Se em Nossa América o resto do presente ano fosse politicamente tão favorável quanto foram os últimos dias de 2010 e esses primeiros dias de 2011 não teríamos dúvida de que nos espera um período auspicioso.
Não se trata de descuidar-se e esquecer que perto de nós e em estado de alerta está todo o aparelho de vigilância, conspiração e intervencionismo da Gringolândia, auxiliada, como sempre em suas tenebrosas aventuras por cúmplices de toda marca. Claro que não. Porém, o certo é que continuam aparecendo sinais inequívocos de que as forças progressistas latinoamericanas continuam em ascensão.O que aconteceu no dia 1º de janeiro? Ao tomar posse de seu cargo, a presidente do Brasil, Dilma Rousseff –herdeira de Luiz Inácio Lula da Silva, que arrasou no segundo turno eleitoral- fez duas advertências de peso: combaterá o protecionismo dos países ricos e se oporá à chegada em massa de capitais especulativos. Disse também que quer erradicar a miséria e acabar com a fome; continuar contendo a inflação; acabar com o analfabetismo e elevar a qualidade da educação; consolidar planos de habitação e de luta contra o crime organizado. Esses, entre outros projetos que incluem o impulso de um acordo entre organismos de direitos humanos e os militares, para obter informação sobre centenas de brasileiros desaparecidos durante a ditadura, entre 1964 e 1985.
Agregou também que quer trabalhar "pelo bem geral do povo brasileiro” e os objetivos de "união, integridade e independência”. Assinalou muito mais coisas em um discurso longo, contundente, cheio de fórmulas e ideias que, apesar de que para alguns soem a demagogia, teria que negá-lo, porque o Partido dos Trabalhadores (PT), que ela representa, tem a maioria no Congresso e nos Estados. Enfim, há serias pretensões e apoio. Tudo que é necessário para fazer andar políticas e procedimentos.
De forma que não é outra a base para que essa economista ex-guerrilheira, essa mulher de atitude, aos 63 anos, possa sobrepor-se às desditas que a natureza lhe fez sofrer dias depois, e cumprir o prometido: "Meu governo será de mudança e continuidade, porque um governo se baseia na acumulação de conquistas ao longo da história”.
Vale recordar que Lula da Silva, ex-torneiro mecânico e primeiro líder operário que ascendeu a essa magistratura, deixou o Palácio do Planalto com 83% de apoio popular e ao gigantesco país de 200 milhões de habitantes e dezenas de milhões de pobres ocupando o oitavo posto da economia mundial.
Lula não colocou as bases de mudanças políticas ou estruturais rotundos e, de fato, não teria podido fazê-lo apesar de querer; no entanto, criou 15 milhões de novos empregos; desativou a dívida interna e externa; melhorou os índices de distribuição de ingressos e de empregos; e, como bem argumentou Página/12, "converteu em classe média baixa a 30 milhões de brasileiros que estavam largados à intempérie social”.
De modo que a chegada de Dilma a Brasília, com um prestígio bem merecido de executiva e de grande organizadora e uma ampla agenda, deixa claro que, de fato, pretende algo mais do que continuar a gestão iniciada por seu mentor, em 2002.
Outras boas notícias. O fato de que nessa autêntica locomotiva da América Latina e dos países emergentes, o Brasil produzisse um tão natural e favorável relevo da mais alta hierarquia não foi a única boa notícia. Outras igualmente auspiciosas apareceram nessa década em estreia. No Peru, por exemplo, após uma longa noite ultradireitista e neoliberal, assumiu a Prefeitura de Lima Susana Villarán, ativa defensora dos direitos humanos e ex-candidata presidencial, em 2006, cuja gestão deve injetar ar fresco à política local, onde a esquerda esteve marginalizada durante mais de duas décadas.
Educadora, militante da Teologia da Libertação, candidata por um partido de centro-esquerda – Fuerza Social -, Villarán tem diante de si muitos desafios, como o de incrementar a segurança cidadã em uma cidade inquietante de oito milhões de habitantes. No entanto, o mais significativo é que essa virada acontece quando, em abril próximo, haverá eleições presidenciais. O cacicazgo continuará primando na hora de eleger dirigentes, ou renascerá a esquerda? Acontece o que acontecer, é inegável que também nesse país do altiplano sopram outras correntes; como é indubitável que algo de novidade possa começar a acontecer.
