quarta-feira, 28 de março de 2012

Concílio Vaticano II e Gaudium et Spes, A Carta Magna da Pastoral Social





Introdução

Nas comemorações do 50º aniversário do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), mais do que nunca vale estudar a fundo a Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje – Gaudium et Spes (GS), promulgada solenemente pelo para Paulo VI em dezembro de 1965, no encerramento do concílio. A Constituição Pastoral, portanto, terá seu cinquentenário celebrado em 2015. Nestes quase 50 anos, muito já se escreveu e se falou sobre este documento. A ideia de um documento de caráter pastoral, em princípio, não estava no programa do referido evento. Deve-se sua elaboração e aprovação a uma interpelação do Cardeal Suenens, lançada num discurso da I Sessão do Concílio Ecumênico Vaticano II, em dezembro de 1962, bem como ao empenho pessoal do então Cardeal Montini, eleito papa como o nome de Paulo VI no decorrer das sessões conciliares, com a morte de João XXIII.

Na trajetória histórica do cristianismo, poucos eventos e poucos documentos mexeram tanto com a Igreja como, respectivamente, o Concílio Vaticano II e a Gaudium et Spes. Na mensagem do Natal que se seguiu à sua aprovação, Paulo VI assim se referiu a ela: “O encontro da Igreja com o mundo atual foi descrito em páginas admiráveis na última Constituição do Concílio. Toda pessoa inteligente, toda alma honrada deve conhecer essas páginas. Elas levam, sim, de novo a Igreja ao meio da vida contemporânea, mas não para dominar a sociedade, nem para dificultar o autônomo e honesto desenvolvimento de sua atividade, mas para ilumina-la, sustenta-la e consola-la. Essas páginas, assim o pensamos, assinalam o ponto de encontro entre Cristo e o homem moderno e constituem a mensagem de Natal deste ano de graça ao mundo contemporâneo”.

Uma releitura atenta da Gaudium et Spes, no contexto da sociedade atual, pode significar uma grata surpresa, em três dimensões: primeiro, embora publicada há quase 50 anos, ela continua trazendo elementos preciosos para entender as transformações por que passa a sociedade moderna; depois, devido justamente a esse diagnóstico válido ainda para muitos problemas que estamos atravessando, ela fornece pistas para uma ação eficaz, seja do ponto de vista pastoral, seja do ponto de vista social e político; por fim, em conjunto com os demais documentos do Concílio Vaticano II, ela representa uma inflexão decisiva quanto à postura da Igreja diante dos principais desafios da modernidade.

1. Um novo olhar sobre o mundo moderno

Reconhecidamente, a maior novidade do Concílio Vaticano II é sua abertura e a tentativa de diálogo com os problemas e desafios do mundo moderno. Duas constatações iniciais marcam essa disposição. Na primeira, de caráter mais analítico, o documento lembra que “o gênero humano encontra-se hoje em uma fase nova de sua história, na qual mudanças profundas e rápidas estendem-se progressivamente ao universo inteiro”. Depois, num tom de denúncia que será característico de suas páginas, acrescenta que “o gênero humano nunca dispôs de tantas riquezas, possibilidades e poder econômico. No entanto, ainda uma parte considerável dos habitantes da terra padece fome e miséria e inúmeros são analfabetos” (GS, nº 4).

As “mudanças profundas e rápidas” de que fala o texto remontam, como se sabe, a uma série de transformações que sacudiram a Europa nos séculos precedentes, culminando com a Revolução Industrial. Esta, por sua vez, tem seus antecedentes no florescimento do comércio, ainda nos séculos XIII e XIV, nos descobrimentos de novas terras e novas riquezas, nos séculos XV e XVI, nos inventos e avanços científico-tecnológicos dos séculos XVII e XVIII e, por fim, na Revolução Francesa e seus desdobramentos na passagem do século XVIII ao século XIX.

O velho continente transforma-se de forma radical, seja na sua capacidade tecnológica e produtiva, seja na sua organização social e política, seja nas suas formas de pensar e agir, especialmente a partir do renascimento e do iluminismo. O teocentrismo da era medieval é gradativamente substituído pelo antropocentrismo moderno. O pensamento autônomo e emancipado, a teoria da evolução progressiva e os direitos do cidadão passam a formar um novo paradigma. Ciência, razão, tecnologia, progresso e democracia são termos que, combinados, constituem o que se poderia chamar de novo credo das sociedades ocidentais. O otimismo e até ufanismo em relação ao poder das novas descobertas científicas e em relação ao futuro da humanidade serão uma marca dos que acreditam piamente na chamada razão instrumental e aplicada. Razão e fé entram por caminhos bifurcados, aumentando cada vez mais a distância entre uma e outra. Igreja e comunidade científica experimentarão uma convivência tensa e cheia de desencontros.

