sábado, 16 de abril de 2011

Duas utopias urgentes para o século XXI

Vivemos no olho de uma crise civilizacional de proporções planetárias. Toda crise oferece a chance de transformação, bem como o risco de um fracasso desolador. Na crise, medo e esperança mesclam-se. Para reforçar a esperança, nascem as utopias. Por sua natureza, as utopias nunca vão realizar-se totalmente. Mas elas nos mantêm no caminho. São como as estrelas. Nunca as alcançaremos. Mas elas encantam a noite e orientam os navegantes. Bem disse um poeta desta cidade de Porto Alegre, Mário Quintana:

Se as coisas são inatingíveis, ora!
Não é motivo para não querê-las.
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas.

No contexto da crise atual, vejo surgir duas utopias que são conaturais à teologia da libertação: utopia da salvaguarda da Casa Comum,o planeta Terra e a utopia da conservação da unidade da família humana. Consideremos a primeira.

A utopia da salvaguarda da Casa Comum

A teologia da libertação nasceu ouvindo o grito do oprimido. Seu mérito foi ter dado centralidade ao empobrecido, fazendo-o sujeito de sua história e o lugar a partir do qual se entende melhor a natureza de Deus como o Deus da vida, a missão de Jesus como promotor de vida em abundância e a natureza da Igreja como sacramento, vale dizer, instrumento e sinal de libertação integral.

Mas não só os pobres gritam. Gritam as águas, gritam as florestas, gritam os animais, gritam os ecosistemas, grita a Terra. Todos esses também são vítimas da mesma lógica que cria os empobrecidos. Por isso a Terra e a natureza são exploradas e devastadas. Na opção preferencial pelos pobres contra a pobreza e pela libertação -- marca registrada da teologia da libertação -- cabe o Grande Pobre que é a Terra, a única Casa Comum que temos para morar. Uma teologia da libertação somente será integral se incorporar, em sua reflexão e em sua prática, a libertação da Terra como sistema de sistemas, como superorganismo vivo da qual nós somos filhos e filhas junto com os demais organismos vivos, nossos irmãos e irmãs, também produzidos e alimentados pela Mãe Terra.

Assim como o encontro com o pobre permitiu uma experiência espiritual originária, base de uma prática e de uma reflexão libertadora, da mesma forma, agora, o encontro com a questão ecológica propicia uma nova experiência do Sagrado e do Spiritus Creator agindo em sua criação, animando práticas alternativas no relacinamento com a natureza e em nosso estilo de vida. Dessa experiência e dessa prática projeta-se a utopia de salvaguarda da Terra.

Essa utopia possui o caráter de urgência porque a nossa civilização construiu o princípio da autodestruição. Por vinte e cinco formas diferentes pode-se destruir o projeto planetário humano e ferir, profundamente, a biosfera. Já há quarenta mil anos, bem antes do neolítico (há dez mil anos), começou um assalto sistemático à biosfera, porque foram desenvolvidos instrumentos que tornaram bem sucedida a dominação da natureza. Em poucos milhares de anos, os caçadores extinguiram os mamutes, as preguiças-gigantes e outros mamíferos pré-históricos.

Nos dias atuais, tal processo se agravou assustadoramente. Existe uma taxa de extinção de fundo que é norma no processo de evolução, cerca de trezentas espécies por ano. Mas, hoje, uma espécie, a cada treze minutos, desaparece, definitivamente, devido à voracidade produtivista e consumista dos seres humanos. Esse cenário dramático fez o grande historidor Arnold Toynbee(†1975) escrever, em seu ensaio autobiográfico Experiências (1969):"Vivi para ver o fim da história tornar-se uma possibilidde intra-histórica capaz de ser realizada não por Deus mas pelo ser humano". Não outra coisa pensava o conhecido cosmólogo Carl Sagan, pouco antes de morrer em 1996: as forças diretivas da natureza e do universo já não garantem mais o futuro da Terra, que, agora, depende da vontade política dos seres humanos. Para sobreviver, devemos quere-lo coletivamente. Por fim, ninguém melhor expressou o atual drama que a Carta da Terra, aquele documento fruto da reflexão mundial em vista da salvaguarda do planeta e que a UNESCO assumiu para ser divulgado em todas as escolas:

Estamos diante de um momento critico da história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. A escolha é esta: ou formar uma aliança global para cuidar da Terra e cuidar uns dos outros ou arriscar a nossa destruição e a devastação da diversidade da vida.

Agora, podemos entender o bem fundado da utopia da salvaguarda da Terra. Desta vez não haverá uma Arca de Noé que salve alguns e deixe perecer os demais. Ou nos salvamos todos ou perecemos todos. Tal urgência funda uma nova centralidade. A questão não é mais saber que futuro possui a civilização da tecnociência hoje globalizada, ou que futuro possui o cristianismo ou a teologia da libertação. A questão é saber que futuro possuem a Terra e a humanidade e em que medida nossa a tecnociência, a Igreja e a teologia da libertação ajudam a assegurar um futuro de esperança para todos.

Para isso precisamos de um novo paradigma, que restabeleça uma aliança de paz duradoura com a Terra. Ele vem sob o nome de paradigma ecológico. Ecologia, aqui, não se resume a uma técnica de gerenciamento de recursos naturais escassos, mas implica um novo olhar para a natureza, a percepção de que não existe o meio ambiente (estamos cansados de meio ambiente, queremos o ambiente inteiro). O que realmente existe é a grande comunidade de vida, da qual nós somos um membro junto com outros, com a singularidade de sermos seres éticos e espirituais, com a missão de guardiães da criação, aqueles que cuidam de tudo o que existe e vive, porque tudo o que existe e vive merece existir e viver. Implica entender, como entendiam os povos originários e os cientistas de ponta hoje, que a Terra não é inerte, um baú de recursos ilimitados. A Terra é viva, equilibra todos os elementos físico-químico-ecológicos de forma tão sutil e integrada como somente um organismo vivo pode fazer. Por isso é chamada de superorganismo vivo, Gaia ou Pacha Mama. E o ser humano (homem e mulher) deriva de húmus (terra fecunda), como Adão provem de adamah, terra fértil. O ser humano, mais do que filho(a) da Terra, é a própria Terra, que, num momento de sua evolução, começou a sentir, a pensar, a amar, a cuidar e a venerar.

Não há, aqui, tempo para detalharmos os princípios que dão sustentabilidade à utopia Terra. A nossa cultura os enviou ao exílio, mas, hoje, eles estão voltando e construindo as bases da geossociedade. É o cuidado que é uma relação amorosa para com a realidade, cuidado que constitui a ética básica que preserva a vida e garante a convivência de todos com todos. É a dimensão da anima, do feminino no homem e na mulher, que nos faz sensíveis à totalidade, que nos abre para captar as mensagens que todas as realidades irradiam e que confere centralidade à vida e à cooperação, superando a competição e a visão meramente utalitarista da natureza. Por fim, a espiritualidade como aquele momento da consciência que se sente ligada e religada ao Todo e que vive de valores não-materiais, como a compaixão, o amor, a solidariedade e o diálogo com a Fonte originária de todo o ser. Esses princípios nos permitem, como diz o grande poeta português Fernando Pessoa, "imaginar a vida como ela nunca foi".

A utopia da salvaguarda da unidade da família humana

A segunda utopia consiste na salvaguarda da unidade da família humana. Há o risco real de que a família humana seja bifurcada entre aqueles que se beneficiam dos avanços tecnológicos e da biotecnologia e dispõem de todos os meios possíveis de vida e de bem-estar -- cerca de 1,6 bilhão de pessoas --, podendo prolongar a vida até os 130 anos, o que corresponde à idade das células, e a outra humanidade, os restantes 4,4 bilhões de seres humanos barbarizados, entregues à própria sorte, podendo viver, se tanto, até os 60-70 anos com as tecnologias convencionais, num quadro perverso de pobreza, miséria e exclusão social.

