Escritos de teologia social
“Toda teologia é social: queira ou não queira, tenha ou não tenha consciência disso” Ermanno Allegri
Aqui, ele fala sobre o caminhar da Teologia da Libertação e seus desdobramentos durante essas últimas décadas. A citação também faz referência ao seu livro A dimensão socioestrutural do reinado de Deus – Escritos de teologia social, no qual o autor se debruça sobre os avanços, desafios sobre esse modo de ser e viver a Igreja nos dias atuais.
"Falar de Deus é tão importante e tão teológico quanto falar dos processos de organização e estruturação coletivas da vida humana”, diz. Francisco Aquino Junior é Doutor em teologia pela Westfälische Wilhelms-Universität de Münster (Alemanha), professor de teologia na Faculdade Católica de Fortaleza e presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte, no Ceará.
Publicou ainda A teologia como intelecção do reinado de Deus: o método da teologia da libertação segundo Ignácio Ellacuria.
ADITAL - Seu livro A dimensão socioestrutural do reinado de Deus – Escritos de teologia social foi lançado há poucos dias pela Editora Paulinas. É o segundo livro que você escreve a partir da teologia da libertação. O que isso significa em termos eclesiais? É uma novidade?
Francisco de Aquino Junior - Significa, em primeiro lugar, que continua existindo uma Igreja da libertação, comprometida com os processos históricos de libertação. Porque existe também uma Igreja comprometida (por aliança ou por omissão) com os processos históricos de dominação – tanto no passado quanto no presente. E significa, em segundo lugar, que esse compromisso da Igreja com os processos de libertação e os próprios processos de libertação enquanto tais são refletidos e sistematizados teologicamente. É o momento teórico de um processo histórico-práxico. No início da década de 1970, Gustavo Gutiérrez já falava da teologia como "reflexão crítica da práxis histórica à luz da Palavra”, como "um momento do processo por meio do qual o mundo é transformado, abrindo-se ao dom do reino de Deus”. E Ignacio Ellacuría, nesse mesmo período, falava da teologia como "momento consciente e reflexo da práxis eclesial” que é a práxis do reinado de Deus. Neste sentido, o livro não constitui propriamente uma novidade. Ele se situa dentro da tradição teológica que vem sendo desenvolvida na América Latina e mundo inteiro nos últimos 40 anos, conhecida como Teologia da Libertação (TdL). O que pode ser novo é o modo de tratar certas questões (fé-política, dimensão social da fé), a abordagem de problemas mais recentes (globalização, meio ambiente, povo da rua) e o próprio fato de se continuar fazendo TdL frente à insistência dos profetas de calamidade, comprometidos com os impérios de ontem e de hoje, em "anunciar” o fim ou a morte de uma teologia comprometida com os pobres e oprimidos deste mundo.
ADITAL - Na introdução do seu novo livro você afirma que a Teologia da Libertação e as que dela derivaram, são sociais, sendo o ser humano um ser social (seu saber é social, seu trabalho, etc.). Esta é uma característica específica desta teologia?
Francisco de Aquino Junior - Toda teologia é social: queira ou não queira, tenha ou não tenha consciência disso. Ela trata da história da salvação que tem uma dimensão social constitutiva; ela responde ou corresponde a determinados interesses sociais; ela está ligada a uma tradição eclesial que é uma força social; ela utiliza mediações teórico-conceituais socialmente produzidas e mediadas; e tem sempre um caráter conflitivo. O que acontece é que nem sempre ou quase nunca (por ingenuidade ou por má fé) os/as teólogos/as assumem explicitamente o caráter social de suas teologias nem muito menos se perguntam a quem servem/interessam essas teologias ou quem se dá bem com elas. A TdL é uma das poucas teologias que desde o início assumiu explicitamente tanto seu caráter social, quanto o lugar social a partir de onde ela deve ser produzida e onde ela deve ser testada/provada: o mundo dos pobres e oprimidos. Dito isto, é preciso evitar um mal entendido acerca da TdL. O fato de ter uma dimensão ou um caráter social constitutivo, não significa que seja uma teologia das questões sociais, como defendia no passado e voltou a defender nos últimos tempos Clodovis Boff. A TdL não é simplesmente uma teologia do social. Ela trata de tudo, inclusive ou mesmo especialmente do social, a partir e na perspectiva do reinado de Deus, cujo critério e cuja medida são sempre as necessidades dos pobres e oprimidos deste mundo (Mt 25, 31-46; Lc 10,25-37). Na medida em que trata da história da salvação ou do reinado de Deus, trata de Jesus Cristo, trata do mistério de Deus, trata do ser humano, trata da Igreja, trata dos sacramentos etc., e trata também de questões mais direta e explicitamente sociais, como é o caso do livro que estamos comentando. Nesta perspectiva, falar de Deus é tão importante e tão teológico quanto falar dos processos de organização e estruturação coletivas da vida humana – sempre a partir e em vista do reinado de Deus. E não sejamos ingênuos. Não é que primeiro tenhamos que falar de "Deus em si” para depois falar da vida humana, pois todo discurso sobre Deus está mediado por uma experiência histórica concreta. No caso da tradição judaico-cristã, trata-se de uma experiência de libertação dos pobres e oprimidos que se constitui em critério do discurso sobre Deus, sobre a fé e sobre a vida em geral.
