sábado, 16 de abril de 2011

A Teologia da Libertação e a crise da nossa época

A Teologia da Libertação (=TdL) estaria em crise? Pelo que parece, sim. Os sinais são bastante claros: a TdL tem menos visibilidade, não faz mais notícia, publica menos e vende menos. E é menos tema de conversa. Para alguns não é mais assunto in mais sim out. Aliás, pergunta-se por todo o lado o que houve com ela: se hibernou ou se de fato não morreu.

Sem dúvida, há certo recuo de interesse por sua temática: compromisso social, opção pelos pobres, comunidades de base (=CEBs), mudança do sistema, injustiça estrutural e por aí afora. São questões que não têm a audiência de antes. Não dispõem do crédito anterior.

Os próprios militantes de frente na igreja mostram menos convicção e entusiasmo naquilo que pensam e fazem. Sem falar dos que desanimaram da luta e da "caminhada".

É o que parece. Não se deve porém tomar as correntes de um tempo por critério de valor e menos ainda por coisa definitiva. Isso vale, sobretudo, para as correntes da mídia, do mercado e da política. Muitas vezes se trata de movimentos que agitam a superfície da história, simples conjuntas, quando não meros modismos, e não correntes profundas.

TdL: o "espírito da coisa"

Aqui, precisamos ser claros. Que seja dito logo de entrada: a TdL não é um processo assim tão orgânico que possa ser colocado em crise de um momento para outro. Certo, a crise atual pode ser profunda, mas mais profundo é o fundamento da TdL.

Antes de refletir analiticamente como a TdL enfrenta a crise do momento atual, importa dizer como os teólogos a vivem. Pois, mais que ficar esmiuçando as razões da TdL, é preciso ver sua razão de fundo.
Nesse sentido, digamos de imediato que a TdL, mais que ser uma teoria é um "modo de teologizar". Antes de ser um método específico, é uma sensibilidade. Tonrou-se um hábito. É o jeito habitual de se fazer teologia na América Latina.

E isso não é o fato de um ou dois teólogos, ou mesmo de um grupo apenas. A TdL é coisa de toda uma corrente, para não dizer - como se verá logo - de toda a igreja. Por seu significado amplo, é um processo que tem tudo para ser qualificado de "histórico". E quando se diz TdL não se diz só teologia, diz-se catequese, liturgia, espiritualidade, vida consagrada, pastoral. Em suma, TdL é Igreja e é Povo - um tipo de ser igreja e uma forma de ser povo.

Como estilo próprio de fazer teologia, a TdL aborda qualquer problema que aparece pela frente numa determinada maneira, isto é, pensando em termos de povo, comunidade, participação, compromisso, transformação social. Quem acha que ela só pensa em política não captou o "espírito da coisa". Pois se pegar a TdL pelo seu lado certo, isto é, em sua fonte, o processo vivo, e não apenas em seus discursos, vai logo perceber que essa teologia pensa toda problemática do povo: a política e tudo o mais; tudo, mais a política.

Que aí entra a política e não certamente a conta-gotas, só pode ficar admirado quem não sabe como vive o povo e o quanto ele é vítima de um modo errado de organizar a sociedade. Mas não julgue que por isso o povo vai deixar de ser mais religioso, porque a síntese viva aqui desafia a análise abstrata.

Pois bem, quem tem experiência de povo e sabe o que o povo vive e sofre não tem outra alternativa teológica. É possível fazer responsavelmente outra teologia neste continente? A menos de fechar os olhos à realidade e fazer teologia para minorias. Mas teríamos outra coisa aqui que uma "teologia decondomínio"?

É, portanto, esta atitude de fundo, feita mais de espírito que de método, mais de vida que de teria, que "faz a diferença" entre a TdL e qualquer outra. por isso, esse jeito de fazer teologia está por demais arraigado, "naturalizado", para se considerar assim tão facilmente superado. E tem custado um preço por demais alto para ser assim tão rapidamente abandonado.

E ainda que o fosse, vá que os teólogos da libertação "tirem o time do campo", fica sempre a realidade nua e crua do povo gritando por uma TdL qualquer. Porque, enfim, teologizar essa realidade é preciso! A TdL é a teologia "necessária". Não há como escapar.

