Na última reflexão apontei para três tarefas missionárias: somar forças (unidade interna e externa do cristianismo), puxar o freio de emergência do projeto desgovernado em curso (análise crítica do projeto de aceleração e acumulação sem futuro) e construir um novo projeto civilizatório cujos eixos são “redistribuição” dos bens e “reconhecimento" do outro, um projeto que contemple a todos em sua dignidade fundamental:
- a dignidade dos pobres;
- a dignidade dos outros (culturas, religiões, sexualidade, pluralismo)
- a dignidade da terra (território, nação, agronegócio, questão energética)
- a dignidade do povo de Deus na Igreja (participação dos leigos, ser adulto, transparência)
- dignidade da vida (bioética, paradigma planetário).
Hoje, este projeto radicalmente novo, não é respaldado na academia nem nos programas partidários/sindicais ou nas agências de cooperação solidária.
No atual projeto, na aceleração da produção e na acumulação do capital, não se trata apenas de uma manipulação de objetos mortos. Capital e produção representam relações sociais mediadas por exploração, alienação e reificação. A relação utilitarista “custo-benefício” não é uma mera relação comercial com sua lógica própria. Nela está embutida uma relação social.
Nestes contextos, nos quais as relações sociais são coisificadas, nós missionários(as) que anunciamos uma Boa Nova, e somos zeladores da dignidade humana, nós somos interpelados para impedir a degradação do ser humano em objeto. A comunicação da Boa Nova é peneirada nesses processos concretos da vida e do trabalho que representam um desafio para a nossa criatividade missionária. É o desafio cotidiano da construção do mundo novo que é um projeto de vida para todos.
Nós não podemos antecipar a construção desse mundo novo descritivamente, mas podemos vivê-la, realisticamente palpável, em alguns momentos de graça na vida cotidiana, e, simbolicamente, por antecipação. Como transformar a Boa Nova do Reino em proposta e projeto alternativo?
No discurso público, o projeto de vida plena real para todos, desapareceu completamente. Vivemos não só num mundo pós-moderno, mas também num mundo pós-utópico. Exatamente neste momento pós-utópico emergiu em países latino-americanos muito pequenos e economicamente frágeis, a proposta de um projeto sócio-político alternativo.
Enquanto Brasil está competindo com os países com economias fortes, nas discussões constitucionais da Bolívia e do Equador irrompeu uma proposta que procura superar as políticas alinhadas com os projetos de hegemonia competitiva. Essa proposta, de origem kechwa, se articula em torno de um novo paradigma do “viver bem”, em kechwa, “sumak kawsay”.
O “sumak kawsay” é uma utopia política não muito distante da nossa utopia do Reino. Ambos são precedidos ou representam um pachakuti, uma reviravolta em dimensões cósmicas. O pachakuti restabelece o equilíbrio perdido e abre o caminho para “viver em plenitude”.
Na “Conferencia de los Pueblos sobre El Cambio Climático y los Derechos de La Madre Tierra”, num “Acordo dos Povos” do dia 22 de abril em Cochabamba, o “sumak kawsay” foi novamente consagrado como paradigma planetário.
1. A proposta do “viver bem” equatoriano
Em oposição à lógica do capitalismo neoliberal que propõe “viver melhor” com mais mercadorias que ameaçam o equilíbrio ecológico e social, o conceito do “sumak kawsay” propõe repartir os bens para que todos possam “viver bem”. A vida humana de todos em harmonia com a natureza é o eixos central dessa proposta.
O Plano Nacional Para El Buen Vivir (2009-2013) do Equador me parece o resumo melhor deste paradigma do “viver bem”. O significado profundo desse Plano está na ruptura conceitual do Consenso de Washington (1989, era neoliberal) e dos conceitos ortodoxos do desenvolvimento de hoje (crescimento, rapidez, exportação). O paradigma do “viver bem” representa a busca, em longo prazo, de um novo pacto social, que é construído continuamente.