ADITAL - Entendemos que a teologia nasce dentro da fé que se pauta pela prática da vida de Jesus Cristo. Portanto uma única referência com práticas e teologias diferenciadas, a partir das culturas e das diferentes situações sociais?
Francisco de Aquino Junior - O que está em jogo na fé e na teologia cristãs é sempre a realização histórica do reinado de Deus, como afirmamos há pouco. E o reinado de Deus diz respeito não somente a Deus, mas a seu reinado sobre a vida humana e mesmo sobre a totalidade da criação. Neste sentido, a teologia deve tratar de todas as questões e de todas as dimensões da vida humana, sempre a partir dos pobres e oprimidos e sempre na perspectiva de sua libertação. Esse "a partir de” e "na perspectiva de” é o que permite falar de TdL no singular. Mas na medida em que trata de questões ou dimensões específicas, constitui-se como uma realidade plural. E isso é o que justifica falar de teologias da libertação no plural: feminista, negra, indígena, ecológica, macro-ecumênica etc. Em síntese, a teologia é plural, na medida em que trata de temas, questões, dimensões e perspectivas distintas e o faz com distintas mediações prático-teóricas. É singular, na medida em que, tomando como critério a experiência bíblica de Deus, trata tudo isso a partir e na perspectiva dos pobres e oprimidos.
ADITAL - Até hoje, para muitos cristãos, o modelo da igreja ocidental era único e hegemônico, mas existem modelos diferentes e até conflitantes de igreja. Esses modelos são igualmente legítimos?
Francisco de Aquino Junior - Embora não exista acima nem independentemente das culturas, a Igreja não pode se identificar sem mais com nenhuma cultura. Deve encarnar-se nas mais diferentes culturas, sem perder a profecia nestas mesmas culturas. Mas isso é algo extremamente complexo e conflitivo, como se pode constatar no nascimento da Igreja "fora” do mundo judaico (Gl 2; At 15), na vivência da fé e em sua formulação teórica no mundo greco-helenista nos primeiros séculos, na ação missionária da Igreja ao longo de sua história e na chamada "mudança de época” que caracteriza o momento presente. A tentação constante é absolutizar uma determinada configuração histórica da Igreja, o que normalmente vem junto da defesa (nem sempre explícita) de determinados privilégios e interesses. Creio que aqui é muito importante ter presente que nenhuma cultura nem nenhuma configuração histórica da Igreja é absoluta, por mais valiosa/evangélica que seja e que o caráter missionário da Igreja exige que ela esteja aberta a todas as culturas, que possa adquirir diferentes configurações. E o critério evangélico de discernimento das diferentes culturas, das diferentes configurações da Igreja e da legitimidade dessas diferentes configurações está dado na única exigência que o chamado Concílio de Jerusalém fez às igrejas nascentes no mundo "pagão”: "somente pediram que nos lembrássemos dos pobres, questão que me esforcei por cumprir” (Gl 2,10).
ADITAL - No nosso continente vários países já realizam mudanças radicais na política, na economia, etc. Na hierarquia eclesiástica, porém, não há abertura para realizar as profundas mudanças que vários setores da igreja estão reivindicando com sempre mais força. E aí? É melhor trabalhar para o Reino de Deus e ignorar as igrejas?