Mas, e a falência do socialismo real? E o ascenso do neoliberalismo? E o domínio da modernidade tecnológica? E o controle do Vaticano? A primeira reação é dizer: Danem-se! A realidade grita mais alto. A TdL é uma teologia imperativa. É o que tem que ser. E "o que tem que ser, tem força". Ou se imaginou que a TdL era só de brincadeira? Que não era para valer?

E partindo deste espírito que a TdL ataca todo o feixe dos problemas que estão hoje emergindo. Ela não tem uma agenda fechada. Pois se define como um modo de ver as coisas e não tanto por essa ou aquela temática.

Ora, a partir de suas bases, a TdL está se reformulando, ampliando dialeticamente suas grandes intuições, especialmente a dupla referência aos pobres e ao evangelho, e incorporando novas questões. Eis algumas tarefas que está levando em frente:

No nível metodológico , vai assumindo uma Mediação Sócio-Analítica mais plural, mesmo se o marxismo permanece como referência importante.

No nível eclesiológico, trabalha, em articulação com a problemática das Comunidades Eclesiais de Base e o "novo modo de ser igreja", questões como: religião popular, papel social e religioso das massas, realidade urbana, inculturação da fé, importância da mídia, lugar das novas classes médias, discernimento dos novos movimentos religiosos.

No nível político, revaloriza em novos termos a relação direta e imediata com os "excluídos" (caridade, assitência); dá lugar às alianças estratégicas com esquerdas e aos acordos táticos com direitas.

No nível da espiritualidade , passa a redescobrir a gratuidade da contemplação, pondo decididamente a "mística de Deus", como ponto de partida, polo dialético e centro para a "mística da luta".

Falando sem rodeios, a TdL é uma "teologia de coisas" e não apenas de idéias: ela faz da realidade vivida pelo Povo seu tema de reflexão.

Ora, uma vez que se captou qual é o "espírito" que anima, sustenta e garante TdL, pode-se examinar agora pacata e objetivamente como ela reage à crise que envolve tudo e todos.

Crise nas mediações, não nas raízes

Na análise da TdL e a crise, nossa posição é esta: se a crise toca essa teologia é no nível das mediações, não no nível das raízes. Expliquemos.
Quais são as raízes da TdL? Em síntese: a experiência de Deus no pobre. Analiticamente: sustentada inspiração evangélica e compromisso com o abandonado da sociedade. Ora, a crise atual não abalou estas duas convicções de fundo. E a TdL nasceu precisamente do encontro fé e opressão.

As questões históricas que levantou não foram de modo algum solucionadas. Longe disso. Antes, se transformaram e se agravaram: a miséria cresceu e tomou a forma de exclusão em massa. E com exclusão, a dialética senhor-escravo passou em segundo plano em favor de outra: a dialética integrado (embora dependente) e excluído. A perspectiva da igualdade está novamente distante e sua visibilidade histórica mais problemática. Portanto, a TdL, mais que há dez ou vinte anos atrás, continua "oportuna, útil e necessária", afirmava João Paulo II, aos bispos do Brasil (abril 1984).

Seja como for, a realidade do sofrimento social e da desigualdade assim como o desejo de mudar a sociedade e a vida são fenômenos estruturais. Continuam socialmente presentes e, embora reprimidos, pulsam com toda a sua incontestável urgência histórica. A crise atual não os resolveu, só mudou-lhes, para pior, o aspecto.

Certamente, as questões da fé e do pobre são objetivamente atingidas pela crise e necessitam de aprofundamento e de um novo equacionamento. Mas ao nível subjetivo , aquelas duas convicções continuam sendo, aos olhos dos teólogos da libertação, os pilares incontestes de seu discurso.

De resto, falando em geral, pode-se sustentar que, entre todos os grupos atingidos pela gigantesca crise cultural que estamos vivendo, os militantes de igreja não se encontram em condições mais desavantajosas que os outros. Não se sentem em absoluto desarvorados. Ao contrário, dispõem de recursos que nem toda a esquerda tem: uma sólida referência religiosa e uma sustentada vinculação com os pobres, sem falar no apoio em uma instituição - a igreja - que possui lá sua vitalidade e crédito sociais.

