristãos comparam a página da vida com a página das Escrituras e tiram conclusões práticas, na linha da comunhão, da participação  e da libertação.

Direitos Humanos 

Em quinto lugar o Concílio se abriu aos direitos humanos. Na América Latina foram traduzidos como direitos dos pobres e por isso, antes de tudo, direito à vida, ao trabalho, à saúde e à educação. A partir dos direitos dos pobres, se entendem os demais direitos.

Em sexto lugar, o Concílio acolheu o ecumenismo e o diálogo com as demais religiões. Na América Latina o ecumenismo não visa tanto a convergência nas doutrinas, mas a convergência nas práticas: todas as Igrejas juntas se empenham pela libertação dos oprimidos. É um ecumenismo de missão.

Por fim dialoga com as religiões vendo nelas a presença do Espírito que chega antes  do missionário e por isso devem ser respeitadas com  seus valores.

Por fim cabe reconhecer: a América Latina foi o Continente onde mais se tomou a sério o Vaticano II e mais transformação trouxe, projetando a Igreja dos pobres como desafio para a Igreja universal e para   todas as consciências humanitárias.

Leonardo Boff

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