Permitam-se insistir no binômio do título para avançar a ideia de que
a Vida Religiosa (VR) não está em crise, mas numa encruzilhada. O mesmo
se poderia dizer, por exemplo, da Teologia da Libertação (TdL) e da
"opção preferencial pelos pobres", das CEBs como Igreja de Base, das
Pastorais e Movimentos Sociais... Enfim de todas as forças que, de uma
forma o de outra forma, "mexem" com as questões sociopolíticas e apontam
um horizonte de novas alternativas. Mas neste espaço vamos nos
restringir à VR, com ligeiras alusões a outros campos de atuação
pastoral.
1.Crise
Neste contexto, entendo por crise um período de abatimento e
escuridão. Sinônimos disso podem ser, entre outras, as noções de
perplexidade, desânimo, desencanto e apatia, tendência para a inércia
paralizante. Em alguns casos mais agudos, o desespero pode bater à porta
e prostrar definitivamente qualquer tipo de iniciativa. Toda crise -
seja ela de ordem pessoal ou familiar, quanto comunitária ou
institucional - costuma levar-nos ao "berço ou ao colo da mãe". Por mais
crescidos e amadurecidos que sejamos, jamais nos esquecemos dos braços
protetores da infância. É o momento em que o pranto inunda o coração, a
desilusão entorpece os membros e as lágrimas obscurecem qualquer tipo de
reação. A crise, em seu primeiro impacto, nos deixa cegos e surdos a
todo apelo vindo de fora.
Três testemunhos bíblicos podem ilustrar essa passagem dolorosa pelo
reino das trevas. Comecemos com o profeta Elias. Após caminhar
longamente pelo deserto, bate-lhe o cansaço e a crise. As exigências e
desafios da missão o prostram, levando-o a um sono que mais parece o
repouso da morte: "Sentou-se debaixo de uma árvore e desejou a morte,
dizendo: ‘Chega, Javé! Tira a minha vida, porque eu não sou melhor que
os meus pais'. Deitou-se debaixo da árvore e dormiu (1Rs 19, 4-5).
Passemos ao profeta Jonas. Trata-se de um especialista em driblar a
missão a que é enviado em Nínive: converter a cidade dos pagãos
ninivitas, inimigos número um de Israel. Cidade que é a verdadeira
morada do pecado. Nacionalista doentio e determinado, Jonas foge do
rosto de Deus para se esquivar da cidade maldita. A fuga, tanto quanto a
mentira, depois de iniciada terá que ser mantida. A tempestade em alto
mar, reflexo de uma mente perturbada e de um coração angustiado, leva o
profeta a lançar-se nas águas profundas. Não tendo mais para onde
escapar, foge de si mesmo, sendo engolido por um peixe. Símbolo clássico
do retorno consciente ou inconsciente ao ventre materno. A crise o leva
a anular-se completamente, a ponto de desejar nem sequer ter nascido
(Jn 1 - 2,2).
Por fim, o profeta Jeremias. De todos, é o mais explícito na
manifestação dramática da crise que o toma por completo: "Maldito seja o
dia em que nasci. Que jamais seja bendito o dia em que minha mãe me deu
à luz! Maldito o homem que levou a notícia a meu pai, dizendo: ‘nasceu
um filho homem para você!', enchendo-o de alegria. Que essa pessoa sofra
igual às cidades que Javé destruiu sem compaixão; ouça gritos pela
manhã e rumores de guerra ao meio-dia. Por que não me fez morrer no
ventre materno? Minha mãe teria sido a minha sepultura, e seu ventre
estaria grávido para sempre! Por que saí do ventre materno? Só para ver
tormentos e dores, e terminar meus dias na vergonha?" (Jr 20,14-18).
A lista poderia prolongar-se com outras personagens, tais como Abraão
e Jacob, Moisés e Isaías, Maria e Isabel, Pedro e Paulo e até o próprio
Jesus em Nazaré e no Getsêmani. É o momento da queda, da dúvida, das
perguntas que brotam do mais íntimo da experiência humana. Perguntas
momentaneamente sem resposta, sem remédio e sem solução. Inquietudes que
emergem na noite escura, das entranhas mais recônditas, dos cantos
selvagens e desconhecidos da alma. Poderíamos nos remeter, ainda, às
experiências místicas de São João da Cruz ou de Santa Tereza D'Ávila,
entre tantas outras. Numa palavra, trata-se do lado negativo da crise.