Mas esse credo da modernidade irá sofrer profundos reveses no decorrer do século XX. Grande corrosão abalará progressivamente suas bases mais sólidas diante da atmosfera de competição e violência, guerra e barbárie no período que precede o Concílio. Evidente que muitos avanços foram conquistados. Basta tem em conta, por exemplo, os benefícios da medicina, dos transportes e das comunicações, para citar apenas esses. Mas os problemas mais agudos da humanidade permanecem chagas vivas, enquanto novos desafios surgem por todos os lados. Assim, ao chamar a atenção para “a condição do homem no mundo de hoje”, a Gaudium et Spes (GS), em sua primeira parte, põe a nu, por uma parte, as contradições, assimetrias e desigualdades sociais que se aprofundam por todas as partes, e, por outra, as esperanças e aspirações do ser humano enquanto imagem e semelhança de Deus. Alguns anos mais tarde, na Populorum Progressio (PP),a qual, como sabemos, constitui uma espécie de complemento da Constituição Pastoral do Vaticano II, Paulo VI irá novamente alertar para o flagrante contraste entre o progresso tecnológico e a capacidade produtiva, de um lado, e o subdesenvolvimento de tantos povos, de outro. Aliás, os dois documentos – GS e PP – dão continuidade a uma linha de pensamento que atravessa todo o Ensino Social da Igreja, isto é, o descompasso crescente entre crescimento econômico e desenvolvimento integral. Mais recentemente, os escritos de João Paulo II não se cansam de evidenciar, ao mesmo tempo, o acúmulo e a falta de distribuição dos bens produzidos por toda a sociedade. “Ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres”, dirá em sua vista ao México.

Para usar a expressão de João XXIII, como abrir as “janelas do Vaticano aos novos ares” que se respira nesse mundo completamente transformado? Como entrar em diálogo aberto com a ciência e o pensamento contemporâneo? Como reconhecer, simultaneamente, os avanços e os limites do progresso tecnológico e do crescimento econômico? Como traduzir a solicitude pastoral da Igreja diante dos novos problemas e desafios? Por outro lado, numa sociedade cada vez mais marcada pelo pluralismo cultural e religioso, o que significa um ecumenismo não apenas formal, mas efetivo e conseqüente? Numa palavra, se o processo de evangelização passa, necessariamente, por uma profunda inculturação, como fazer isso frente aos valores e contra-valores da chamada modernidade?

São essas algumas das questões que preocupam os padres conciliares na década de 60, e que transparecem com insistência nas páginas da Gaudium et Spes. Neste sentido, não será exagero afirmar que a primeira frase deste documento traduz o espírito do próprio Concílio como um todo: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhe ressoe no coração. Com efeito, a sua se constitui de homens que, reunidos em Cristo, são dirigidos pelo Espírito Santo, na sua peregrinação para o Reino do Pai. Eles aceitaram a mensagem da salvação que deve ser proposta a todos. Portanto, a comunidade cristã se sente verdadeiramente solidária com o gênero humano e com a história” (GS, nº 1).

2. Um novo olhar eclesiológico

Para entender a eclesiologia que está subjacente à Gaudium et Spes temos de voltar à Lumen Gentium (LG) e à Ad Gentes (AD), respectivamente, Constituição dogmática sobre a Igreja, e Decreto sobre a atividade missionária da Igreja, ambos documentos do Concílio Vaticano II. Concentramo-nos especialmente no capítulo II da LG, que tem como título O Povo de Deus. Retomando a teologia da aliança e a trajetória histórica do Povo de Israel, bem como a imagem do Corpo Místico, da Carta de São Paulo aos Coríntios, os padres conciliares concluem: “Como o Israel segundo a carne, que peregrinava no deserto, já é chamado Igreja de Deus, assim o novo Israel que, caminhando no presente tempo, busca a futura cidade perene, também é chamado Igreja de Cristo” (LG, nº 9). Aqui a inflexão eclesiológica é inegável: de uma Igreja até então entendida como hierarquia, passa-se claramente a uma Igreja Povo de Deus. O acento recai sobre o conjunto dos fiéis.