Quanto às mediações concretas da TdL, ou seja, às formas específicas que podem assumir a dupla referência acima (a fé evangélica e solidariedade com o oprimido), aí sim há muito que rever e muito que mudar.
Efetivamente, a crise atual trouxe para a TdL a necessária relativização de muitos pontos de vista. Ela purificou-a de alguns equívocos. Constitui, assim, para ela um exercício de despojamento.

Ao nível de suas mediações, muitas certezas falsas foram para o chão. Essas certezas se situavam a um tríplice nível: (1) certezas de análise sobre o que era o sistema social (capitalista); (2) certezas sobre o projeto histórico de sociedade, de como devia ser o sistema (socialista) alternativo; (3) certezas sobre as estratégias corretas (de classe e revolucionárias) para se chegar a encarnar a utopia.

A TdL tornou-se mais humildade e transigente. Passa a perceber a realidade de modo mais vário e complexo. Faz-se sensível à parte de verdade que está nas outras propostas, tidas outrora com pouco sem-cerimônia como "alienadas" ou coisa "fora da linha certa".

Por outro lado, a crise não deixou de fortalecer a TdL em suas raízes. Essencializou-a seus príncípios básicos. Operou nela uma concentração em torno de suas convicções de fundo: a fé bíblica e a opção pelos pobres. Disso, em verdade, não há como arredar pé. Antes pelo contrário: é só firmando-se aí que a TdL tem condições de enfrentar a crise e propor saídas criativas.

Agora, se examinarmos porque a TdL hoje adota um "perfil baixo", podemos identificar três circunstâncias responsáveis, de peso e de valor desiguais: (1) a incorporação da temática da TdL pela Igreja Institucional em seu discurso oficial, (2) a dominância da ideologia neoliberal no atual debate social; (3) o deslocamento da relevância social para a questão do "sagrado".


1 - TdL: uma "teologia difusa"

Umas das razões por que se fala menos da TdL é que, em boa parte, esta teologia já foi incorporada pela Igreja Institucional. Isso é bom. E, no fim das contas, um ganho. Fala-se menos e faz-se mais TdL.
Há quem se tenha surpreendido (L. Sartori) com a rapidez com que Roma assumiu o melhor desta teologia. Bastaram quinze anos: da publicação do livro "Teologia da Libertação " de Gutiérrez em 1971 à instrução romana " Libertatis Conscientiae" em 1986. Ou se pensa que Roma se move por bagatelas?
Efetivamente, as bandeiras principais da TdL, que são, a nosso ver, a opção pelos pobres, dimensão sócio-libertadora da fé e a constituição de comunidades populares (CEBs), não são mais só dela. Pertencem à igreja como um todo. Assim também, as idéias de "pecado social", de "conscientização", de "missão profética", de "transformação das estruturas" e outras mais já circulam com mais naturalidade dentro da área eclesial. Nesse sentido, a TdL enriqueceu realmente a consciência social da Grande Igreja.

Circula no grande público uma visão equivocada segundo a qual a TdL teria sido "condenada" pelo Vaticano. A verdade é o contrário: como proposta teológica nova, ela foi substancialmente legitimada. Sim, foram-lhe feitas duas reservas sérias: o uso perigoso do marxismo e o risco da redução da fé à política. Mas a mídia insistiu tanto nessas reservas que o público acabou vendo a TdL reduzida a isso e portanto colocada globalmente sob suspeita. Contudo, falando jornalisticamente, o Vaticano aprovou a TdL: se não deu nota 10, ao menos nota 7.

A verdade é que existe hoje uma TdL em estado difuso no corpo de toda a Igreja. É como um cubo de açucar que se diluiu no café. Como corrente específica, não se recorta mais, no panorama eclesial, com os contornos claros de antes. Os teológos da libertação não fazem mais a figura de "blocos" de antes. Tome-se a associação dos teológos brasileiros, a SOTER. É difícil dizer quem é e quem não é aí dentro "teólogo da libertação". E, no entanto, o fermento "libertacionista" vigora com força nessa organização.

Esse fato possui um lado inegavelmente positivo. Pois não era esse mesmo o destino da TdL, destino esse inscrito em sua própria origem? Não queria representar toda a mensagem da fé, ainda que numa perspectiva particular, como aliás, acontece com toda teologia? Não entendia ser uma teologia "substancial", sem acréscimo? A TdL não pode ser uma teologia à parte ou de parte. Se assim apareceu num primeiro momento, foi para fermentar toda a teologia e toda a igreja e em seguida poder retirar-se.

Poder-se-ia objetar que a relativa "recuperação" do discurso libertador pela oficialidade representa uma "vitória de Jonas": a TdL teria sido engolida pela instituição. Mas, como observou com perspicácia o demitido vice-diretor do "Osservatore Romano", Virgilio Levi, talvez tenha sido justamente assim que ela foi salva da marginalização e até do esmagamento de que estava ameaçada pelas forças mais reacionárias da Igreja e da Sociedade.

Certo, se por um lado as grandes intuições da TdL tiveram relativa "recepção" no seio da grande Igreja, é preciso também dar-se conta de que elas não mantém aí o mesmo vigor profético e evangélico das origens. Seu mordente acha-se aí naturalmente enfraquecido e relativizado.

Pois a assimilação de um discurso "profético" ou "revolucionário" por uma instituição qualquer (religião ou partido) não leva necessariamente a uma redução de seu vigor originário? Não é o preço a pagar para que esse discurso ganhe, via instituição, amplitude social e continuidade histórica?
No caso da instituição católica deve-se levar em conta ainda um agravante: sua conjuntura interna inegavelmente restauradora. Basta lembrar o que foi Santo Domingo, o Sínodo Africano, qual é o perfil dos bispos nomeadosdurante este pontificado e toda a série de documentos "normatizadores" recentemente publicados pelo vaticano.

Todavia, apesar de sua centralização, não falta à igreja, para fora, certa capacidade de intervenção crítica. E só lembrar o papel exercido pela Igreja (leia papado) na derrubada das ditaduras no Sul e dos regimes totalitários do Leste. Mais: em várias igrejas locais e mesmo regionais, as propostas de uma teologia libertadora foram assimiladas de modo ainda mais extenso e profundo, como, por exemplo, no Brasil.
Pois bem, na medida em que a dimensão sócio-libertadora da fé se torna nas igrejas o "discurso normal", a TdL de certo modo recua para o fundo. É o precursor frente ao Messias, afirmando: "Importa que ele cresca e que eu diminua".

Mas ter-se-ia deste modo esgotado a força da TdL? Teria ela preenchido sua função histórica? De modo algum. A assimilação do discurso do compromisso social pelas comunidades cristãs tem pela frente ainda um longo caminho. Por isso, a TdL mantém sua vigência, inclusive como movimento específico na Igreja. Todavia, a questão não é tanto salvar a TdL como discurso específico, mas aquilo para o qual ela aponta e que concerne toda a Igreja: o compromisso político da fé, a causa do oprimido e a constituição de uma igreja de participação e engajamento.

Efetivamente, a TdL se situa no seio da eclesialidade. E aí dentro ela faz o papel de uma "corrente de opinião", que busca sensibilizar o conjunto da igreja para a questão específica da justiça social do ponto de vista dos pobres. Se neste sentido ela ainda aparece como uma teologia "de parte" (não à parte) é precisamente in partibus pauperum. Nada há aqui de sectarismo, porque a parte que ela defende vem sempre situada dentro do todo e em função do todo; e também porque essa "parte" é, do ponto de vista social, a maior e a "preferida" do ponto de vista teológico.

Mas, como dissemos, essa "parcialidade" da TdL é hoje menos aparente, porque boa parte da TdL já está integrada, como devido, no todo do discurso institucional.

Contudo, em relação à Igreja institucional, fica para a TdL um problema imenso: é "novo modo de ser igreja", um "novo modo" não apenas como simples inspiração e realização setorial, mas enquanto feito nova institucionalidade através de estruturas de efetiva "comunhão e participação", coisa que alguns preferem chamar "democracia eclesial".

A TdL tem aí um dos seus imensos desafios históricos. Desafio esse ligado à sua dupla referência fundante, pois as perguntas que estão por trás são: Que tipo de igreja responde concretamente ao projeto de Jesus? E que tipo de igreja serve efetivamente aos pobres?

Não vai longe, em seu testemunho público, um Cristianismo que deixa intocado o atual sistema autoritário de igreja, como não vai longe em sua eficácia histórica, uma opção pelos pobres levada em frente por uma instituição paternalista.

Sem dúvida, as CEBs são, nos fatos, "células eclesiais iniciais", como queria Medellín. Mas quantos anos ou "semanas de anos" são ainda precisos para que toda a Igreja institucional se deixe fermentar pelo que elas representam?

2 - A gritaria neoliberal

Que o neoliberalismo avance e os movimentos de mudanças recuem, isso constitui na verdade o efeito duplo da mesma dialética histórica.

Como são ainda audíveis as vozes e clamores dos excluídos nessa verdadeira "gritaria de mercado" em que se reduziu o discurso do mercado? Os assuntos in hoje são: tecnologia, modernização, planetarização, inserção no mercado mundial, desregulamentação, privatização, ajustes estruturais, volatilização do capital, competitividade, flexibilidade do mercado e assim por diante.

Até há poucos anos podia-se dizer que, em geral, o discurso "de esquerda", para usar uma distinção de Gramsci, se não era o discurso dominante, era pelos menos o discurso hegemônico. Era o discurso mais dinâmico e criativo no campo cultural. Era por isso também o discurso mais temido no mundo político e mais respeitado na área acadêmica.

No que toca à TdL podia-se dizer que na Igreja da América Latina como um todo, era a teologia "hegemônica": ela dava a direção moral e intelectual à caminhada pastoral das igrejas. Ela estabelecia a agenda do debate eclesial, como se viu deste Medellín (1968), passando por Puebla (1979) até os meados dos anos 80. Desde então, em virtude da conjugação de fatores sociais (crise do "socialismo real") e de fatores eclesiais, ("restauração católica"), começou a perder terreno, até se encontrar no ponto que hoje se encontra e que estamos por ora analisando.

O certo é que a crise que afeta a TdL não é exclusiva dela. É antes uma crise que envolve todas as forças de esquerda (sindicais, partidárias, populares, etc.) no mundo moderno depois da "queda do muro de Berlim" (1989).

Esclarecemos que por "forças de esquerda" entendemos aqui as que se distinguem: (1) por buscarem antes de tudo a superação da miséria das grandes massas (questão da igualdade social ); e (2) por acreditarem na possibilidade de um projeto alternativo ao atual sistema capitalista (questão do socialismo). A quesão da revolução como estratégia, entendida em termos de ruptura pontual, e a questão do internacionalismo não parecem constituir características próprias da "esquerda moderna".

Não que a "esquerda" esteja estagnada ou indo para trás. Não. Ela segue em frente. Mas avança mais devagar que no passado recente.

Expliquemos. Que a "esquerda", pelo menos no Brasil, continue a tocar em frente, basta ver, por exemplo, o avanço parlamentar do PT, algumas lutas sindicais bem sucedidas, os novos movimentos populares, sem falar na máscara social-democrata que a direita viu-se obrigada a envergar, na pessoa do novo presidente Fernando Henrique Cardoso, para se fazer creditar junto ao eleitorado. Por outro lado, é também verdade: a "esquerda" anda mais devagar que nos anos recentes. Dito numa palavra: desacelerou.

Algo disso vale também para os teólogos da libertação. Continuam dando suas aulas na perspectiva global da transformação social; seguem pesquisando, abrindo novas frentes de discussão, sempre dentro da "ótica da libertação": a inculturação, a espiritualidade, a feminino, a modernidade a partir das vítimas, a ecologia, etc.; continuam escrevendo, publicando. Mas não há dúvida: se o fogo não apagou, o gás certamente baixou. Também, com a investida maciça e sem freios do neoliberalismo e açambarcante refluxo católico, pode-se esperar mais?