2.Encruzilhada
A crise, porém, qualquer que seja, é notoriamente ambígua. A
ambiguidade é um dos ingredientes constitutivos de toda prostração. Diz o
ditado que, a exemplo do vaso, é na queda que o ser humano revela sua
resistência. Encruzilhada aqui é o momento de enxugar as lágrimas,
aliviar o peito e erguer a cabeça. Como nos lembra a canção popular,
"levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima". Hora de partir para
outra! Nesta perspectiva, a encruzilhada pressupõe um duplo contexto:
bifurcação de caminhos, por parte da realidade objetiva; escolha e novas
opções, por parte dos protagonistas. Passada a cegueira e a surdez do
impacto mais crítico, novos horizontes se abrem. Ao lado negativo da
crise, sobrepõe-se seu lado positivo.
De fato, se é verdade que a crise leva ao berço, ao colo da mãe ou
até ao anular-se no seu ventre, a encruzilhada aponta para a fronteira.
No primeiro instante, o medo, o fracasso e a impotência procuram um
refúgio oculto de tudo e de todos, paralisam a ação ou reação. Depois,
com os olhos desanuviados, os membros retomam seu vigor e o caminho
recomeça. A encruzilhada é o trampolim para transpor limites, buscar a
superação de cada obstáculo. Neste sentido, a crise, embora possa deixar
os fracos irremediavelmente no berço, costuma levar os fortes a novas
fronteiras. È terreno fecundo, deserto fértil, escuridão pontilhada de
estrelas. Um parto e um desafio ao crescimento. Convém não esquecer,
contudo, que todo nascimento e crescimento ocorrem em meio à dor.
Voltemos aos três exemplos bíblicos. No caso de Elias, diz o texto
que, em meio ao sono, "um anjo o tocou e lhe disse: ‘levanta-te e come'.
O profeta abriu os olhos e viu bem perto da cabeça um pão assado sobre
pedras quentes e uma jarra de água. Comeu, bebeu e deitou-se outra vez.
Mas o anjo de Javé o tocou de novo e lhe disse: ‘levanta-te e come, pois
o caminho é superior às tuas forças'. Elias levantou, comeu, bebeu, e,
sustentado pela comida, caminhou quarenta dias e quarenta noites até o
Horeb, a montanha de Deus" (1Rs 19, 5-8). O profeta passa da crise à
encruzilhada. Mas o faz não pelas próprias forças. O anjo de Deus o
ajuda a reerguer-se e a pôr-se em marcha. Vale aqui a pergunta: em
nossas crises pessoais ou coletivas, quantas vezes não contamos com o
toque de um ano de Deus? Um amigo ou amiga, um formador ou formadora,
uma situação flagrante de injustiça... Enfim, algo ou alguém que nos
desperta da letargia, nos sacode, nos nutre com uma palavra de ânimo e
nos mostra o caminho. Uma luz que brilha em meio à escuridão!
Em Jonas não se fala de anjo, mas de uma oração profunda, ao mesmo
tempo atormentada e esperançosa: "Na minha angústia invoquei a Javé, e
ele me atendeu. Do fundo do abismo pedi tua ajuda, e ouviste a minha
voz. Jogaste-me nas profundezas, no coração do mar, e a torrente me
envolveu. Passaram sobre mim as tuas ondas e vagas. Então pensei: ‘eu
fui expulso para longe dos teus olhos; nunca mais poderei admirar a
beleza do teu santo Templo'. Eu estava cercado de água até o pescoço, o
abismo me rodeava, um lodo se agarrava à minha cabeça. Desci até as
raízes das montanhas, a terra se fechava sobre mim para sempre. Mas tu
retiraste da fossa a minha vida, Javé, meu Deus" (Jn 2, 3-7). Desse
reencontro com Deus e consigo mesmo, resulta um renascimento: "Então
Javé mandou que o peixe vomitasse Jonas em terra firme" (jn 2, 11). Do
berço e do desespero, o profeta avança para a encruzilhada ou a
fronteira, justamente a cidade de onde havia fugido, Nínive.
Jeremias, por sua vez, tem uma trajetória mais complexa. Carrega uma
experiência interior tão marcante que o resgate de seu ardor missionário
como que precede a própria crise. "Tu me seduziste, Javé, e eu me
deixei seduzir. Foste mais forte do que eu e venceste" (Jr 20, 7a). A
motivação é forte demais para que a crise o deixe prostrado por terra,
ainda que se veja perseguido o tempo todo: "Sirvo de piada o dia todo e
todo mundo caçoa de mim. Quando falo é aos gritos, clamando: ‘Violência,
opressão!' A palavra Javé ficou sendo para mim motivo de vergonha e
gozação o dia todo. Eu me dizia: ‘Não pensarei mais nele, não falarei
mais no seu nome'. Era como se houvesse no meu coração um fogo ardente,
fechado em meus ossos. Estou cansado de suportar, não agüento mais!" O
"fogo ardente" que incendeia seu coração faz lembrar o episódio dos
discípulos de Emaús: "Não estava o nosso coração ardendo quando ele nos
falava pelo caminho e nos explicada as Escrituras?" (Lc 24, 32). Em
ambos os casos, o toque do anjo ou a lembrança do Ressuscitado bastou
para dar asas a seus pés.
