"Mudamos de destino quando soubemos do que iria acontecer no grande salão da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, no dia 21 de outubro, um debate entre poderosos grileiros de terra e centenas de famílias posseiras, ocupando terras, reservadas pela constituição brasileira, para índios e quilombolas. Estaria prestes a explodir, particularmente no município de Morro Alto, no litoral, uma nova “guerra de miseráveis” assim cognominado o Levante de Nonoai dos índios Kaingang, contra os dez mil intrusos de suas terras, nos idos da década de 1970?", comenta Antonio Cechin, irmão marista e miltante dos movimentos sociais, autor do livro Empoderamento Popular. Uma pedagogia de libertação. Porto Alegre: Estef, 2010.
Eis o artigo.
Anteontem, dia 21 de outubro, no salão Dante Barone da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, tivemos a alma e o coração em prantos, numa sessão sumamente vergonhosa para todas as pessoas decentes do nosso estado.
O enorme salão, em pleno dia de semana, à primeira hora da tarde, regurgitava de gente, sentada até no chão dos corredores. Lá fora outra massa humana, impedida de entrar por absoluta falta de lugar. Tivemos que invocar o Estatuto do Idoso aos que guardavam a entrada a fim de conseguir furar as filas.
Íamos naquele dia para a Assembléia Legislativa com o objetivo de participar de um debate internacional sobre a água como “bem público e universal” contra qualquer privatização possível, a fim do precioso líquido não ser transformado em mercadoria, sujeita a lucros de empresas particulares. Afinal de contas, poucos dias antes havíamos coordenado a grande Romaria das Águas na orla do Guaíba cujo lema havia sido “Água, um bem público e universal.”
Mudamos de destino quando soubemos do que iria acontecer no grande salão, um debate entre poderosos grileiros de terra e centenas de famílias posseiras, ocupando terras, reservadas pela constituição brasileira, para índios e quilombolas. Estaria prestes a explodir, particularmente no município de Morro Alto, no litoral, uma nova “guerra de miseráveis” assim cognominado o Levante de Nonoai dos índios Kaingang, contra os dez mil intrusos de suas terras, nos idos da década de 1970?
Debate, simplesmente não houve. A sessão foi promovida pelas Comissões da Agricultura do Senado e da Câmara Federal de deputados. As duas pessoas representantes daqueles dois parlamentos de Brasília, pertencem a dois partidos ultra-conservadores. Dirigia a sessão a Senadora rio-grandense do partido da RBS. Dirigiu a sessão com verdadeira mão de ferro, uma autêntica Margaret Thatcher.
Dado o sinal para começar a sessão, levantamo-nos, espichamos o pescoço para os quatro lados do auditório a fim de ver presença de algum índio ou negro. Não avistamos absolutamente nenhum. Todo o enorme salão absolutamente repleto só de brancos descendentes de europeus. Soubemos depois, quando teve a palavra o representante da Funai que índios e negros nem haviam sido convidados, imediatamente rebatido de maneira tempestiva pela dama de ferro que presidia a sessão alegando pequena notícia no dia mesmo da realização do evento.
Várias faixas e cartazes eram erguidos por todos os pontos do salão, altos e compridos, segurados por filas inteiras de pessoas que, volta e meia, se levantavam, em plena sessão, juntamente com os dizeres, para exibi-los à mesa da presidência e a eventuais fotógrafos de jornais ou simples pessoas interessadas hoje e sempre, pela facilidade de hoje se fotografar até pelo próprio celular. O máximo que conseguimos ler nas faixas, nunca voltadas para o fundo da sala que ocupávamos, eram insultos à Funai e ao Incra apelidados de racistas, fabricantes de ameaças, vendidos, etc. etc.
A sessão foi uma vergonha porque inteiramente tendenciosa. Aplausos frenéticos ou vaias exclusivamente em favor dos descendentes de europeus. Conforme a senadora e a absoluta maioria dos que falaram o “debate” deveria fornecer subsídios a fim de mudar a lei e os decretos do presidente Lula e outros já em vigor, a fim de colocar todos os ocupantes de áreas de conflito, em pé de igualdade com relação à moradia e direitos à propriedade garantida por lei, quer se trate de índios, quilombolas, posseiros ou proprietários em geral. Em resumo: uma nova lei, nivelando todos porque, segundo a própria constituição “todos são iguais perante a lei”
Quando depois de muito gritar lá fora, alguns índios e quilombolas conseguiram entrar, sentado primeiro no chão, só mais tarde em assento esvaziado, bem lá na frente, com a cara e a coragem, Roberto Liebgott, presidente do CIMI [sic] e acadêmico de direito, levantou-se para protestar. Alguém que falasse desde o público, ao final, por magros minutos a favor dos oprimidos, tinha tempo de duração diminuído em relação aos que falavam a favor dos intrusos nas terras índias e quilombolas.
