As ondas de pânico criadas em torno de casos de  corrupção, desde Collor, têm servido mais a desqualificar a política do  que propriamente moralizar a nossa democracia. Apesar da imensa caça às  bruxas movida pela mídia contra os governos, em nenhum momento essa  sucessão de escândalos, reais ou não, incluíram seriamente a opinião  pública num debate sobre a razão pela qual um sistema inteiro é  apropriado pelo poder privado, e, principalmente, porque não se  questiona essa apropriação.
A corrupção do sistema político merece uma  reflexão para além das manchetes dos jornais tradicionais. Em especial  neste momento que o país vive, quando a nova democracia completou 26  anos e a política, que é a sua base de representação, se desgasta  perante a opinião pública. Este é o exato momento em que os valores  democráticos devem prevalecer sobre todas as discordâncias partidárias,  pois chegou no limite de uma escolha: ou diagnostica e aperfeiçoa o  sistema político, ou verá sucumbi-lo perante o descrédito dos cidadãos.
O  país pós-redemocratização passou por um governo  que foi um fracasso no  combate à inflação, um primeiro presidente eleito pelo voto direto  pós-ditadura apeado do poder por denúncias de corrupção, dois governos  tucanos que, com uma política antiinflacionária exitosa, conseguiram  colocar o país no trilho do neoliberalismo que já havia grassado o  mundo, e por fim dois governos do PT, um partido de difícil assimilação  por parcela da população. Nesse período, a mídia incorporou como poder  próprio o julgamento e o sentenciamento moral, numa magnitude tal que  vai contra qualquer bom senso.
Este é um assunto difícil porque  pode ser facilmente interpretado como uma defesa da corrupção, e não é.  Ou como questionamento à liberdade de imprensa, e está longe disso. O  que se deve colocar na mesa, para discussão, é até onde vai legitimidade  da mídia tradicional brasileira para exercer uma função fiscalizadora  que invade áreas que não lhes são próprias. Existe um limite tênue entre  o exercício da liberdade de imprensa na fiscalização da política e a  usurpação do poder de outras instituições da República.
Outra  questão que preocupa muito é que a discussão emocional, fulanizada,  mantida pelos jornais e revistas também como um recurso de marketing,  têm como maior saldo manter o sistema político tal como é. É impossível  uma discussão mais profunda nesses termos: a escandalização da política e  a demonização de políticos trata-os como intrinsicamente corruptos,  como pessoas de baixa moral que procuram na atividade política uma forma  de enriquecimento privado.  Ninguém se pergunta como os partidos  sobrevivem mantidos por dinheiro privado e que tipo de concessão têm que  fazer ao sistema.
Desde Antonio Gramsci, o pensador comunista  italiano que morreu na masmorra de Mussolini, a expressão “nenhuma  informação é inocente” tem pontuado os estudos sobre o papel da imprensa  na formulação de sensos comuns que ganham a hegemonia na sociedade.  Gramsci já usava o termo “jornalismo marrom” para designar os surtos de  pânico promovidos pela mídia, de forma a ganhar a guerra da opinião  pública pelo medo.
No Brasil atual, duas grandes crises de  pânico foram alimentadas pela mídia tradicional brasileira no passado  recente. Em 2002, nas eleições em que o PT seria vitorioso contra o  candidato do governo FHC, a mídia claramente mediou a pressão dos  mercados financeiros contra o candidato favorito, Luiz Inácio Lula da  Silva. Tratava-se, no início, de fixar como senso comum a referência “ou  José Serra [o candidato tucano] ou o caos”.
Depois, a meta era  obrigar Lula e o PT ao recuo programático, garantindo assim a abertura  do mercado financeiro, recém-completada, para os capitais  internacionais. Em 2005, na época do chamado “mensalão”, o discurso do  caos foi redirecionado para a corrupção. Politicamente, era uma chance  fantástica para a oposição ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva: a  única alternativa para se contrapor a um líder carismático em  popularidade crescente era tirar de seu partido, o PT, a bandeira da  moralidade. A ofensiva da imprensa, nesse caso, não foi apenas mediadora  de interesses. A mídia não apenas mediava, mas pautava a oposição e era  pautada por ela, num processo de retroalimentação em que ela própria [a  mídia] passou a suprir a fragilidade dos partidos oposicionistas. Ao  longo desse período,  tornou-se uma referência de poder político,  paralelo ao instituído pelo voto.
Eleita Dilma Rousseff, a  oposição institucional declinou mais ainda, num país que historicamente  voto e poder caminham juntos, e ao que tudo indica a mídia assumiu com  mais vigor não apenas o papel de poder político, mas de bancada  paralela. Dilma está se tornando uma máquina de demitir ministros. Nas  primeiras demissões, a ofensiva da mídia deu a ela um pretexto para se  livrar de aliados incômodos, nas complicadas negociações a que o Poder  Executivo se vê obrigado em governos de coalizão num sistema partidário  como o brasileiro. Caiu, todavia, numa armadilha: ao ceder ministros,  está reforçando o poder paralelo da mídia; em vez de virar refém de  partidos políticos que, de fato, têm deficiências orgânicas sérias,  tornou-se refém da própria mídia.
As ondas de pânico criadas em  torno de casos de corrupção, desde Collor, têm servido mais a  desqualificar a política do que propriamente moralizar a nossa  democracia. Mais uma vez, volto à frase de Gramsci: não existe notícia  inocente. O Brasil saído da ditadura já trazia, como herança, um sistema  político com problemas que remontam à Colônia. O compadrio, o  mandonismo e o coronelismo são a expressão clássica do que hoje se  conhece por nepotismo, privatização da máquina pública e falha separação  entre o público e o privado. A política tem sido constituída sobre  essas bases e, depois de cada momento autoritário e a cada período de  redemocratização no país, seus problemas se desnudam, soluções  paliativas são dadas e a cultura fica. Por que fica? Porque é a fonte de  poderes – poderes privados que podem se sobrepor ao poder público  legitimamente constituído.
O sistema político é mantido por  interesses privados, e é de interesse de gregos e troianos que assim  permaneça. Segundo levantamento feito pela Comissão Especial da Câmara  que analisa a reforma política, cerca de 360 deputados, em 513, foram  eleitos porque fizeram as mais caras campanhas eleitorais de seus  Estados. Com dinheiro privado. Em sã consciência, com quem eles têm  compromissos? Eles apenas tiveram acesso aos instrumentos midiáticos e  de marketing político cada vez mais sofisticados porque foram  financiados pelo poder econômico. É o interesse privado quem define se o  dinheiro doado aos candidatos e partidos é lícito ou ilícito.
O  dinheiro do caixa dois passou a fazer parte desse sistema. Não existe  nenhum partido, hoje, que consiga se financiar privadamente – como  define a legislação brasileira – sem se envolver com o dinheiro das  empresas; e são remotíssimas as chances de um político financiado pelo  poder privado escapar de um caixa dois, porque normalmente é o caixa  dois das empresas que está disponível. Num sistema eleitoral onde o  dinheiro privado, lícito e ilícito, é o principal financiador das  eleições, ocorre a primeira captura do sistema político pelo poder  privado. E isso não acaba mais.
Esse é o âmago de nosso sistema  político. A democratização trouxe coisas fantásticas para a política  brasileira, como o voto do analfabeto, a ampla liberdade de organização  partidária e a garantia do voto. Mas falhou no aperfeiçoamento de um  sistema que obrigatoriamente teria de ser revisto, no momento em que o  poder do voto foi restabelecido pela Constituição de 1988.
Num  sistema como esse, por qualquer lado que se mexa é possível desenrolar  histórias da promiscuidade entre o poder público e o dinheiro privado.  Por que isso não entra, pelo menos, em discussão? Acredito que a  situação permaneça porque, ao fim e ao cabo, ela mantém o poder político  sob o permanente poder de chantagem privado. De um lado, os  financiadores de campanhas se apoderam de parcela de poder. De outro, um  sistema imperfeito torna facilmente capturável  o poder do voto também  por aparelhos privados de ideologia, como a mídia. Como nenhuma notícia é  inocente, a própria pauta leva a relações particulares entre políticos e  o poder econômico, ou entre a máquina pública e o partido político. A  guerra permanente entre um governo eleito que tem a oposição de uma  mídia dominante é alimentada pelo sistema.
O apoderamento da  imprensa é ainda maior. Se, de um lado, a pauta expressa seu imenso  poder sobre a política brasileira, ela não cumpre o papel de apontar  soluções para o problema. Não existe intenção de melhorá-lo, de atacar  as verdadeiras causas da corrupção. Apesar da imensa caça às bruxas  movida pela mídia contra os governos, em nenhum momento essa sucessão de  escândalos, reais ou não, incluíram seriamente a opinião pública num  debate sobre a razão pela qual um sistema inteiro é apropriado pelo  poder privado, inclusive e principalmente porque não se questiona o  direito de apropriação do poder público pelo poder privado. A mídia  tradicional não fez um debate sério sobre financiamento de campanha; não  dá a importância devida à lei do colarinho branco; colocou a CPMF, que  poderia ser um importante instrumento contra o dinheiro ilícito que  inclusive financia campanhas eleitorais, no rol da campanha contra uma  pretensa carga insuportável de impostos que o brasileiro paga.
Pode  fazer isso por superficialidade no trato das informações, por falta de  entendimento das causas da corrupção – mas qualquer boa intenção que  porventura exista é anulada pelo fato de que é este o sistema que  permite à imprensa capturar, para ela, parte do poder de instituições  democráticas devidamente constituídas para isso.
(*) Texto apresentado no Seminário Internacional sobre a Corrupção, dia 7 de novembro de 2011, em Porto Alegre.

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