3.Fonte de água viva
Com base nos itens acima - crise e encruzilhada - conclui-se que a
Vida Religiosa sofre no corpo e na alma a ambiguidade desse binômio. Em
meio a uma Igreja que, por vezes, parece utilizar as celebrações do
cinquentenário do Concílio Ecumênico Vaticano II, não para avançar em
suas propostas, mas para neutralizar sua força inovadora, a VR vê-se
dilacerada por dúvidas e perguntas, incertezas e inquietudes. Se é
verdade que o Vaticano II representou um sopro do espírito pelas janelas
abertas da Igreja, sangue novo no organismo com sinais de esclerose,
oxigênio primaveril numa instituição com risco de caminhar para o
outono, também é certo que, ao completar 50 anos, muitos setores da
Igreja pretendem ignorar a veemência profética de seus documentos.
Resulta que não poucas Congregações oscilam atualmente entre o berço e
a fronteira. Nota-se, entretanto, que o pêndulo se desloca com maior
força para a fronteira. Constata-se isso numa série de "re" que hoje
entra na pauta de qualquer encontro sobre o VR: re-fundação, re-novação,
re-estruturação, re-definição... O mesmo se pode dizer da expressão
"fidelidade criativa", tão frequente nos corredores, salas e casas de
muitas Congregações. Para usar um ditado popular, grande parte dos
religiosos e religiosas deixou de "lamentar o leite derramado", levantou
a cabeça, abriu os olhos, oxigenou o coração, passando a vislumbrar as
alternativas possíveis em meio à crise/encruzilhada. Ou seja,
encontram-se decididamente na segunda fase do binômio. Começam a ver com
certa clareza que os caminhos se bifurcam e exigem novas opções. Mais
ainda: vão se dando conta que, no fundo, centenas e milhares de
iniciativas populares já apontam caminhos novos e diferentes.
Alternativas, tais como, a economia solidária, os desafios do meio
ambiente, a necessidade de novas relações, a fecundidade da vida
inserida, a presença nos porões mas inóspitos da sociedade, o valor dos
pequenos gestos, o entrelaçamentoentre os desafios locais e a
perspectiva das transformações globais...
Em se tratando da VR, uma tríplice fonte nutre e fortalece a passagem
da crise à encruzilhada: o seguimento de Jesus Cristo, o carisma do
fundador(a) e o clamor dos pobres e excluídos. Mas pode haver uma
armadilha oculta nesse ato de voltar-se para o Evangelho, para a
trajetória da Congregação e para a realidade que nos rodeia. A armadilha
é fazer da fonte um museu ou um folclore e passar a viver das glórias
do passado. Em momentos de crise, o saudosismo pode insinuar-se como
ratoeira tentadora. Vale, a esse respeito, definir o que se entende por
seguimento - de Jesus, do fundador(a), em vista do serviço aos pobres.
Seguir não é imitar, mas recriar. A própria espiritualidade da
Imitação de Cristo (Tomaz Kempis), tão reeditada e divulgada, explícita
ou implicitamente, reconhece essa necessidade de transpor os limites da
simples repetição daquilo que fizeram os antepassados. Imitar pode ser a
forma mais ingênua de trair, pois os desafios históricos se renovam
dia-a-dia. É a via rápida e imediata de multiplicar gestos que, não
raro, sofrem de um anacronismo notório e escandaloso. Recriar para os
desafios atuais a Boa Nova do Evangelho e o carisma de uma Congregação
torna-se uma via muito mais lenta, longa e laboriosa. Exige atenção
permanente aos "sinais dos tempos", leitura atualizada da realidade e
respostas que envolvam os verdadeiros protagonistas da história, as
camadas de baixa renda e excluídas, os pobres do Evangelho.
A crise ainda nos deixa perplexos e prostrados, sem dúvida, mas para
muitas Congregações se abrem as janelas da encruzilhada. Que o diga, por
exemplo, o lema De olhos fixos em Jesus da Conferência Nacional dos
Religiosos do Brasil (CRB); o trabalho de re-visitar os fundadores e
fundadoras das respectivas Congregações; e, por fim, mas não em último
lugar, as novas experiências de inserção que revitalizam a "opção
preferencial pelos pobres". Que o diga, igualmente, a teimosia com que
se põe em marcha o trem das CEBs; o aprofundamento da Teologia da
Libertação, incorporando novos elementos teóricos; a insistência e
resistência das Pastorais e Movimentos Sociais, não obstante a
criminalização das organizações de base por parte de amplos setores da
sociedade.
Padre Alfredo J. Gonçalves
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