E o documento continua: “Deus convocou e constituiu a Igreja – comunidade congregada daqueles que, crendo, voltam seu olhar a Jesus, autor da salvação e princípio da unidade e da paz – a fim de que ela seja para todos e para cada um o sacerdócio visível desta salutífera unidade” (LG, nº 9).

Na continuidade do documento conciliar, poderíamos nos estender sobre os conceitos de “sacerdócio comum”, de “universalidade do único Povo de Deus”, da “índole missionária de toda a Igreja” ou “a relação dos leigos com a Hierarquia”. Mas o escopo destes parágrafos não é analisar a Lumen Gentium em si. Por isso, baste-nos neste espaço sublinhar que a Gaudium et Spes nasce no terreno de uma nova noção de eclesiologia. Nesta, Cristo é o centro e a cabeça da Igreja e, ao redor d’Ele, todos e todas somos iguais, embora com distintos ministérios diversas funções.

Não será necessária muita ginástica analítica para dar-se conta de como refletem, no interior da própria Igreja, as idéias democráticas que se consolidam na sociedade moderna. Os direitos humanos e as idéias democráticas constituem, como veremos, o fio condutor do Capitulo IV da segunda secção, sobre a vida da comunidade política.

No que diz respeito à atividade missionária da Igreja, também neste caso não é nosso objetivo tecer maiores comentários à Ad Gentes. Basta lembrar que “a Igreja peregrina é por natureza missionária” (AD, nº 2). “Essa missão no decurso da história continua e desdobra a missão do próprio Cristo, enviado a evangelizar os pobres. Eis porque a Igreja, impelida pelo Espírito de Cristo deve trilhar a mesma senda” (AD, nº 5).

Em síntese, os dois documentos citados apontam para uma Igreja simultaneamente circular e aberta. Circular, no que concerne à sua organização interna e à tomada de decisões, onde todos somos irmãos e irmãs, sem distinção de raça, cor, sexo, nação, classe, etc., mesmo exercendo papéis diferenciados. E aberta, na medida em que, pelo batismo, todo cristão é chamado a ser missionário, a propagar e viver a Boa Nova de Jesus Cristo onde quer que se encontre. Igreja como Povo de Deus, por um lado, e Igreja a caminho, por outro, são as expressões que sobressaem na eclesiologia do Concílio Vaticano II.

3. Um novo olhar profético

A segunda parte da Gaudium et Spes dedica três longos capítulos à análise da sociedade atual, seguida de orientações para a busca da justiça e da paz. No primeiro desses capítulos, sobre a vida econômico-social, o texto faz uma veemente denúncia das contradições que regem a economia: “No momento em que o progresso da vida econômica, dirigido e coordenado de maneira racional e humana, poderia mitigar as desigualdades sociais, com muita freqüência se torna o agravamento das desigualdades sociais, ou também cá e lá o regresso da condição social dos fracos e desprezo dos pobres. Enquanto uma enorme multidão tem falta de coisas absolutamente necessárias, alguns, mesmo em regiões menos desenvolvidas, vivem na opulência ou desperdiçam os bens. O luxo e a miséria existem simultaneamente”, Por isso que, logo em seguida, os padres conciliares insistem que “o progresso econômico deve permanecer sob a deliberação do homem. Não pode ser abandonado ao só arbítrio de poucas pessoas”, nem “ao curso quase mecânico da vida econômica” (GS, 63-65).

O documento segue falando da necessidade de subordinar a economia a decisões políticas e estas aos princípios éticos do bem comum, ao mesmo tempo que faz um apelo a condições de trabalho mais justas, levando em conta o respeito à pessoa humana. Faz ainda a crítica do latifúndio e do crescente poder financeiro e especulativo. Nem precisaria acrescentar que suas palavras, escritas há mais de 40 anos, revelam-se de uma atualidade surpreendente diante da ideologia do mercado total.

No capítulo a respeito da “vida da comunidade política”, como já assinalamos acima, insiste-se sobre o respeito aos direitos humanos de todos os cidadãos, o desejo de participação democrática no destino das nações e a responsabilidade de todos e todas na condução da vida pública. A novidade é que “todos os cristãos se tornem cônscios de seu papel próprio e especial na comunidade política”. “Pela integridade e com prudência, lutem contra a injustiça e a opressão, ou o absolutismo e a intolerância, seja de um homem ou de um partido” (GS, nº 75).