1.1. Cinco rupturas
a) A ruptura constitucional e democrática, para sentar as bases de uma comunidade política inclusiva e reflexiva, que aposta à capacidade do país para definir outro rumo como sociedade justa, diversa, plurinacional, intercultural e soberana. Para o projeto do “viver bem” é indispensável a construção de uma cidadania radical, que estabelece as condições materiais de um projeto nacional inspirado na igualdade em diversidade.
b) A ruptura ética para garantir a transparência, a prestação de conta e o controle social que favorecem o reconhecimento mutuo entre as pessoas e a confiança coletiva.
c) A ruptura econômica, produtiva e agrária para superar o modelo de exclusão herdado e para orientar os recursos do Estado para a educação, saúde, investigação científica, tecnologia, para o trabalho e a reativação produtiva, em harmonia e complementaridade entre zonas rurais e urbanas. Essa ruptura deve concretizar-se através da democratização do acesso à água e terra, ao crédito e conhecimento.
d) Ruptura social para que, através de uma política social articulada a uma política econômica inclusiva e mobilizadora, o Estado garante os direitos fundamentais.
e) Ruptura pela construção de dignidade, soberania e integração latino-americana.
1.2. Identidade ética do “buen vivir”
A definição do Buen Vivir implica reconhecer que se trate de um conceito complexo, vivo, não linear, porém historicamente construído e que está em constante resignificação. Por Buen Vivir os autores entendem “a satisfação das necessidades, o alcance de uma qualidade de vida e morte dignas, a convivência social e ecológica em harmonia. O Buen Vivir pressupõe ter tempo livre para contemplação e emancipação, e que as liberdades, oportunidades e capacidades reais dos indivíduos sejam ampliados.
As rupturas conceituais têm orientações éticas e princípios que se expressam em cinco dimensões:
- justiça social e econômica
- justiça democrática participativa,
- justiça intergeneracional e interpersonal,
- justiça transnacional.
- justiça como imparcialidade
1.3. Desafios do projeto de mudanças
a) Construir uma sociedade que busque e reconheça a unidade na diversidade;
b) Promover a igualdade, a integração e coesão social como agenda de convivência;
c) Garantir progressivamente os direitos universais e a proteção das capacidades humanas;
d) Construir relações sociais e econômicas em harmonia com a natureza;
e) Edificar uma convivência solidária, fraterna e cooperativa;
f) Consolidar relações de trabalho e lazer libertadoras;
g) Reconstruir a esfera pública;
h) Aprofundar a construção de uma democracia representativa, participativa e deliberativa;
i) Consolidar um Estado democrático, pluralista e laico.
1.4. Medidas práticas
Precisamos um novo modo de geração de riquezas e redistribuição numa sociedade pós-petrólifero.
a) Democratização dos meios de produção, redistribuição das riquezas e diversificação da propriedade;
b) Aumento de produtividade real e diversificação das exportações;
c) Inserção estratégica e soberana no mundo e na América-Latina;
d) Conectividade e telecomunicações para construir a sociedade da informação;
e) Mudança da matriz energética;
f) Bien Vivir no marco de uma macroeconomia sustentável;
g) Sustentabilidade, conservação, conhecimento do patrimônio natural;
h) Desenvolvimento e ordenamento territorial, desconcentração e decentralização;
i) Poder cidadão e protagonismo social;
Dessas medidas práticas emergem 12 Objetivos Nacionais
2. O Bien Vivir boliviano
O “buen vivir” é um conceito de vida longe dos parâmetros do crescimento econômico, longe do individualismo, da relação custo-benefício, da relação utilitarista entre os seres humanos e natureza, longe da mercantilização de todas as esferas da vida e da violência culturalmente não mais controlada. O “buen vivir” expressa uma relação diferente entre os seres humanos.
O “sumak kawsay” propõe a incorporação da natureza na história, não como fator produtivo nem como força produtiva, mas como parte inerente ao ser social. Os seres humanos fazem parte da natureza. O “buen vivir” supera as dicotomias cartesianas, entrelaça o tempo linear com o tempo circular, o mito com a história e a objetividade da produção com a subjetividade da “mãe terra”.