Todavia, como aventam alguns, o neoliberalismo não perde por esperar. Pois não é uma fatalidade que continue a dominar, triunfante, de modo indefinido. É, ao contrário, muito provável que contra ele se prepare uma reação .vigorosa e ainda mais profunda e plural que no passado, reação no seio da qual o Cristianismo há de ter um papel não desprezível. E nesse frente cabe à TdL tomar o lugar que lhe compete.

3 - A relevância epocal da questão do "misticismo"

Por fim, a crise desse final de milênio toca a TdL não só, como vimos, pelo fato de ser "de libertação", mas também e, talvez mais ainda, pelo fato de ser em sua base "teologia". Como assim?
É que a crise epocal não se dá apenas ao nível do compromisso sócio-político. Não é apenas crise de sociedade. É crise de civilização: crise de valores e de sentido. Entre as necessidades que "doem" hoje na alma dos "modernos" não se contam apenas as necessidades materiais, mas também as "não-materiais": carência de perspectiva, de idealidade e de esperança. Para que serve uma "vida" sem vitalidade? Poucos como Saint-Exupéry exprimiram de modo mais enfático a necessidade que devora o nosso tempo de dar um "sentido à vida".

Que significa isso para a TdL? Significa que não é apenas a fé libertadora, mas a fé como tal , como fonte de sentido, que há de ser retomada e consolidada. Aos olhos da fé cristã, que a "memória dos pobres" se perca é dramático, mas sempre resta uma esperança, ainda que extrema - a escatológica; mas que a "memória do divino" desapareça é muito pior: é trágico. Aí a história toda se torna, no final de contas, opaca, aporética, absurda. E então, como viu muito bem Nietzsche, se profila no horizonte o abismo sinistro do nihilismo. Se não se responde à pergunta "para que, finalmente?", a própria luta histórica por uma sociedade melhor é posta em causa e, faltando-lhe a esperança, perde sua força propulsiva.

A teologia tem pela frente não só a questão da miséria material, mas também a da miséria existencial e espiritual do mundo moderno. Ela não é só chamada a ser profética, mas também kerigmática. As demandas que lhe são dirigidas não são apenas por pão, mas também por sentido. A isso a Bíblia chama antonomasticamente "Palavra" e diz que disso também vivem os humanos!
Isso significa que a teologia é chamada não só a ser libertadora, mas também a afirmar sua específica teologicidade. São suas bases que devem ser renovadas e de novo garantidas.

A primeira TdL (dos anos 70), aquela dos "Pais fundadores", possuía os princípios primeiros (as verdades da fé) como pontos de partida. Ela arrancava da fé cristã do "povo" como de pressupostos assegurados. Mas pelos meados de 80, esses pressupostos evidenciavam uma perda crescente de sua "plausibilidade" social. Já nos anos 90, mostravam claramente a necessidade pastoral de serem revistos, pastoralmente repostos e teologicamente refundados.

Como testemunhas da época, observem-se os jovens dos anos 90, como são e que pensam: neles a tradição da fé já não funciona por vias da tradição cultural. O mundo moderno não lhes aparece apenas injusto, mas também sem-sentido. Em nome de que mudar as estruturas, se a vida mesma não vale a pena? Não suceda que enquanto os teólogos continuam indo para o social, boa parte dos jovens esteja voltando, em busca de "outra coisa", de "algo a mais". O que é finalmente relevante hoje? Não se dá atualmente um deslocamento das relevâncias?

Certamente, a fé cristã nunca foi totalmente funcional a qualquer cultura ou sociedade. A fé é essencialmente crítica já ao nível antropológico-existencial, justamente porque ela põe em crise o destino do humano, confrontando-o com o Mistério transcendente. Por isso será, em princípio, disfuncional ao sistema do mundo. Mas na sociedade moderna, secularizada e pluralista, a criticidade intrínseca da fé se duplica em criticidade histórica e cultural.

O que há é um deslocamento da problemática histórica. O acento passa da libertação social para a do sentido espiritual da vida, de tal modo que esta se torna uma questão vital e prioritária. E isso não apenas para os "indivíduos", mas para amplos setores da sociedade, mesmo se não é propriamente problema social (para retomar uma distinção clássica).

