Algumas correntes do cristianismo primitivo espiritualizaram muito cedo a pessoa e a proposta de Jesus. Para esses grupos, as chagas do Crucificado desapareceram e passou-se a cultuar uma religião que negava a encarnação. Muitos passaram a afirmar que Jesus morreu na cruz aparentemente, seu corpo era apenas um corpo aparente (docetismo). Tal negação teórica tinha uma implicação prática: para ser uma boa pessoa cristã, bastava buscar conhecer (gnose) de verdade esse espírito e a ele chegar pelo esforço intelectual/espiritual.
Por essa razão, as comunidades joaninas, já no
convívio com correntes de influência gnóstica, são enfáticas em afirmar:
"o Verbo se fez carne e acampou no nosso meio" (João 1,14). Se, por um
lado, a fala de Tomé é expressão de sua dúvida, por outro, é sinal de
que acredita em um Deus encarnado e sofredor: "Se eu não vir nas suas
mãos os sinais dos cravos, e ali não puser o meu dedo, e não puser a
minha mão no seu lado, de modo algum acreditarei" (João 20,25).
No texto de Lucas 24,36-49, Jesus chega desejando a paz, fazendo uso de um cumprimento de que todo judeu gosta de ouvir: shalom!
(24,36). O susto é grande e o grupo pensa que é um espírito. "Um
espírito não tem carne e osso", lembra Jesus, "vede minhas mãos e meus
pés, sou eu" (24,39). Não há como negar, afirmam as comunidades lucanas:
nosso Deus não é só um espírito, o Cruficidado/Ressuscitado permanece
entre nós! Erra quem prega um Deus desencarnado. Não entende a proposta
quem imagina que é suficiente louvar um espírito, muitas vezes até
distante, outras vezes apenas doce e virtual.
O Ressuscitado é carne, é gente de verdade e continua
com mãos, pés e o lado marcados por ferimentos. Cabe a nós tratar
desses ferimentos, como fez o samaritano em outro texto narrado
exclusivamente por Lucas (10,29-37). Cabe a nós não fugir e testemunhar
por nossos atos: o Ressuscitado é o mesmo Crucificado a contar conosco
também hoje, nos pobres e necessitados. A fé em Jesus é algo mais
exigente: é preciso continuar reconhecendo sua pessoa sofredora,
encarnada nas pessoas sofredoras de ontem e de hoje.
Primeiro comer para depois "abrir a mente"
Depois de saborear um bom peixe assado, Jesus convida
o seu grupo a ler a Bíblia: "era preciso que se cumprisse tudo o que
está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. E
abriu-lhes a mente para que entendessem as Escrituras" (Lucas 24,44-45).
Como tinha feito no caminho de Emaús (24,27), Jesus retoma a Bíblia: a
Lei (a Torah, o Pentateuco), os Profetas (os Nebiin, livros históricos e proféticos) e os Salmos (que representam os Ketubin, os outros Escritos).
Entretanto, parece que mais uma vez Jesus quer nos
apresentar um método de evangelização: a mesa da partilha e o ato de
matar a fome vêm em primeiro lugar em nossos trabalhos pastorais e
sociais. A Bíblia e, mais ainda, as normas das diferentes igrejas não
podem ser usadas para doutrinar a vida, mas para iluminá-la. Despertar a
consciência é algo que não se faz com a barriga vazia! Partilhar o
peixe (e o pão, e a dignidade) é algo que se faz como prioridade.
Ressurreição acontece ao redor da mesa
O tema da mesa (comensalidade) é um dos mais caros ao
evangelho de Lucas. Jesus come com publicanos (Lc 5,29-32); à mesa, na
casa de um fariseu, é ungido pela mulher pecadora; (7,36-50; 11,37-54);
também na casa de um fariseu desmascara a hipocrisia e o legalismo de
quem o acolhia (10,38-42); janta na casa de Zaqueu e o ensina a
repartir; faz-se ele mesmo pão repartido (22,14-2); e se dá a conhecer,
em Emaús, ao redor da mesa (Lc 24,13-35). Ao todo, por doze vezes Jesus
se senta à mesa no evangelho de Lucas. E ainda convida a quem permanecer
fiel a sentar-se na mesa de seu Reino (22,28-30).
No evangelho de hoje, ele pede peixe e come com os
seus (22,42). O peixe se tornou um forte símbolo do cristianismo
primitivo. Era e ainda é comida de gente simples, que busca sobreviver
como consegue, à margem de lagos, rios e mares. Ao mesmo tempo, um pouco
de sal e algumas brasas são suficientes para que o banquete esteja
pronto e apetitoso. A mesa é o chão da pesca, é a lida do dia-a-dia, a
marmita do boia-fria, mas com o direito de estar quentinha, na brasa! E o
Mestre come com eles, mais uma vez, um bom peixe assado!
Fonte: CEBI
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