Aos quase 80 anos de idade – a serem completados em fevereiro próximo – e 40 de moradia fixa em São Félix do Araguaia, extremo norte do Mato Grosso, dom Pedro Casaldáliga não está cansado nem pessimista, ainda que tenha o cuidado de mencionar na entrevista o mal de Parkinson que lhe traz limitações para se locomover e falar. Uma das figuras exponenciais da Teologia da Libertação, o agora bispo emérito de São Félix recorda, nesta entrevista, a sua chegada ao Brasil e também fala de suas lutas pela redistribuição da terra e as causas indígenas no Brasil.
A conversa, que aconteceu na casa de chão batido onde mora, na avenida que leva seu nome na pequena São Félix, Casaldáliga faz uma espécie de balanço das transformações sociais brasileiras, problemas gerados pela globalização, violência e ausência da reforma agrária. Também comenta o pontificado do atual papa, Joseph Ratzinger, que o questionou, em Roma, na década de 1980, por ter inserido novos elementos numa liturgia que optou pelos pobres...
Como foi a sua chegada ao país, há quase 40 anos?
Dom Pedro Casaldáliga – Havia 600 pessoas em São Félix naquela época. Era uma área nova, que tinha retirantes, imigrantes, em plena ditadura militar. O conflito do nosso trabalho se deu sempre envolvendo posseiros, peões, índios e os donos das fazendas. Sabíamos que a política oficial amparava o latifúndio, como agora o regime oficial ampara o agronegócio. Não havia preparo suficiente para saber o que íamos encontrar. Foi realizado um curso em Petrópolis para formar missionários do exterior. Eram quatro meses para saber a história do país, referências culturais, lemos Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Líamos as entrelinhas dos jornais. Nós víamos que não teríamos possibilidade de fazer nenhuma pastoral se não fosse contando com uma equipe. As comunicações eram difíceis. A estrada que levava para Barra do Garças estava começando, as pontes, as pinguelas. Precisávamos descobrir a realidade, ocupar a área com equipes e aí realizar um trabalho educacional, formar e informar.
O senhor se sentia preparado para assumir sua missão no país?
Casaldáliga – O curso foi providencial para mim. A gente vinha sabendo que estava se expandindo o latifúndio, que as distâncias eram infinitas, que não havia possibilidade de denúncia, de constatação. Por isso, só lancei a Carta Pastoral no dia em que fui sagrado bispo. Se fosse um simples padre, leigo ou leiga, me cortavam o pescoço. A Carta Pastoral de 1971 foi impressa em uma gráfica clandestina comunista em São Paulo. Não havia outros editores para isso, e foi feito secretamente. Vieram vários exemplares em um avião da FAB, porque nesse avião tinha algumas irmãs e uma delas era parente de um oficial da FAB. Então vinha material de missa e, debaixo disso, a Carta Pastoral. Outros exemplares ficaram em São Paulo para serem espalhados.
Como foi acolhido um estrangeiro que chegava ao Brasil em 1968, quando se iniciava o período mais duro do regime militar?
Casaldáliga – Cheguei no final de janeiro ao Brasil e a São Félix em julho. O povo é muito acessível, muito acolhedor. Eles viram nossa postura, que não tínhamos amizades com ricos, poderosos. Alguns davam depoimentos em condição de sigilo. Inclusive na própria Carta Pastoral está incluído um documento que eu escrevi em 1970 que, dizem, foi o primeiro sobre o trabalho escravo no Brasil. Quando escrevi isso, o núncio, representante do papa, a quem enviei uma cópia, pediu que não publicasse no exterior porque ia criar confusão.
Fórum – Como foi a decisão de se tornar padre?
Casaldáliga – Tornei-me padre em 1958, no estádio de Montjuic, onde ocorreram as Olimpíadas, em Barcelona. Vivi o período da Guerra Civil Espanhola. Um tio meu, irmão de minha mãe, tinha 33 anos e foi morto pelo regime. Ele e seus colegas estavam se escondendo quando estourou a revolução. Suspeitaram que era padre, avisaram a polícia e o mataram. Minha família era de direita. Ser católico e de direita era o normal, ser de esquerda era ser marxista.