Poder-se-ia pensar que a aguda "situação espiritual" do mundo moderno não passa de uma "onda" do momento, a qual deverá refluir dentro de poucos anos, talvez depois que o novo milênio se normalizar. Mas é difícil que a coisa vá por ai, pois o fenômeno é por demais vasto e agudo para constituir mera conjuntura passageira.

A problemática moderna (ou pós-moderna?) da "busca de sentido", da "sede de sagrado", da "fome de transcendência" ou como se queira chamá-la, está recebendo os mais variados tipos de respostas. Da parte da Igreja católica, temos a "Nova Evangelização", lançada pelo pontificado atual e assumida também por Santo Domingo. Temos também os "Movimentos" de renovação católica. Fora do Catolicismo se conhecem outras respostas, como os "novos movimentos religiosos" (seja os grupos neo-gnósticos nos meios de classe média, como as chamadas "seitas" junto às classes populares), os movimentos fundamentalistas e outros.

Ora, a problemática do depauperamento espiritual, produzido pelo "desencantamento do mundo", via racionalidade técnico-científica, não foi advertida pela TdL com a velocidade e a acuidade com que o foi pela igreja institucional e pelos "movimentos" leigos.

Mas podia a TdL, a partir de sua ótica própria, ter percebido isso? Tinha ela olhos pra ver? E mesmo se a evangelização se impõe à responsabilidade missionária da Comunidade eclesial, podia ela entrar na agenda da TdL?

Como não? E isso pelo simples fato de que a TdL é e só pode ser teologia, e teologia integral. Nela a opressão/libertação nunca foi um sistema mas uma dimensão, ainda que a mais urgente. Ela sempre se articulou com a totalidade da fé em sua transcendência. Hoje, ela se dá melhor conta da distinção, teologicamente irrespondível, entre a "libertação soteriológica" e a "libertação ético-social" e do primado axiológico da primeira sobre a segunda.

A dimensão espiritual tem sem teologia uma primazia axiomática. É coisa que a TdL professou mas que nem sempre conseguiu transformar em efetiva regra de construção teórica. Sim, os princípios próprios da TdL como teologia específica são "princípios segundos". Repousam sobre os "princípios primeiros" de toda teologia. Ora, esses são os da fé originária (apostólica) e comum (católica).

Agora, se a dimensão "mística" da fé parece hoje tomar a dianteira sobre a dimensão "política", seria um engano só por isso considerar superada a TdL enquanto corrente específica. Ela conserva a impreterível tarefa de garantir estas duas coisas: que a fé cristã permaneça voltada, por exigência intrínseca, à "questão do pobre" e que a solidariedade com o pobre fique, na igreja, firmemente ancorada às bases de fé e, na sociedade, aberta à questão religiosa.

Nessa ótica, a questão da transformação social não perde relevo em proveito da preocupação "religiosa", como poderia parecer à primeira vista, mas antes é elevada à sua dimensão mais alta, que é também a dimensão originária e definitiva.

Por certo, as duas grandes questões evocadas, respectivamente ético-social e religioso-metafísica, estão de tal modo ligadas que uma não se resolve a contento sem a outra. A história recente é nisso instrutiva.

Mas, ficando dentro da perspectiva sociológica, não seria a "problemática do sentido" uma problemática típica das classes "privilegiadas" (Max Weber)? É verdade, mas é também verdade que não é exclusiva delas. E isso não só pela influência socializadora da mídia, instrumento privilegiado da mentalidade classe-média, mas por causa da cultura racionalizadora moderna que envolve a todos, ricos e pobres, e que suscita em todos a busca da "outra dimensão".

E nem falemos da dimensão filosófico-antropológica da questão. A menos que se creia que os pobres não sejam "gente". Não é também para serem reconhecidos como "gente", mesmo se é pelo viés da solução das "necessidades imediatas", que os excluídos frenqüentam as chamadas "seitas"? Ou se acredita que os pobres se fazem "crentes" apenas por efeito do abandono social, sem outros ideais mais elevados?