Em nosso modesto entender, tanto as Igrejas do Rio Grande do Sul como todo o seu trabalho de evangelização, estão colocados contra a parede. A opção pelos pobres continua em vigor? Face aos crimes históricos contra índios e negros des-terra-dos e desen-terra-dos (em sentido etimológico: fora da terra o primeiro, e com raízes para fora, o segundo) como estão, índios ocupando beiras de estradas pelos quatro cantos do interior do estado, e quilombolas acuados por todos os lados em suas rocinhas, cada dia mais minguadas, a ponto de mal e mal sobreviverem, porque assistem à diminuição permanente de seu pedaço de chão, provocado pelas cercas particulares de vizinhos brancos, ocupando sempre mais um palmo ou dois de terra lindeira, em cada renovação ou conserto que fazem constantemente, qual o sentido de uma ferramenta de massa chamada Romaria da Terra? Nossas anuais Campanhas da Fraternidade atingem seus objetivos como campanhas propriamente ditas? Por que nossa Igreja Católica, Apostólica e Romana não lança mão, para uma evangelização mais eficaz, das missas penitenciais para brancos: a indígena Missa da Terra Sem Males, e da afro-brasileira Missa dos Quilombos, de autoria do grande bispo Dom Pedro Casaldáliga? Qual a razão da existência de uma Missa Crioula, de caráter gauchesco, sem absolutamente nenhuma alusão a pobres e oprimidos?
Qual a catequese mais excelente, isto é a mais de acordo com os evangelhos: a tradicional ou antiga, advinda da Europa, apenas doutrinária ou religiosa, ou a catequese libertadora criada aqui na América Latina a partir dos documentos de Medellín e que utiliza o método Paulo Freire tendo servido de base para a Teologia da Libertação? É que também tivemos a sensação, na famigerada reunião-debate, que a maioria dos pequenos agricultores que entulharam o salão eram da Fetag, ou seja, os que provieram da Frente Agrária Gaúcha (FAG), organização católica de famílias que foram catequizadas antes do surgimento das CEBs e da Teologia da Libertação. Pelas ressonâncias constantes no ambiente da assembléia, esses agricultores são os que funcionaram como massa de manobra rumo a Brasília, há pouco mais de um mês, junto com o agronegócio, em favor do Código florestal de autoria de Aldo Rebelo. Também me pareceu que não havia absolutamente nenhum ligado ao MST, ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), ou à Via Campesina, ou à atual Juventude Rural, todos movimentos trabalhados em tempo de CEBs e catequese libertadora. Certamente foi proposital o direcionamento dos convites feitos às escondidas de quem pudesse ter vindo com propósitos de somar com índios e quilombolas.
Nosso saudoso bispo-profeta Dom Hélder Câmara, no ano de 1981, no dia do lançamento da Missa dos Quilombos saudou uma nova aurora para todos os oprimidos dizendo:
“É importante, Mariama, que a Igreja de teu Filho não fique em palavras, não fique em aplausos. O importante é que a CNBB, a Conferência dos Bispos, embarque de cheio na causa dos negros, como entrou de cheio na Pastoral da Terra e na Pastoral dos Índios. Não basta pedir perdão pelos erros de ontem. É preciso acertar o passo hoje sem ligar ao que disserem. Claro que dirão Mariama, que é política, que é subversão, que é comunismo. É Evangelho de Cristo Mariama!... Mariama, Mãe querida, problema de negro, acaba se ligando com todos os grandes problemas humanos. Com todos os absurdos contra a humanidade, com todas as injustiças e opressões”.
A referida sessão da Assembléia Legislativa a que assistimos no dia 21 de outubro de 2011, não só nos lembrou como também nos convenceu dos fundamentos da tese defendida em relação à Cultura Gauchesca, por parte do escritor Nivaldo Pereira, de que os farroupilhas mataram nosso Paraíso Terrestre inicial: o do Povo Guarani com São Sepé Tiaraju, os Sete Povos Missioneiros, fruto da saga Evangelizadora dos Jesuítas, iniciada há 400 anos atrás. (“Deus morto no Pampa”: um olhar sobre a cultura gaúcha a partir da religiosidade no mito fundador – Ensaio / Nivaldo Pereira. – Caxias do Sul, RS: Biblioteca Pública Municipal Dr. Demétrio Niederauer, 2008, 245 p.
Fonte: IHU
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