Francisco de Aquino Junior - A questão é bem mais complexa...Em primeiro lugar, creio que é importante recordar com o Vaticano II que a Igreja é o povo de Deus, com seus carismas e ministérios. Ela não pode ser identificada sem mais com os que assumem o ministério de presidência da comunidade, seja oficialmente (bispos, presbíteros), seja na prática (lideranças comunitárias, agentes de pastoral). Neste sentido, ignorar a Igreja seria ignorar a presença e ação dos cristãos no mundo, seu compromisso com a realização histórica do reinado de Deus. Em segundo lugar, é preciso reconhecer os ventos contrários ao espírito do Concílio, as tentativas de frear e mesmo barrar o processo de renovação conciliar, a "volta à grande disciplina”, o eclesiocentrismo etc., que foi se impondo na Igreja, sobretudo a partir de João Paulo II e da geração de bispos por ele nomeada. Há quem diga que quase exterminaram a raça dos profetas no meio episcopal... Em terceiro lugar, não podemos negar nem menosprezar as grandes mudanças que se deram na Igreja, particularmente na América Latina, nas últimas décadas. Seja no que diz respeito à identidade eclesial (missão como compromisso batismal e não como encargo da hierarquia), seja no que diz respeito à democratização eclesial (não apenas bispos e padres, mas também comunidades, pastorais e movimentos falam como Igreja e em nome da igreja), seja no que diz respeito àquilo que constitui o centro da vida e da missão cristã (realização histórica do reinado de Deus). E não obstante todos os limites destes avanços e todos os conflitos que eles implicaram e acarretaram. Em quarto lugar, não podemos ser tão otimistas/ingênuos com relação às mudanças econômicas e políticas que vêm ocorrendo em alguns países da AL nos últimos anos. É que elas que não são tão radicais como afirmam seus promotores e propagadores. Embora tenha havido um crescimento significativo das políticas sociais em alguns países e isso tenha ajudado a reduzir o índice de pobreza absoluta, quase não alterou a estrutura econômica neoliberal em curso. É o caso, sobretudo, do Brasil, onde, como indica Marcio Pochmann, a diminuição da "pobreza absoluta” (de 71,5% em 1978 para 31,4% em 2008) foi acompanhada de um crescimento da "pobreza relativa” (de 23,7% em 1978 para 45,2% em 2008): "a tendência positiva de redução da pobreza absoluta parece implicar na migração para a pobreza relativa”, afirma. Tudo isso para dizer que o fundamental da vida cristã é o compromisso com a realização histórica do reinado de Deus na sociedade, em geral, e na igreja, em particular. E que tanto na sociedade como na Igreja há sinais de sua presença e há forças contrárias a seu dinamismo. O grande desafio para nós é identificar esses sinais e potencializá-los e combater essas forças contrárias. Sem esquecer que o fazemos como Igreja de Jesus Cristo... Muitas vezes, apesar da Igreja...
ADITAL - O Fórum Social Mundial como o fogo do Pentecostes se multiplicou em milhares de chamas: fórum da saúde, educação, ecologia, teologia, de parlamentares, etc. Em cada fórum há centenas de padres, bispos, religiosos/as, cristãos militantes e oficinas de trabalhos realizados por pastorais. Esta seria a prática de Jesus para ‘ser sal e luz do mundo'?
Francisco de Aquino Junior - Com certeza! Onde quer que se defenda a vida, que se lute pela justiça, que se esforce e se empenhe na construção de um mundo mais justo e fraterno ai está o Espírito do Deus de Jesus e aí tem que estar aqueles/as que se deixam conduzir por este mesmo Espírito. Pouco importa a confissão religiosa. Nem todo aquele que diz Senhor, Senhor toma parte no reinado de Deus, mas aqueles que fazem sua vontade... Isso não nega a importância e mesmo a necessidade da Igreja, mas simplesmente põe no centro aquilo que é central: a realização do reinado de Deus, cuja característica e cuja medida mais importante é a justiça aos pobres e oprimidos deste mundo. Neste sentido, bem diz o profeta Pedro Casaldáliga, "tudo é relativo, menos Deus e a fome”...
Fonte: Adital
“Toda teologia é social: queira ou não queira, tenha ou não tenha consciência disso” Ermanno Allegri
"Toda teologia é social: queira ou não queira, tenha ou não tenha consciência disso”. Esta é uma das frases contidas na entrevista concedida recentemente pelo teólogo e escritor Francisco de Aquino Junior à ADITAL.
Aqui, ele fala sobre o caminhar da Teologia da Libertação e seus desdobramentos durante essas últimas décadas. A citação também faz referência ao seu livro A dimensão socioestrutural do reinado de Deus – Escritos de teologia social, no qual o autor se debruça sobre os avanços, desafios sobre esse modo de ser e viver a Igreja nos dias atuais.
"Falar de Deus é tão importante e tão teológico quanto falar dos processos de organização e estruturação coletivas da vida humana”, diz. Francisco Aquino Junior é Doutor em teologia pela Westfälische Wilhelms-Universität de Münster (Alemanha), professor de teologia na Faculdade Católica de Fortaleza e presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte, no Ceará.
Publicou ainda A teologia como intelecção do reinado de Deus: o método da teologia da libertação segundo Ignácio Ellacuria.
ADITAL - Seu livro A dimensão socioestrutural do reinado de Deus – Escritos de teologia social foi lançado há poucos dias pela Editora Paulinas. É o segundo livro que você escreve a partir da teologia da libertação. O que isso significa em termos eclesiais? É uma novidade?
Francisco de Aquino Junior - Significa, em primeiro lugar, que continua existindo uma Igreja da libertação, comprometida com os processos históricos de libertação. Porque existe também uma Igreja comprometida (por aliança ou por omissão) com os processos históricos de dominação – tanto no passado quanto no presente. E significa, em segundo lugar, que esse compromisso da Igreja com os processos de libertação e os próprios processos de libertação enquanto tais são refletidos e sistematizados teologicamente. É o momento teórico de um processo histórico-práxico. No início da década de 1970, Gustavo Gutiérrez já falava da teologia como "reflexão crítica da práxis histórica à luz da Palavra”, como "um momento do processo por meio do qual o mundo é transformado, abrindo-se ao dom do reino de Deus”. E Ignacio Ellacuría, nesse mesmo período, falava da teologia como "momento consciente e reflexo da práxis eclesial” que é a práxis do reinado de Deus. Neste sentido, o livro não constitui propriamente uma novidade. Ele se situa dentro da tradição teológica que vem sendo desenvolvida na América Latina e mundo inteiro nos últimos 40 anos, conhecida como Teologia da Libertação (TdL). O que pode ser novo é o modo de tratar certas questões (fé-política, dimensão social da fé), a abordagem de problemas mais recentes (globalização, meio ambiente, povo da rua) e o próprio fato de se continuar fazendo TdL frente à insistência dos profetas de calamidade, comprometidos com os impérios de ontem e de hoje, em "anunciar” o fim ou a morte de uma teologia comprometida com os pobres e oprimidos deste mundo.
ADITAL - Na introdução do seu novo livro você afirma que a Teologia da Libertação e as que dela derivaram, são sociais, sendo o ser humano um ser social (seu saber é social, seu trabalho, etc.). Esta é uma característica específica desta teologia?
Francisco de Aquino Junior - Toda teologia é social: queira ou não queira, tenha ou não tenha consciência disso. Ela trata da história da salvação que tem uma dimensão social constitutiva; ela responde ou corresponde a determinados interesses sociais; ela está ligada a uma tradição eclesial que é uma força social; ela utiliza mediações teórico-conceituais socialmente produzidas e mediadas; e tem sempre um caráter conflitivo. O que acontece é que nem sempre ou quase nunca (por ingenuidade ou por má fé) os/as teólogos/as assumem explicitamente o caráter social de suas teologias nem muito menos se perguntam a quem servem/interessam essas teologias ou quem se dá bem com elas. A TdL é uma das poucas teologias que desde o início assumiu explicitamente tanto seu caráter social, quanto o lugar social a partir de onde ela deve ser produzida e onde ela deve ser testada/provada: o mundo dos pobres e oprimidos. Dito isto, é preciso evitar um mal entendido acerca da TdL. O fato de ter uma dimensão ou um caráter social constitutivo, não significa que seja uma teologia das questões sociais, como defendia no passado e voltou a defender nos últimos tempos Clodovis Boff. A TdL não é simplesmente uma teologia do social. Ela trata de tudo, inclusive ou mesmo especialmente do social, a partir e na perspectiva do reinado de Deus, cujo critério e cuja medida são sempre as necessidades dos pobres e oprimidos deste mundo (Mt 25, 31-46; Lc 10,25-37). Na medida em que trata da história da salvação ou do reinado de Deus, trata de Jesus Cristo, trata do mistério de Deus, trata do ser humano, trata da Igreja, trata dos sacramentos etc., e trata também de questões mais direta e explicitamente sociais, como é o caso do livro que estamos comentando. Nesta perspectiva, falar de Deus é tão importante e tão teológico quanto falar dos processos de organização e estruturação coletivas da vida humana – sempre a partir e em vista do reinado de Deus. E não sejamos ingênuos. Não é que primeiro tenhamos que falar de "Deus em si” para depois falar da vida humana, pois todo discurso sobre Deus está mediado por uma experiência histórica concreta. No caso da tradição judaico-cristã, trata-se de uma experiência de libertação dos pobres e oprimidos que se constitui em critério do discurso sobre Deus, sobre a fé e sobre a vida em geral.
ADITAL - Entendemos que a teologia nasce dentro da fé que se pauta pela prática da vida de Jesus Cristo. Portanto uma única referência com práticas e teologias diferenciadas, a partir das culturas e das diferentes situações sociais?
Francisco de Aquino Junior - O que está em jogo na fé e na teologia cristãs é sempre a realização histórica do reinado de Deus, como afirmamos há pouco. E o reinado de Deus diz respeito não somente a Deus, mas a seu reinado sobre a vida humana e mesmo sobre a totalidade da criação. Neste sentido, a teologia deve tratar de todas as questões e de todas as dimensões da vida humana, sempre a partir dos pobres e oprimidos e sempre na perspectiva de sua libertação. Esse "a partir de” e "na perspectiva de” é o que permite falar de TdL no singular. Mas na medida em que trata de questões ou dimensões específicas, constitui-se como uma realidade plural. E isso é o que justifica falar de teologias da libertação no plural: feminista, negra, indígena, ecológica, macro-ecumênica etc. Em síntese, a teologia é plural, na medida em que trata de temas, questões, dimensões e perspectivas distintas e o faz com distintas mediações prático-teóricas. É singular, na medida em que, tomando como critério a experiência bíblica de Deus, trata tudo isso a partir e na perspectiva dos pobres e oprimidos.
ADITAL - Até hoje, para muitos cristãos, o modelo da igreja ocidental era único e hegemônico, mas existem modelos diferentes e até conflitantes de igreja. Esses modelos são igualmente legítimos?
Francisco de Aquino Junior - Embora não exista acima nem independentemente das culturas, a Igreja não pode se identificar sem mais com nenhuma cultura. Deve encarnar-se nas mais diferentes culturas, sem perder a profecia nestas mesmas culturas. Mas isso é algo extremamente complexo e conflitivo, como se pode constatar no nascimento da Igreja "fora” do mundo judaico (Gl 2; At 15), na vivência da fé e em sua formulação teórica no mundo greco-helenista nos primeiros séculos, na ação missionária da Igreja ao longo de sua história e na chamada "mudança de época” que caracteriza o momento presente. A tentação constante é absolutizar uma determinada configuração histórica da Igreja, o que normalmente vem junto da defesa (nem sempre explícita) de determinados privilégios e interesses. Creio que aqui é muito importante ter presente que nenhuma cultura nem nenhuma configuração histórica da Igreja é absoluta, por mais valiosa/evangélica que seja e que o caráter missionário da Igreja exige que ela esteja aberta a todas as culturas, que possa adquirir diferentes configurações. E o critério evangélico de discernimento das diferentes culturas, das diferentes configurações da Igreja e da legitimidade dessas diferentes configurações está dado na única exigência que o chamado Concílio de Jerusalém fez às igrejas nascentes no mundo "pagão”: "somente pediram que nos lembrássemos dos pobres, questão que me esforcei por cumprir” (Gl 2,10).
ADITAL - No nosso continente vários países já realizam mudanças radicais na política, na economia, etc. Na hierarquia eclesiástica, porém, não há abertura para realizar as profundas mudanças que vários setores da igreja estão reivindicando com sempre mais força. E aí? É melhor trabalhar para o Reino de Deus e ignorar as igrejas?
