1. A forma como a Igreja católica vê hoje a tarefa ecuménica, considerando-a uma opção “irreversível” e “prioritária”, é impensável sem o Concílio. Por outro lado, o alcance do Vaticano II só se entende olhando para o peso que a consciência do problema ecuménico teve no decurso do processo conciliar.
A questão ecuménica esteve presente logo na intenção de convocar o Concílio (anunciada no último dia do Oitavário pela Unidade - 25.1.1959). Ainda antes do seu início, João XXIII criou o Secretariado para a Unidade dos Cristãos (15.6.1960), que veio a ter uma importância fulcral na forma como muitos temas foram refletidos. Finalmente, a 19.10.1962 (pouco depois do início da 1ª sessão), João XXIII elevou o Secretariado ao nível de Comissão conciliar, colocando-o em igualdade com as outras Comissões.
2. Do ponto de vista ecuménico, o Concílio representou um profundo salto qualitativo na consciência católica. Pode falar-se mesmo de uma “transformação epocal”, no sentido de que o Concílio marcou “o princípio do fim” de uma mentalidade de “Contra-Reforma”, que condicionou a identidade católica desde Trento até aos nossos dias, conduzindo-a a estreitezas confessionalistas limitadoras da sua catolicidade. Para essa mudança foi estimulante a presença de observadores não católicos.
3. Em termos de conteúdos, a importância ecuménica do Vaticano II encontrou expressão direta no Decreto Unitatis redintegratio (UR), votado a 19.11.1964, no mesmo dia da Lumen Gentium (LG). A coincidência de datas não é casual: o Decreto sobre o Ecumenismo tem de ser lido em estreita ligação com a Constituição sobre a Igreja. Todos os aspetos da renovação eclesiológica operada pelo Concílio são de relevância ecuménica: desde o novo sentido do mistério da Igreja à visão da Igreja como “Povo de Deus”; desde as bases de uma eclesiologia de comunhão à valorização, ainda que incipiente, da realidade das Igrejas Locais.
A abertura ecuménica na Lumen Gentium emerge sobretudo na perceção da comunhão que já existe entre todos os cristãos, comunhão essa assente em bens que edificam a Igreja: a Palavra de Deus escrita; a fé trinitária; a vida da graça; a fé, a esperança e a caridade e outros dons interiores do Espírito Santo, etc. (LG 15). Por isso, reconhece-se que a “Igreja de Cristo” não se identifica pura e simplesmente com a “Igreja católica”, mas “subsiste” nela. Ou seja: fora do espaço visível da Igreja católica há elementos de santificação e de verdade, há eclesialidade (LG 8).
4. Dois outros documentos são de grande significado ecuménico. Em várias das suas perspetivas – por exemplo, na conceção da Revelação ou na visão da relação entre Escritura e Tradição – a Constituição Dei Verbum coloca sob outros pressupostos o diálogo com os cristãos provenientes da Reforma. Não menos relevante é a Declaração Dignitatis humanae sobre a liberdade religiosa como um direito social e civil, individual e comunitário, a reconhecer pelo Estado em todas e quaisquer circunstâncias.
5. O Decreto sobre o Ecumenismo foi um dos documentos que requereu maior disponibilidade mental para a mudança (a sua aprovação exigiu grande capacidade de diálogo interno). Destacam-se algumas das suas afirmações: os cristãos não católicos são vistos como “irmãos no Senhor” (UR 3); há bens de salvação nas outras Igrejas e Comunidades eclesiais (UR 3); os católicos também foram responsáveis pelas divisões (UR 3 e 7); o ecumenismo exige disponibilidade para uma renovação permanente (UR 3 e 6); no centro da tarefa da unidade está o ecumenismo espiritual (UR 7 e 8); há uma legítima pluralidade na expressão da verdade cristã (UR 4, 9); importa atender à “hierarquia das verdades” da fé (UR 11).
6. A receção ecuménica do Concílio tem sido marcada por avanços e recuos (o que não acontece só na Igreja católica). De qualquer forma, avançou-se mais em quase 50 anos do que nos últimos cinco séculos. Basta ler a Encíclica Ut Unum Sint (1995) enquanto receção criativa do Concílio, a Declaração católico-luterana sobre a Justificação (1999) ou o documento católico-anglicano sobre Maria (2005) para confirmar isso.
Naturalmente, persistem tarefas bem complexas a enfrentar. A busca da unidade é questionada por novos problemas e frequentemente contraditada na prática concreta. Um problema fulcral é que muitos membros da Igreja (também hierarcas e teólogos) ainda não interiorizaram o que a tarefa ecuménica exige em termos de transformação de mentalidade e de abertura à ação criativa do Espírito.
José Eduardo Borges de Pinho
professor da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa
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