“Buen vivir”, que é possível quando o ser humano vive em comunidade com a natureza, representa uma re-união “fraternal” entre a esfera da política e a esfera da economia. No “buen vivir” o valor de uso da mercadoria está acima do valor de troca (fraudado pela mais-valia expropriada). O ser individualizado da modernidade tem que reconhecer a existência ontológica de outros seres que têm direito a existir e viver com sua alteridade.
Podemos lembrar alguns princípios, que o ministro das Relações Exteriores e especialista em cosmovisão andina, David Choquehuanca, em entrevista recente elencou como essência do “viver bem”:
2.1. Priorizar a vida e os direitos cósmicos
Viver Bem significa buscar a vivência em comunidade, onde todos os integrantes se preocupam com todos. O mais importante não é o ser humano (como afirma o socialismo) nem o dinheiro (como postula o capitalismo), mas a vida com mais simplicidade possível. Viver bem signnifica dar prioridade aos direitos cósmicos antes que aos Direitos Humanos. É mais importante falar sobre os direitos da Mãe Terra do que falar sobre os direitos humanos.
2.2. Nas discussões se constrói o consenso
Viver Bem significa buscar o consenso entre todos. Na hora de conflitos se procura chegar a um ponto de neutralidade em que todos coincidam. Procura-se aprofundar a democracia para que não haja submissão. Submeter a minoria à maioria não é “viver bem”.
2.3. Respeitar as diferenças
Para viver em harmonia é necessário respeitar a diferença. O respeito se estende a todos os seres que habitam o planeta (animais, plantas). O respeito vai além da tolerância. Aceitar a diferença significa também aceitar a semelhança.
2.4. Buscar ver na diferença a complementaridade
Nas comunidades, a criança se complementa com o avô, o homem com a mulher, a terra com a água, a humanidade com os vegetais.
2.5. Equilíbrio (não-exclusão)
Viver bem significa levar uma vida equilibrada com todos os seres dentro de uma comunidade e com a natureza. Vivemos atualmente num projeto que exclui. Democracia, justiça, meios de comunicação, terra, natureza – em tudo se mostram mecanismos de exclusão
2.6. Valorizar a identidade
Viver bem significa valorizar e recuperar a identidade. Esta identidade tem como base valores que resistiram mais de 500 anos e que foram transmitidos pelas famílias e nas comunidades que viveram em harmonia com a natureza e o cosmos.
2.7. Saber comer, beber, dançar, trabalhar
Em tudo prevalece o equilíbrio e os aprendizados ancestrais. O trabalho é algo comunitário e festivo e não produção de mais-valia.
2.8. Reincorporar a agricultura
Viver Bem significa reincorporar a agricultura às comunidades, recuperar as formas de vivência em comunidade, como o trabalho na terra, cultivando produtos para cobrir as necessidades básicas para a subsistência. Se aguarda a devolução das terras às comunidades, de maneira que se produzam as economias locais.
2.9. Proteger as sementes
Viver bem exige proteger e guardar as sementes. No novo modelo social vamos preservar a riqueza agrícola ancestral com a criação de bancos de sementes que evitem a utilização de transgênicos.
2.10. Saber se comunicar
Viver bem é saber se comunicar. Rezar significa comunicar (cacique Babau). O diálogo é o resultado desta boa comunicação ancestral nas comunidades (oralidade!).
2.11. Soberania
Viver bem significa construir, a partir das comunidades, o exercício da soberania no país. Deve-se construir a unidade e a responsabilidade a favor do bem comum, em harmonia com os indivíduos, a natureza e o cosmos. Soberania significa soberania de terra e água.
2.12. Escutar os anciãos
Viver bem significa ler as rugas dos avós para poder continuar o caminho. “Nossos avôs são bibliotecas ambulantes”.