Francisco de Aquino Junior - A questão é bem mais complexa...Em primeiro lugar, creio que é importante recordar com o Vaticano II que a Igreja é o povo de Deus, com seus carismas e ministérios. Ela não pode ser identificada sem mais com os que assumem o ministério de presidência da comunidade, seja oficialmente (bispos, presbíteros), seja na prática (lideranças comunitárias, agentes de pastoral). Neste sentido, ignorar a Igreja seria ignorar a presença e ação dos cristãos no mundo, seu compromisso com a realização histórica do reinado de Deus. Em segundo lugar, é preciso reconhecer os ventos contrários ao espírito do Concílio, as tentativas de frear e mesmo barrar o processo de renovação conciliar, a "volta à grande disciplina”, o eclesiocentrismo etc., que foi se impondo na Igreja, sobretudo a partir de João Paulo II e da geração de bispos por ele nomeada. Há quem diga que quase exterminaram a raça dos profetas no meio episcopal... Em terceiro lugar, não podemos negar nem menosprezar as grandes mudanças que se deram na Igreja, particularmente na América Latina, nas últimas décadas. Seja no que diz respeito à identidade eclesial (missão como compromisso batismal e não como encargo da hierarquia), seja no que diz respeito à democratização eclesial (não apenas bispos e padres, mas também comunidades, pastorais e movimentos falam como Igreja e em nome da igreja), seja no que diz respeito àquilo que constitui o centro da vida e da missão cristã (realização histórica do reinado de Deus). E não obstante todos os limites destes avanços e todos os conflitos que eles implicaram e acarretaram. Em quarto lugar, não podemos ser tão otimistas/ingênuos com relação às mudanças econômicas e políticas que vêm ocorrendo em alguns países da AL nos últimos anos. É que elas que não são tão radicais como afirmam seus promotores e propagadores. Embora tenha havido um crescimento significativo das políticas sociais em alguns países e isso tenha ajudado a reduzir o índice de pobreza absoluta, quase não alterou a estrutura econômica neoliberal em curso. É o caso, sobretudo, do Brasil, onde, como indica Marcio Pochmann, a diminuição da "pobreza absoluta” (de 71,5% em 1978 para 31,4% em 2008) foi acompanhada de um crescimento da "pobreza relativa” (de 23,7% em 1978 para 45,2% em 2008): "a tendência positiva de redução da pobreza absoluta parece implicar na migração para a pobreza relativa”, afirma. Tudo isso para dizer que o fundamental da vida cristã é o compromisso com a realização histórica do reinado de Deus na sociedade, em geral, e na igreja, em particular. E que tanto na sociedade como na Igreja há sinais de sua presença e há forças contrárias a seu dinamismo. O grande desafio para nós é identificar esses sinais e potencializá-los e combater essas forças contrárias. Sem esquecer que o fazemos como Igreja de Jesus Cristo... Muitas vezes, apesar da Igreja...
ADITAL - O Fórum Social Mundial como o fogo do Pentecostes se multiplicou em milhares de chamas: fórum da saúde, educação, ecologia, teologia, de parlamentares, etc. Em cada fórum há centenas de padres, bispos, religiosos/as, cristãos militantes e oficinas de trabalhos realizados por pastorais. Esta seria a prática de Jesus para ‘ser sal e luz do mundo'?
Francisco de Aquino Junior - Com certeza! Onde quer que se defenda a vida, que se lute pela justiça, que se esforce e se empenhe na construção de um mundo mais justo e fraterno ai está o Espírito do Deus de Jesus e aí tem que estar aqueles/as que se deixam conduzir por este mesmo Espírito. Pouco importa a confissão religiosa. Nem todo aquele que diz Senhor, Senhor toma parte no reinado de Deus, mas aqueles que fazem sua vontade... Isso não nega a importância e mesmo a necessidade da Igreja, mas simplesmente põe no centro aquilo que é central: a realização do reinado de Deus, cuja característica e cuja medida mais importante é a justiça aos pobres e oprimidos deste mundo. Neste sentido, bem diz o profeta Pedro Casaldáliga, "tudo é relativo, menos Deus e a fome”...
Fonte: Adital
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