Esse fosso deriva do horror econômico que tomou a cena histórica sob a dominação do capital globalizado. Considerando-se triunfante diante do socialismo, cuja derrocada deu-se no final dos anos 1980, exacerbou seus princípios, como a competição,o individualismo, a privatização e a difamação de todo tipo de política e satanização do Estado, reduzido ao mínimo. Duzentas megacorporações, cujo poder econômico equivale a 182 paises, conduzem, junto com os organismos da ordem capitalista, como o Fundo Monetário Internacional - FMI, o Banco Mundial - BM e a Organização Mundial do Comércio - OMC, a economia mundial apenas sob o princípio da competição sem qualquer sentido de cooperação. No Brasil há oito milhões de famílias de credores do governo, dispondo de R$ 700 bilhões (o 1% de ricos que detém 42% da riqueza nacional). Em tal sistema, tudo é feito mercadoria -- do sexo à mística, da água a órgãos humanos --, numa volúptia de acumulação desenfreada de riquezas e serviços à custa da devastação da natureza e da precarização ilimitada dos postos de trabalho.

O risco consiste em que esses criem um mundo só para si, que rebaixem os direitos humanos a uma necessidade humana que deve ser atendida pelos mecanismos do mercado (portanto, só tem direitos quem paga e não quem é, simplesmente, pessoa humana), que façam dos diferentes desiguais e dos desiguais dissemelhantes, pessoas consideradas não-pertencentes à espécie humana.

No Ocidente -- que é quem domina no processo de globalização -- nunca triunfou, politicamente, a idéia de igualdade. Ela ficou limitada ao discurso religioso-cristão, de conteúdo utópico. Esse déficit de uma cultura igualitária suprime os entraves que impediriam a bifurcação da família humana. Pode triunfar uma idade das trevas mundial, que se abateria sobre toda a humanidade.

A utopia urgente é manter a unidade da família humana, habitando a mesma Casa Comum. Todos são Terra, filhos(as) da Terra, criados à imagem e semelhança do Criador, feitos irmãos de Jesus Cristo e templos do Espírito. Todos têm direito de ser incluidos nesta Casa Comum e de participar de seus dons.

Para dar corpo a esta utopia, precisamos resgatar os valores ligados à solidariedade e à compaixão. Importa recordar que foi a solidariedade/cooperação que permitiu a nossos ancestrais, há alguns milhões de anos, darem o salto da animalidade à humanidade. Ao sairem para coletar alimentos, não os comiam individualmente, como faziam os animais maiores. Antes, reuniam os frutos e a caça, levavam-os para o grupo de co-iguais e repartiam-os, fraternalmente, entre todos. Desse gesto primordial nasceu a socialidade, a linguagem e a singularidade humana. Será hoje, ainda, a solidariedade irrestrita, a partir de baixo, a compaixão que se sensibiliza diante do sofrimento do outro, que garantirão o caráter humano de nossa identidade e de nossas práticas. Foi o que, vergonhosamente, faltou aos grandes credores internacionais, que, diante da tragédia dos tsunamis do sudeste da Ásia, não perdoaram os US$ 26 bilhões de dívidas daqueles paises flagelados, apenas protelando, por um ano, o seu pagamento. Sem o gesto do bom samaritano que se verga sobre os caídos da estrada, ou a vontade de infinita compaixão do bodhisattwa que renuncia a penetrar no nirvana por amor à pessoa que sofre, ao animal quebrantado ou ao raminho machucado, dificilmente faremos frente à barbárie cotidiana que se está fazendo natural em âmbito mundial.

Termino este fragmento de reflexão. Na perspectiva dos astronautas, daqueles que tiveram o privilégio de ver a Terra de fora da Terra, Terra e humanidade formam uma unidade sem distinção, dinâmica, irradiante e aberta. Ambas estão, agora, ameaçadas. Ambas possuem um mesmo destino e comparecem, juntas, diante do futuro. Sua salvaguarda constitui o conteúdo maior de uma única grande utopia, a utopia do século XXI.

Se nossa teologia não ajudar a sonhar esse sonho e não levar as pessoas a vivê-lo, não teremos cumprido a missão que o Criador nos reservou no conjunto dos seres, que é a de sermos o anjo bom e não o Satã da Terra, nem teremos escutado e seguido aquele que disse: "Vim trazer vida e vida em abundância". Cresçamos, irmãos e irmãs, conscientes de nossa responsabilidade, sabendo que nenhuma preocupação é mais fundamental do que cuidar da única Casa Comum que temos, procurando fazer com que toda a família humana possa viver unida dentro dela com um mínimo de zelo, solidariedade, irmandade, compaixão e reverência, que produzem a discreta felicidade pelo curto tempo que nos é concedido passar por este pequeno planeta.

Leonardo Boff


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