O discurso do “buen vivir” já encontramos na “Nueva corónica y buen gobierno” de Felipe Guaman Poma de Ayala (1535-1616?). Colonização e civilização não o venceram. O sumak kawsay (“buen vivir”) emerge novamente como tarefa, imperativo e salva-vida; faz parte daquela sabedoria divina que a humanidade recebeu por muitos caminhos. Ela age, como a sabedoria do Reino, como cunha nas rachaduras da sociedade alienada.
3. Do buen vivir ao viver como cidadãos do Reino
O sumak kawsay é a prova de que resistência sapiencial é possível. Temos também notícia de resistências extraordinárias de outros povos. No Brasil, nos últimos 30 anos surgiram mais de 50 povos indígenas que estavam desaparecidos da memória nacional e do mapa etnográfico do país. Por um momento, a sabedoria deles venceu a avalanche de integração e de todos os aliciamentos disfarçados de sabedoria e bem-estar da sociedade dominante.
Os cristãos fazem a leitura do “buen vivir” como uma expressão da sabedoria do Reino, como desapego em benefício de todos. Em nossa sociedade, a sabedoria como núcleo de uma nova civilização exige despojamento como exercício cotidiano que envolve todas as dimensões da vida. Despojamento pode significar desapegar-se de privilégios e soltar ao vento desejos, saberes e objetos que criam dependências. O desapego é central para a construção de uma vida inteira, livre, integral. O desapego como ascese, como exercício de se livrar do desnecessário para que todos possam usufruir o necessário, ultrapassa a esfera do privado e do individual.
O desapego como exercício ascético tem uma função social que desestabiliza o sistema.
O mundo de hoje destaca o empreendedor, que mostra que é possível escapar do desemprego, do ócio improdutivo e do fatalismo daqueles que vivem na miséria. A estes faltaria o espírito empreendedor. Nesse mundo, parece estranho situar o desprendimento no centro da vida ativa, vivida como vida inteira. O desprendimento como sabedoria é um pressuposto da justiça distributiva e da pedagogia, economia e mística que o grande pedagogo Comenius (Jan Amos Komensky) resumiu em poucas palavras: tudo para todos integralmente: os saberes, os bens materiais e os dons espirituais. A vida de cada dia se dá a quem se deu.
Desprender-se de algo não significa, simplesmente, abrir mão de algo; significa deixar algo ser, deixar algo livremente existir – algo que estava ameaçado pelos apegos a desejos e objetos. O desprendimento não é privação, mas libertação e purificação. Dessa purificação, caracterizada pela recusa a práticas possessivas de acumulação, emergem energias novas. Como livramos animais e árvores de parasitas, que lhes roubam a energia vital, assim nós também temos necessidade de nos livrarmos de apegos parasitários que nos roubam a energia. Sem liberdade e energia, a vida começa a murchar. O apego cerceia a liberdade e o fluxo energético da vida. O desprendimento em sua forma individual pode ser compreendido como conversão e ascese, em sua forma comunitária ou sociopolítica, como ruptura e solidariedade.
A cada momento, o desprendimento recoloca Deus, o pobre Deus do pão e da cruz, no centro da humanidade. Essa centralidade de Deus orienta os cristãos para a igualdade e a liberdade dos seres humanos. Todos são igualmente criaturas de Deus. Nessa perspectiva de uma igualdade radical não há lugar para apropriações privadas dos bens da terra. Em consequência disso, os místicos se encontram sempre na contra-mão dos sistemas e na mira dos administradores das instituições e das palavras. A existência dos místicos, dos verdadeiros sábios, denuncia as acomodações administrativas das instituições religiosas e a marginalização dos pobres através de práticas políticas e sociais rotineiras de exclusão.
Desprendimento é ruptura. Isso quer dizer retomar a vida das mãos daqueles que nos educaram para morrer. Nós precisamos a cada dia nos reeducar para viver e romper com a lógica alienante do senso comum que, muitas vezes, é a perversão do bom senso e da possibilidade do “buen vivir”. Ruptura significa intervenção em situações que impedem parte significativa da humanidade de viver a sua vida com dignidade. O desprendimento como descontentamento profético emerge da consciência de que “remendos novos em roupas velhas” não mudarão o curso da História.
Paulo Suess
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