Viver durante a Guerra Civil Espanhola influenciou nessa decisão?
Casaldáliga – A Revolução Espanhola teve várias características. Era uma revolução ideológica, socialista contra a direita. Em algumas áreas, era também regional, técnica. Também anti-religiosa e religiosa, a religião era utilizada para atender interesses. Foi na minha juventude. Descobri que queria ser padre na morte do meu tio. Não sei dizer o momento. Minha avó falava que eu devia ser padre, eu dizia que não. Com a morte do meu tio, eu disse que queria. Trabalhei em Barcelona e cidades próximas logo que fui sagrado padre.
Como foi o encontro com o então cardeal Joseph Ratzinger e como o senhor avalia seu pontificado?
Casaldáliga – A Congregação da Doutrina da Fé, que substitui de alguma forma a inquisição com o objetivo de regular – o que já não é uma coisa boa –, me questionou por duas vezes. Tive dois encontros com o atual papa quando ele presidia a Congregação. Questionava o uso da liturgia para causas políticas e lhe disse que nosso referencial era a fé. Fomos acusados de ser marxistas, mas lhe falei que nossas categorias eram universais, humanas. Ocorre que quem melhor falou da pobreza e das mazelas do capitalismo foi Marx. O papa tem cuidado de fortalecer os dogmas da Igreja, mas é preciso proximidade com o povo.
O senhor vê perspectivas de mudança para a questão do latifúndio?
Casaldáliga – O problema do latifúndio é o problema do Brasil e da América Latina, a acumulação da terra nas mãos de uns poucos, no campo e na cidade. Às vezes nos esquecemos da terra na cidade. Mudaram algumas coisas com os governos recentes. Agora se pode falar, antes não podia. Você pode exigir, mostrar documentos, se será reconhecido não se sabe, mas alguns são. Nos últimos anos, a partir de denúncias, a Polícia Federal está trabalhando mais, mas pára.
Como o senhor avalia o atual governo?
Casaldáliga – O Brasil continuará uma sociedade arcaica enquanto houver proteção ao latifúndio. E temos todas as possibilidades de organizar uma reforma agrária. Não vai ser fácil, não é de um dia para o outro, mas não se imaginava o MST na década de 1960, por exemplo. O governo Lula sempre reconheceu o movimento, apesar de não ter feito o que deveria em matéria de terra, porque é um governo de alianças, de concessões. Em nome da governabilidade se pode tudo.
Mas hoje há um fortalecimento da sociedade civil.
Casaldáliga – Há fóruns, debates globais. Não podemos pedir de Lula que da noite para o dia transforme tudo, mas ele poderia ter avançado mais. Contudo, se vamos ver agora essa espécie de guinada para a esquerda no continente, apesar de não ser uma virada totalmente homogênea, é um outro mundo. Com quem podíamos contar dez anos atrás? Que governo podia falar mal do capitalismo? Como hoje tudo é mundializado, não posso sonhar com um país socialista nesse mundo em que nos intercomunicamos. Mas é bom que nos encontremos, nos respeitemos e acrescentemos mutuamente, preservando nossas identidades. O único modo de você ter um diálogo adulto com o outro é você ser adulto e ser adulto é viver a própria identidade, com segurança e liberdade. Isso também na religião, posso conviver com outras religiões, mas vivendo a minha. Cada religião, como cada regime e cada país, vai ter que se acrescentar.
Em um cenário de globalização, como convivem o global e o local?
Casaldáliga – Estão sendo criados laços cooperativos, uns anos atrás só podíamos contar com a contestação, partido e sindicato. Agora que estes perderam hegemonia, podemos contar com vários atores, global e localmente. Quem quer aportar alguma coisa, deve agir global e localmente. Não posso me fechar para os problemas do meu bairro, se não me preocupo com água, saúde, escola, saneamento do meu bairro, como posso me preocupar com os problemas da África? Os territórios vão ser rachados, mesmo no Brasil. A igualdade é a maior pretensão de humanismo sincero. Se não ficarmos a favor de uma certa igualdade, não avançamos. Justiça exige não só distribuição, mas igualdade, é um processo. No entanto, não podemos pedir igualdade total.
E a questão dos imigrantes?
Casaldáliga – É preciso trabalhar a situação dos imigrantes nos países de saída e de chegada. A Espanha se viu obrigada a editar algumas leis por exigência da União Européia. Se não pensamos em transformar os países de origem, com emprego, saúde, educação, moradia, a imensa maioria dos que migram não deixariam seus países. Na Europa, é preciso ter um processo de formação. Por outro lado, a Europa tem também muita generosidade, nós mesmos vivemos e trabalhamos graças à ajuda européia. A solidariedade é de ida e de volta, é uma inter-solidariedade. Eu tenho fé e posso apelar ao Deus da vida. Quem não tem fé, apela ao humanismo. Apelo aos dois.
A violência hoje assusta o senhor?
Casaldáliga – Acredito que a humanidade não é suicida, comete suicídios, mas não é suicida. O nosso DNA mais profundo é a esperança. A partir daí, para que a minha esperança seja crível, preciso agir. Esperar e fazer, criar e acolher. Porque a esperança cristã é comprometida. O reino de Deus de que falamos é o reino de Deus já, aqui. O verdadeiro catolicismo, o cristianismo evangélico, tem como objetivo o projeto de Deus para a humanidade. Se não penso nesse objetivo máximo do próprio Jesus, não vou entender o cristianismo e cairei nesse pecado da passividade, acomodação. Você tem que viver sua identidade com dignidade. Se não viver isso, não vai reconhecer a dignidade do outro.
A questão indígena ainda é uma dívida?
Casaldáliga – Durante muito tempo, índios e ecologistas pareciam entraves ao progresso. O ministro do Interior Cavalcante – o responsável pelo Incra na década de 70 – dizia que os índios não poderiam atrapalhar. Mas a teoria é outra. Não adianta apelar para o fato de que os índios são poucos e as terras são muitas, se se discute nesses termos, o índio vira somente um posseiro. Quando eu cheguei, havia no Brasil 150 mil índios. Quando chegaram os conquistadores havia 5 milhões, pelo menos. No continente, uns 70 milhões.
Nos últimos anos, têm-se criado vários debates sobre os povos indígenas. Fazer de um rio uma fronteira é um absurdo para os índios, o rio nunca é uma fronteira, um rio é uma estrada. Mas tudo é muito demorado. Um conflito que foi denunciado em 1971 entre a empresa Suiá Missu e os índios xavantes pela posse da terra teve um princípio de definição agora em 2007, maio passado, 36 anos depois. O juiz federal José Pires da Cunha decidiu que a fazenda Suiá Missu, no município de São Félix do Araguaia, pertence aos índios do povo xavante. A decisão judicial resulta de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal, mas isso foi denunciado em 1971.
Projeto Tapirapé preserva a língua Com o apoio da prelazia de São Félix do Araguaia, os índios tapirapés, da reserva Urubu Branco, a 30 km de Confresa, no Mato Grosso, têm conseguido preservar a língua da comunidade.
Os professores são os próprios tapirapés e o público-alvo são as crianças. Elas só aprendem português quando chegam à juventude. Antes disso, passam por aulas baseadas na pedagogia orientada pelo casal de estudiosos Luiz e Nice, que tem como base a junção de antigos vocábulos tapirapés com percepções do que interessa a eles – muitas vezes o que existe na natureza. Conversando com os mais velhos, eles acharam algumas raízes para formar palavras que poderiam substituir o português dominante.
Para criar palavras, foram usados os recursos da significação ou pela forma do objeto. Por exemplo, para criar a palavra yãkopy, que é bicicleta, fizeram assim: yã – tirada da palavra yãra, que significa meio de transporte –, e kopy, porque bicicleta tem dois pneus. Outros exemplos: lápis (paraxi), bola (kojapa’axiga), boné (xapewakwy), trator (tatoyãra). A cada palavra criada, os alunos começam a usar na escola e a difundir nas suas casas e na aldeia, onde foram bem recebidas.
Fonte: Expresso MT
Ana Cristina
Nenhum comentário:
Postar um comentário