Convém não esquecer que a memória do nazismo e do fascismo, com os horrores dos campos de concentração e do holocausto, ainda estava bem viva nos países europeus e no mundo. E convém ter presente, também, as tentativas atuais de um novo tipo de colonialismo político e econômico, por parte dos países centrais sobre os países periféricos, com destaque para a hegemonia do mercado financeiro e o mecanismo perverso do endividamento externo. Como já nos alertou João Paulo II, “não podemos pagar a dívida com a fome e a miséria das populações pobres”.

Por fim, no capítulo sobre “a construção da paz e a promoção da comunidade dos povos”, o documento retoma os alertas de João XXIII, na Pcem in Terris, para o risco da corrida armamentista e da guerra total. Estamos em plena vigência da guerra-fria e o fantasma da bomba atômica ronda os países europeus. Não basta a “paz do medo, assentada sobre o equilíbrio das armas”, nem a “paz da morte” cuja lembrança permanece nos escombros, ruínas e cinzas da 2ª Guerra Mundial. O que se busca é a paz fundamentada na justiça e no direito (GS, nº 80-83). “O desenvolvimento é o novo nome da paz”, lembrará anos mais tarde Paulo VI.

A paz de que falam os padres conciliares pressupõe novas relações internacionais, novas instituições supranacionais, bem como cooperação das diferentes nações nos campos econômico, político, social e cultural. “Cabe à comunidade internacional” –diz o documento – organizar e estimular o desenvolvimento, mas de tal maneira que os fundos a isso destinados sejam aplicados de modo mais eficiente e com plena eqüidade. Pertence ainda a esta comunidade, sem prejuízo naturalmente do princípio de subsidiariedade, organizar as relações econômicas mundiais, a fim de que se desenvolvam conforma as normas da justiça” (GS, nº 86).

Em base a este parágrafo, valeria a pena analisar, por exemplo, o papel que estão desempenhando hoje instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Banco Mundial ou a Organização das Nações Unidas (ONU). Muito mais do que regular “com justiça e eqüidade” o comércio e a política entre as nações, tais organismos procuram manter a atual ordem mundial, ao mesmo tempo concentradora e excludente. Do ponto de vista da dignidade da pessoa humana, seria também produtivo confrontar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, com os valores éticos da Gaudium et Spes, por um lado, e, por outro, com as organizações internacionais acima.

4. Um novo olhar pastoral

Como o título indica, a Gaudium et Spes é uma “constituição pastoral” voltada para o “mundo de hoje”. Ao dirigir sua atenção para o mundo moderno, profundamente modificado e desafiador, os padres conciliares procuram superar, a bem dizer, uma visão predominantemente centrípeta por uma visão de caráter mais centrífugo. De fato, se voltarmos os olhos para a época medieval, não será difícil perceber como a Igreja permanecia debruçada prioritariamente sobre os problemas domésticos da doutrina, do ritualismo, dos próprios bens, e assim por diante. Para usar uma expressão popular, mantinha-se dentro da sacristia, voltada para dentro de si mesma.

O Concílio Ecumênico Vaticano II e, de modo especial, a Gaudium et Spessignificaram uma virada centrífuga para os problemas que afligem os seres humanos, num contexto de transformações aceleradas. Nas últimas décadas, particularmente a partir das novas tecnologias, o ritmo da história ganhou uma velocidade surpreendente. A Igreja empreende então um gigantesco esforço para acompanhar seus passos. As constituições, decretos e declarações do evento conciliar representam esse esforço de adaptar-se aos problemas e desafios pastorais contemporâneos.

Vale a pena insistir nesta abertura conciliar quando se sabe que atualmente, em alguns setores da Igreja, verifica-se uma espécie de movimento contrário, uma volta aos problemas internos, acompanhada de um espiritualismo muitas vezes desvinculado das questões políticas e sociais. Para alguns estudiosos, no confronto com o tom profético do Vaticano II, assiste-se a uma certa involução, em que predomina a nostalgia de uma Igreja triunfal e, nos casos mais extremos, até a uma tentativa de restaurar a velha cristandade. A verdade é que os documentos conciliares, no seu conjunto, constituem um tesouro que ainda não foi de todo explorado. Daí a importância de levar adiante as linhas gerais e orientações do Concílio Vaticano II, se se quiser responder aos desafios e questionamentos da sociedade moderna ou pós-moderna.

A esse respeito, o Concílio e sua constituição pastoral querem ser, para os dias de hoje, o olhar atualizado do Bom Pastor, o qual, ao “percorrer as cidades e aldeias” e encontrar as “multidões cansadas e abatidas”, “move-se de compaixão” (Mt 9,35-38). Compaixão é uma palavra composta: com + paixão. Ou seja, estar com o outro na hora da paixão. “Estar com” não significa dar coisas, mas dar-se a si mesmo; colocar-se à disposição, dispor do próprio tempo a serviço de quem necessita. É o mesmo sentimento que transparece no episódio do Bom Samaritano, do Pai Misericordioso ou no Juízo Final, enfim, é o próprio coração da mensagem evangélica, seu núcleo mais genuíno e original.

Hoje como nunca, as multidões continuam mordendo o pó da estrada em busca de uma sobrevivência cada vez mais precária, simultaneamente atraídas e rechaçadas pelo modelo econômico de corte neoliberal. Nem multidão anônima, cresce o número incalculável dos “sem”: sem terra, sem trabalho, sem teto, sem saúde, sem escola, etc. Pessoas aos milhares e milhões que, para voltar aos adjetivos do Evangelho, seguem “cansadas” de tantas promessas falsas e “abatidas” pelo peso da fome e da miséria, do abandono e da violência e de tantos outros males.

O Concílio tenta reproduzir, também, o olhar de pastor daquele Deus que repete e insiste: eu vi a miséria, eu ouvi o clamor, eu conheço o sofrimento e eu desci para libertar o povo escravo no Egito e conduzi-lo a uma terra onde “corre leite e mel”(Ex 3,7-10; Dt 26,5-10). A experiência religiosa, no evento fundante do Povo de Israel, é descoberta e o encontro com um Deus profundamente sensível e solidário à situação social concreta das pessoas. Um Deus atento e vigilante, cuja compaixão traduz-se nas quatro formas verbais da primeira pessoa do singular, assinaladas acima. Ou então o Deus que garante o sustento e a proteção “do órfão, da viúva e do estrangeiro”.

AGaudium et Spes retoma, ainda, a consciência de pastor que se verifica nos primórdios da Igreja. Bastaria um olhar a vôo de pássaro sobre a prática das primeiras comunidades cristãs, sobre as cartas e testemunhos neo-testamentárias de Pedro, João, Paulo e Tiago, ou sobre os escritos e obras dos Santos Padres – para nos darmos conta de como a misericórdia e a compaixão fazem parte da herança que Jesus deixou à sua Igreja. O mesmo olhar poderia ser dirigido aos chamados Santos Sociais e suas respectivas Congregações, na segunda metade do século XIX, onde novamente a atenção aos pobres, desvalidos e indefesos assume prioridade absoluta. Santos que, diga-se de passagem, e sem medo de errar, tornar-se-ão verdadeiros precursores do espírito que tomou conta do Concílio Vaticano II.

Por isso é que a conclusão da Gaudium et Spes constitui um duplo apelo: primeiro, ao diálogo entre todos os homens, pois “sendo Deus Pai o princípio e o fim de todas as coisas, somos todos chamados a ser irmãos. E por isso, destinados à única e mesma vocação, humana e divina”. Em seguida, através desse diálogo permanente, “podemos e devemos cooperar para a construção do mundo na paz verdadeira”(GS, nº 92).

Esse novo olhar pastoral constitui uma tentativa de traduzir para cada época, a dimensão social e política da tradição judaico-cristã e, mais especificamente, da Boa Nova de Jesus Cristo. Esse esforço exige, de uma parte, uma atenção redobrada sobre os problemas que afligem os seres humanos, aqueles onde a vida se encontra mais ameaçada. De outra parte, requer uma releitura contextualizada da Palavra de Deus. Entra em jogo aqui o famoso “círculo hermenêutico”, em que a vida interpela a Bíblia e esta interpela a vida, numa espiral crescente de intercessão entre fé e vida.

A ação social na Igreja, através das Pastorais Específicas, da Cáritas ou das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), em parceria com movimentos sociais, sindicais e estudantis, com organizações não governamentais e com entidades afins – essa ação social representa hoje em dia esse olhar evangélico. Uma postura misericordiosa e compassiva, sensível e solidária, voltada para os grupos ou situações sociais mais carentes e abandonados, onde a vida está mais ameaçada. Significa, em resumo, a solicitude pastoral permanentemente recriada e atualizada, de acordo com as dores e esperanças, lutas e sonhos, caminhos e aspirações dos pobres e excluídos.

Um novo olhar para o laicato

Dois conceitos fundamentais do Concílio Vaticano II ajudam a entender a nova dimensão dos leigos e leigas enquanto protagonistas da evangelização, por um lado, e artífices de uma sociedade justa, fraterna e solidária, por outro. Primeiramente, a noção de “Igreja como Povo de Deus”, onde os diversos serviços e ministérios não são mais ou menos importantes, mas apenas diferentes. A ideia de hierarquia, com seus degraus de importância diferenciada, dá lugar à uma concepção circular de comunidade, paróquia, diocese e igreja. Esta não é uma pirâmide, como já vimos, mas um círculo em que Cristo Crucificado e Ressuscitado se encontra no centro.

Em segundo lugar, a noção de “Igreja toda peregrina e missionária” do Decreto Ad Gentes sobre a Atividade Missionária da Igreja, em que, pelo batismo todos passamos a fazer parte do sacerdócio de Jesus Cristo, como “sacramento de salvação”. Evidente que, a esse aspecto, o Documento de Aparecida veio dar um reforço fundamental. Tendo como pano de fundo o clima do pentecostes, os bispos da América Latina e Caribe, propõem uma missão continental em que toda a Igreja esteja envolvida.

Desta forma, o próprio decreto Apostolicam Actuositatem, sobre o Apostolado dos Leigos, insiste que “nosso tempo exige dos leigos um zelo não menor, pois as circunstâncias atuais reclamam deles um apostolado mais intenso e mais amplo. Com efeito, o aumento constante da população, o progresso da ciência e da técnica, as relações humanas mais estreitas, não só aumentaram o campo de ação do apostolado leigo de maneira extraordinária; campo em grande parte só a eles aberto, mas criaram também novos problemas, que esperam deles um consciencioso cuidado e estudo” (AA, nº 01). A observação combina perfeitamente com a nova fase de nossa história de “mudanças profundas e rápidas”, como vimos anteriormente na Gaudium et Spes. De acordo com o espírito do decreto, leigos e leigas formam uma ponte entre a prática eclesial e a prática sociopolítica ou pública. É assim que o documento apresenta os diversos campos de ação dos mesmos, sublinhando as comunidades da Igreja, a família, os jovens, o ambiente social e a esfera nacional e internacional (AA, nºs 10-14). Na mesma perspectiva, e em sintonia com as encíclicas da Doutrina Social da Igreja, chama a atenção para as distintas modalidades ações, grupos e associações do apostolado leigo (AA, nºs 15-21).

Conclusão

Os olhares que acabamos de acompanhar ao longo do texto formam, na verdade, uma única visão de conjunto. Estão divididos em itens por motivos pedagógicos, mas na vida real permanecem inextricavelmente entrelaçados. Tendo em vista a ação da Igreja no seu conjunto e as atividades das Pastorais Sociais, em particular, esses olhares têm uma dupla finalidade, desdobrando-se cada uma delas, por sua vez, em duas dimensões. Por um lado, pretendemos desenvolver a prática de uma análise de conjuntura permanentemente atualizada; ao mesmo tempo, aprofundar o conhecimento dos princípios evangélicos que orientam a Doutrina Social da Igreja, seja na análise da realidade seja na busca de soluções aos problemas sociais.

Por outro lado, queremos mostrar as luzes ocultas e as pérolas encobertas desse tesouro que é a DSI, com particular destaque para a Gaudium et Spes, luzes e pérolas que, se e quando conhecidas, se revelam de enorme utilidade para a prática pastoral; no mesmo passo, contribuir para uma “pastoral orgânica e de conjunto”, pois, como bem sabemos, a GS é irmã gêmea de outros documentos, em que cada um procura dar conta de um aspecto diferente da vida cristã e eclesial. O intercâmbio e combinação de todos, numa visão aberta e plural, mostra a necessidade da comunhão e da partilha.


Alfredo J. Gonçalves

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