Mas, então, com a onda atual de misticismo fica superada a questão da justiça social? Como? Essa não é uma questão teórica que se possa eludir a bel prazer; é antes um problema prático que se impõe com a objetividade de uma montanha. É a montanha dos 80% do planeta - o Sul - que só dispõe dos 20% da renda mundial. Esta disparidade proíbe qualquer consciência tranqüila e qualquer ordem mundial segura. E não tem misticismo algum, ainda que ajudado pelo neoliberalismo, que consiga esconder esse escândalo que brada aos céus.

Frente ao mudado cenário tanto da fé quanto da política, é dever da TdL repor a relação fé-política em novos termos. Tudo indica que a fé, como sempre política, tenderá a sê-lo em menor medida, por entender enfatizar com maior vigor sua autonomia específica. Quanto à política, tenderá a ser mais vulnerável à penetração da religião, com o perigo de sua "colonização" sob a forma da integralismo político. Na verdade, hoje o indicador "política" baixa, enquanto que o da "fé" sobe.

Flexibilidade em ajustar-se à nova situação

Em relação aos novos desafios, os teólogos da libertação não pensam que se trate simplesmente de "pegar ou largar". Nada de endurecer-se nas velhas posições, nem de entrar na nova onda. O importante é sempre discernir. Para isso, ajuda a distinção prática, tomada de empréstimo aos pós-modernos (valha esse recurso), entre "pensamento forte" e "pensamento fraco".

Cumpre-nos manter uma "pensamento forte" frente às convicções de fundo, às intuições originais. Isso tudo é da ordem do irrenunciável porque se refere à própria identidade e, por isso, é também inegociável. É a parte relativa aos princípios específicos da TdL, mas também e, sobretudo, aos princípios gerais da fé, nos quais TdL está e só pode estar assentada.

É adotar um "pensamento fraco" no que concerne às questões secundárias e relativas, como as referentes às "mediações teóricas da TdL, tais as análises, estratégias e projetos concretos. É especialmente nesse campo que os teólogos da libertação estão prontos a incorporar elementos novos, sejam eles metodológicos, éticos ou espirituais; aprender das outras correntes, para além de todas as cercas de escola, confissão e partido.

O que importa hoje à TdL é ser pluralista, relativizante (não relativista) e aberta a toda forma de diálogo. Busca ganhar em tolerância, deixando de lado toda forma de intransigência, de espírito sectário e de purismo. Entende que é necessário ser capaz de negociar e aliar-se o quanto seja possível, seja que se trate de fazer a "análise" da sociedade, de organizar as "estratégias" ou de elaborar "projetos" específicos da sociedade.
Deste modo, o que ela quer é evitar as tentações extremas que a situação de crise provoca: o dogmatismo e o relativismo.

O perigo maior atualmente é o relativismo. Este segue a lei do "tudo vale". Mas então se passa facilmente ao "vale tudo". Nesse caso, Sartre tem razão: "Dirigir um império ou embebedar-se é a mesma coisa". Ora, frente ao relativismo rampante impõe-se não abandonar as convicções centrais de que acima se falou.

O relativismo moderno chama à baila a "filosofia" da moda: o pós-moderno. Esse se apresenta como o pensamento da diferença, do fragmento, do simulacro, do que não tem fundamento nem finalidade. Mas como deixar-se seduzir por um pensar que renunciou à busca da verdade e se crê incapaz de qualquer totalidade? Pois, quando o pensamento frente às "questões fortes" se faz "pensamento fraco", então já não merece outro nome que o de "pensamento covarde". Esta aí um claro sinal da decadência de uma cultura, de uma filosofia de baixo-império.

Mas é preciso também guardar-se do segundo perigo, o dogmatismo, ao qual nem sempre se tem resistido. Impossível tratar tudo na base do "pensamento forte". Isso leva ao integrismo, ao fundamentalismo e à alienação da história profunda. Fica-se, então, falando sozinho ou entre pares. É o enrijecimento mental, fruto do medo.


É, pois, nessa dialética entre um "núcleo" de algumas poucas convicções firmes e uma "margem" de muitas posições relativas que há de estar o segredo para se mover com sucesso dentro da atual crise de época. É a média áurea, que permite mudar, ficando-se, contudo, substancialmente fiel a si mesmo.

Frei Clodovis Boff, osm

Nenhum comentário: