segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Terra Comprometida - A antecâmara de uma tragédia anunciada


O que está a passar-se na Síria é um problema sério, terrivelmente sério num mundo instável onde crescem os elementos de indefinição, tanto económicos como sociais, sobretudo em regiões estratégicas dotadas com enormes potenciais de conflito e recursos energéticos determinantes.


Como sempre acontece quando um problema entra na fase de conflito aberto e que há muito extravasou fronteiras, a questão síria é apresentada ao mundo, pelos Media de “referência”, leia-se aqueles que servem de megafone dos interesses que mandam no mundo, como uma espécie de filme de faroeste onde se confrontam os bons e os maus. É a abordagem tipicamente maniqueísta que, quase sempre, tem antecedido e justificado vastas operações militares.


O mundo está metodicamente a ser informado de que na Síria tudo se resume à prepotência e à violência de um regime de tirania, o da família Assad, contra a revolta da “oposição”, uma espécie de coisa pura, romântica, indefesa, sacrificada no altar da indiferença sob os olhos de um mundo impávido perante o martírio.


Deixemo-nos de simplificações absurdas, olhemos um pouco para a realidade. O regime de Damasco é autoritário, tirânico na forma como, ao longo de décadas, tem suprimido liberdades e reprimido levantamentos oposicionistas, um comportamento que, por isso, não é novo. Com ele têm convivido directa ou indirectamente sucessivas administrações norte-americanas, vários governos de Israel, sabendo muito bem o que acontece no país. O regime corresponde a um equilíbrio de características seculares entre correntes económicas, religiosas e sectárias através do qual a minoria alauita, a que pertence a família Assad, tem dirigido um país de maioria sunita.


A oposição, na sua versão actual, pode ser muita coisa, tem até os seus bem intencionados vectores genuinamente democráticos, mas não é um oásis de santidade. O recente relatório da delegação da Liga Árabe que visitou os principais focos de conflito e de violência ajuda a perceber uma outra realidade, que vai muito para lá do frente-a-frente entre bons e maus.


Na origem do levantamento, como aconteceu na Líbia, estiveram expressões corajosas e com vocação democratizadora repudiando os problemas políticos, sociais e humanitários de um país sob ditadura. Rapidamente, porém, essas acções espontâneas e genuínas correspondentes ao espírito daquilo a que se chamou “Primavera Árabe”, começaram a ser enquadradas por grupos organizados, militarizados, representando sobretudo tendências religiosas, sectárias, nacionalistas, manipuladas e financiadas pelas petromonarquias do Golfo, apoiadas clandestinamente pelos Estados Unidos e a NATO.

Em termos de democracia, estes grupos valem tanto como a família Assad, no fundo não procuram mais do que uma troca de poder em Damasco. O relatório da Liga Árabe, do qual apenas se desligaram os delegados da Arábia Saudita – país sem qualquer legitimidade para avaliar o carácter ditatorial de outros regimes –, revela que os grupos armados da oposição participam igualmente em massacres de civis, manejam equipamento como bombas térmicas e mísseis anti-blindagem que não se compram no bazar da esquina.

Ao contrário do que os grandes interesses petrolíferos árabes desejavam, o relatório revela não um clima de violência unilateral mas antes um cenário muito mais próximo da guerra civil. Razão pela qual o seu conteúdo está a ser abafado por acção da actual presidência da Liga Árabe, exercida pelo Qatar, país que é um dos que mais tenta contribuir para o controlo e a domesticação das “Primaveras Árabes” pelos interesses da aliança entre as petromonarquias e a NATO.


Sabe-se também que o tão enaltecido Exército Sírio Livre, espécie de estrutura equivalente aos “rebeldes” da Líbia, é financiado pelo regime islamita da Turquia e tem como elementos preponderantes nas estruturas operacionais mercenários fundamentalistas com experiência adquirida na Al Qaida e grupos afins, alguns deles destacados da Líbia para a Síria pelo próprio Abdel Hakim Belhaj, ex-companheiro de Bin Laden, governador militar de Tripoli e verdadeiro ministro da Defesa da “nova” Líbia. O Exército Livre da Síria aguarda agora que a NATO se decida a apoiá-lo no terreno, razão pelo qual o veto da China e da Rússia a uma resolução das Nações Unidas que preparava caminho para uma futura intervenção caiu tão mal entre os governos da Aliança Atlântica e respectivos propagandistas.


Não sendo a Síria a Líbia, uma vez que é um país tecnicamente em guerra com Israel, com o qual tem problemas territoriais, envolvido nas instabilidade permanente no Líbano, por que razão a sua situação de quase guerra civil é, apesar de tudo, antecâmara de uma tragédia ainda mais ampla?


Porque a Síria de Assad é o último tampão à criação de condições plenas de guerra contra o Irã, grande inimigo da frente formada pelas petromonarquias ditatoriais do Gofo, Estados Unidos/NATO, Israel e até a Turquia.

Caindo a Síria nas mãos de uma anarquia como a da Líbia, manipulada em última instância pelos fundamentalistas sunitas mais ou menos aparentados com a Al Qaida, o Irã xiita será, sem dúvida, um alvo muito mais vulnerável. Esta hipótese aconteceria, porém, se fosse possível fazer equivaler a questão Síria à da Líbia, o que é muito improvável. Mais provável será uma guerra de longa duração num país marcado pelo ressurgimento pleno de lutas sectárias, religiosas e comunitárias.


Se olharmos para os exemplos dos resultados das intervenções dos Estados Unidos e da NATO no Iraque e no Afeganistão não é exagero admitir um cenário de guerras generalizadas e prolongadas estendidas aos territórios da Síria e do Irã, ligando-se aliás geograficamente com as do Afeganistão e do Paquistão, de um lado, e do Iraque, do outro, e ainda envolvendo diretamente Israel. Este é um dos quadros mais negros que poderemos imaginar hoje e que, pesando os fatos presentes, já está para lá da fase de especulação. Guerras prolongadas são desgastantes, agravam crises económicas e políticas, tendem a repercutir instabilidades em cadeia. Daí à tentação de as abreviar, recorrendo à solução nuclear, pode ser o passo de um anão.
A questão Síria é, sem qualquer dúvida, muito assustadora.


Fonte: Jornal de Angola


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