OLHAR ARGUTO, INTELIGÊNCIA INCOMUM, CORTANTE IRONIA, VASTA ERUDIÇÃO. SENSIBILIDADE PASTORAL, AFEIÇÃO HUMANA DESINTERESSADA. Discurso monocórdico, mas proveniente de um cérebro que funcionava como uma usina de ideias. Riso raro num homem discreto e reflexivo. Teólogo da utopia de uma igreja despojada de riquezas materiais e de poder. Filósofo das realidades humanas mais vitais. Escritor de palavras fartas e substanciais.
Este era um belga que se fez brasileiro por opção pastoral, se fez nordestino por empatia com seu povo e sensibilidade ao seu modus vivendi e cultura. O digno Joseph se fez José, o bom. Na inestimável liberdade de pensar, fez da ideia de liberdade uma filosofia de vida. Da vida, um dom a serviço dos outros. Nos outros vislumbrou sua verdadeira face humana.
Tocou as mais profundas realidades do humano com inteligência e paixão. Este era Joseph Comblin, um excepcional José que pensou/sentiu Jesus entre os empobrecidos do terceiro mundo; melhor ainda, contemplou nos rostos dos que estavam “à margem da história” a figura do Nazareno carpinteiro, nascido na discriminada e pobre Galileia, berço de movimentos de rebeldia popular.
Um José ímpar na história do pensamento teológico latino-americano, que pensou/sonhou/teceu a utopia da libertação histórica sob inspiração do evangelho revolucionário do Galileu. Comblin, ainda na Europa, teve escolhas para o exercício do seu ministério sacerdotal: América Latina e África.
Decidiu-se pelo Brasil em 1958. Como poderia imaginar que esta opção, um tanto aleatória, iria traçar-lhe o destino de homem, sacerdote, teólogo e pensador humanista? Veio com uma missão institucional dada por Pio XII, que apelava por missionários voluntários em regiões carentes de sacerdotes. Nesta tarefa estava embutida uma outra: a investigação de (prováveis) movimentos tidos por comunistas em ação na região. Caberia aos missionários recrutados observar os movimentos populares de caráter esquerdista, dimensionando seu peso histórico e força política.
O jovem padre deparou-se com uma terra marcada pelo sangue derramado em lutas operárias, camponesas e estudantis contra a tirania dos senhores patronais, do latifúndio e da ordem burguesa. Constatou com assombro o império do capital a esmagar o homem e a dignidade da vida.
Deparou-se com um povo sofrido, historicamente espoliado, profundamente marcado por uma cultura religiosa herdada dos colonizadores, devocional e mística, mas capaz de plasmar, a partir de certas comunidades e movimentos coletivos, utopias e práticas de libertação sociopolítica. Emancipação do espírito feito carne no palco da história.
Comblin “converteu-se” à América Latina, seu povo, sua cultura e sua história de utopias libertárias. Como teórico que une dialeticamente pensamento e ação, fez-se teólogo político, guerrilheiro de ideias, semeador da boa nova do Jesus Cristo Libertador.
Nele, consciência pastoral e prática libertária foram elementos essenciais de uma vida devotada aos empobrecidos e esquecidos da história. Sabendo a teologia como a “inteligência da fé”, esteve presente nos momentos iniciais da construção do edifício teórico posteriormente denominado Teologia da Libertação. Nesta empreitada, Comblin cerrou fileiras com Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Jon Sobrino, Carlos Mesters, Enrique Dussel, Hugo Echegaray, Ivone Gebara, João Batista Libanio, Juan Luiz Segundo, Pablo Richard, Paul Gauthier, Luiz Alberto Gómes de Souza, Otto Maduro, François Houtart, dentre tantos outros.
Nos estados de Pernambuco, Paraíba e Bahia quis Comblin viver segundo sua inspiração inicial espelhada na concepção da Teologia da Enxada: assumir a fé como prática de vida solidária, efetiva e afetiva em meio aos menores dos irmãos na ordem do mundo. A figura do pastor, tal qual a parábola neotestamentária, assumia no seu pensamento e na sua prática materialidade existencial.
Sacerdote, celebrava a fé no meio dos deserdados da história; teólogo, articulava as razões da sua fé às tarefas históricas da libertação latino-americana; profeta, denunciava os males sociais, econômicos e políticos na ordem histórica burguesa capitalista e, a um só tempo, afirmava a utopia do reino a partir dos empobrecidos, sua crença, suas lutas e a inesgotável capacidade de gestar um mundo de rosto solidário e fraterno.
Foi profeta por excelência ao enfrentar com fibra a perseguição e o exílio impostos a si pelo regime militar brasileiro. Mas foi profeta também entre os muros da igreja ao criticar a estrutura monárquica e absolutista do Vaticano, o engessamento conservantista do pensamento institucional católico, ainda mais o seu erro histórico de nunca ter colocado o pobre como centro de sua ação pastoral.
NOTA AFETIVA - Aos 18 anos de idade, saído do sertão de Pernambuco, ingressei no Instituto de Teologia do Recife. Tive o privilégio de estudar com grandes mestres nos campos da sociologia, psicologia, filosofia, história e teologia. Na ocasião, conheci um homem pequeno e franzino, com óculos de espessas lentes, que adentrava a sala de aula com a leveza dos pássaros.
De voz fraca e pausada, sempre em pé e dispensando anotações na lousa, falava por horas a fio sobre as tramas da história, a exegese bíblica, a hermenêutica dos discursos e narrativas, os debates teológicos de maior relevância na América Latina, as questões humanas mais urgentes e vitais. Nessas ocasiões, o frágil pássaro voava como águia: coração leve, fértil imaginação, linguagem inventiva, sagacidade lógica, fina ironia, pensamento livre.
O pequenino homem se me afigurava, então, um gigante. Suas palavras iluminavam minha mente, aqueciam meu coração. Eram os anos 1980: neste espaço de tempo cabia toda a minha vida: desejos, ideias e sonhos. Comblin era parte disso, provavelmente a parte melhor. Deixou-nos em 27 de março de 2011. Sua memória há de permanecer viva. Ecce homo.
Eraldo Galindo Silva
teólogo e filósofo, ex-aluno de Joseph Comblin no Instituto de Teologia do Recife, professor universitário
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