Em setembro de 1962, a Revista Manchete publicou uma entrevista com o
sacerdote Francisco Lage Pessoa, com o título provocador de “Cristo e
Marx”. O padre Lage, como ficou conhecido, era pároco da Igreja da
Floresta, em Belo Horizonte, e se destacava como vigário dos pobres.
Ele iniciava suas declarações dizendo que um dos maiores equívocos daquele tempo era o que separava a Igreja de Cristo da doutrina econômica de Marx.
E, em tom desafiador, que fez tremer a hierarquia, afirmava que Cristo e Marx haviam querido a mesma coisa. Só que Marx cometera a injustiça de dizer que a religião era o ópio do povo, e que se fosse possível o diálogo, Cristo diria a Marx que a sua Igreja nada tinha a ver com a injustiça. Conheço bem os termos da entrevista, que guardei de memória. Eu fui o entrevistador.
Por essa mesma ocasião, jovens católicos, da JUC e da JOC, passaram a freqüentar a sacristia da Igreja da Floresta. Três deles, todos já desaparecidos, se destacavam no grupo. O jornalista Lúcio Nunes, que trabalhava para o Binômio, de Belo Horizonte; Jair de Sá, representante da Juventude Operária Católica, e Herbert José de Sousa, que se tornaria conhecido como Betinho.
Decidiram publicar um jornal para a defesa de suas idéias, sob a orientação de Padre Lage. Imbuídos de sua religiosidade, e da influência de Maritain e Emmanuel Mounier, pretenderam dar ao semanário o título de Testemunho Cristão, tradução literal de Temoignage Chrétien.
Um jornalista agnóstico, que estava presente e os ajudava na preparação do primeiro número, objetou que, com aquele nome, seria difícil atingir os leigos. Como, naqueles mesmos meses, movia-se uma ação popular contra a Light, que tinha o monopólio dos serviços telefônicos de Belo Horizonte, o jornalista sugeriu o título de Ação Popular.
Foi assim que nasceu o movimento político que se destacaria nos anos de resistência contra a Ditadura. Em torno do grupo, logo identificado como o dos rapazes da Ação Popular, se aglutinou a juventude católica disposta à luta armada.
Não temo afirmar que Padre Lage, que morreu há poucos anos, de volta do exílio, foi um dos grandes inspiradores da Teologia da Libertação. O texto de sua entrevista foi discutido em toda a Igreja, correu a América Latina, e estimulou o engajamento de outros sacerdotes e de muitos leigos.
Preso e torturado em 1964, Francisco Lage Pessoa se exilou no México, deixou a Igreja, casou-se, e continuou na luta. De volta ao Brasil, ingressou no PDT e se elegeu vereador em Belo Horizonte.
Padre Lage e os sacerdotes que pensavam da mesma maneira eram poucos no Brasil, não obstante o Segundo Concílio do Vaticano, com o qual João XXIII pretendia trazer a Igreja para o nosso tempo, e que se reunira exatamente em 1962.
Foi um tempo de grande discussão teológica, mas a hierarquia ainda se encontrava presa aos temores e compromissos passados. Desta forma, foi fácil levar os católicos às ruas, com os seus rosários, comandados por bispos extremamente conservadores, como D. Castro Mayer, de Campos e d. Geraldo Proença Sigaud, o notório reacionário de Diamantina.
Pouco depois das torturas sofridas por Padre Lage, outros religiosos seriam levados às masmorras. Padres e freiras, monges e fiéis sofreram na carne e deram seu testemunho cristão. E, pelo menos no cárcere, conviveram com os militantes marxistas as mesmas angústias e as mesmas esperanças.
Mauro Santayana é colunista.
Fonte: Carta Maior
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