A Argentina concluiu 2010 com a impressionante cifra de 108 repressores condenados em julgamentos e megajulgamentos vinculados às violações aos direitos humanos durante a última ditadura (1976-1982), onde se destaca a condenação à cadeia perpétua do ditador Jorge Rafael Videla, julgado várias vezes e sempre foi indultado. Agora, sim, deverá cumprir sua pena e em uma penitenciária comum.
Frente a um ano eleitoral, no qual se notará a ausência de Néstor Kirchner, é muito possível que a atual presidente, Cristina Fernández, com uma grande base popular de apoio, busque a reeleição, o que, na opinião de analistas, seria o ideal para o país, que conseguiu frear o terrível impacto da crise; aumentar o índice de emprego; diminuir a pobreza; crescer e, inclusive, implementar medidas de corte social e econômico.
Em outra ação impensável, há alguns meses, o novo presidente colombiano, Juan Manuel Santos, congelou o acordo de defesa com os Estados Unidos, assinado por seu predecessor, Álvaro Uribe, autorizando ao país do Norte a instalar sete novas bases militares em território da nação andina. O que tão assombrosa determinação esconde? Ao chegar a hora, saberemos. Porém, isso já significou a normalização das relações diplomáticas entre Bogotá e Caracas. "Impuseram-se a racionalidade, o sentido comum e a responsabilidade”, disse o presidente Chávez, que, precisamente por causa desse obscuro tratado, decretou, há um ano, o rompimento das relações bilaterais entre Venezuela e Colômbia.
Não devemos esquecer que muitas têm sido também as ações executadas na busca de seguir perfilando a unidade e a integração regionais. Impossível resenhar todas elas.
Sempre há uma pá de cal; outra, de sal. Assim, precisamente no dia 3 de janeiro, ao cumprir-se 178 anos da ilegal ocupação de parte de seu território pela Grã Bretanha, o país do Prata reafirmou seu direito de soberania sobre as Ilhas Malvinas, Geórgia do Sul e Sandwich do Sul e dos espaços marítimos circundantes.
Nessa ocasião, o reclamo adquire uma especial importância, já que durante 2010 a Inglaterra realizou perigosos atos unilaterais, como a exploração de recursos naturais e a realização de exercícios militares e disparos de mísseis, atos violatórios das normas de navegação oportunamente condenados pelo Mercosul, pela Unasul, pelo Grupo do Rio, pela Cúpula da América Latina e do Caribe e pela Cúpula Iberoamericana.
Lamentavelmente essa controvérsia, que mascara uma atitude francamente colonial e um autêntico despojo, continuará arrastando-se enquanto o Reino Unido continue negando-se a buscar uma solução pacífica e definitiva.
Outro assunto particularmente preocupante é o nível alcançado pela violência do narcotráfico e de outras máfias no México, a ponto de terem se tornado banais as arremetidas de grupos criminais poderosos contra a sociedade e o governo. Cifras certificam que somente em 2010 houve 11.583 assassinatos além dos registrados nos três anos anteriores. Isso tem repercutido perigosamente na região centroamericana, especialmente na Guatemala e em El Salvador.
Por lá e por cá afloram outros assuntos igualmente favoráveis para o destino não somente de determinados países como também da região em seu conjunto; porém, como bem reza aquele ditado "guerra avisada não mata soldados”, é preciso avaliar também a recomposição de forças que hoje a direita vem mostrando. O que aconteceu em Honduras, no Equador, em Costa Rica (com a entrada de sete mil soldados e naves, aviões e apetrechos estadunidenses) e, inclusive, no Haiti, com a tácita invasão de tropas gringas logo após o abalo sísmico há um ano e meio (e que, segundo sérias pesquisas não totalmente provadas; porém, tampouco negadas, foi provocado), são signos que devem ser considerados.
Dizem bem os especialistas, o golpe em Honduras, em meados de 2010, foi o ponto de inflexão para a direita continental. Ao fim e ao cabo, lá essa direita e especialmente Gringolândia ‘aprontaram'. Cuidado com os neocons!, advertem renomeados estudiosos. Neocons que, repassemos, surgiram na década dos 90, dez anos após a revolução conservadora de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, foram a força material e pensante de George Bush e agora expressam uma tendência antiliberal empenhada na recuperação dos "valores ocidentais e estadunidenses”. Muito cuidado, sim. Apesar de que 2011 apenas começa cheio de notícias auspiciosas, a América Latina nunca pode dormir em louros. Nunca deve abandonar seu espírito insurgente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário