sábado, 5 de fevereiro de 2011

O Feminismo Indígena no México



Há dez anos seria impensável falar da existência de um feminismo indígena no México, no entanto, a partir do levantamento zapatista iniciado em 1 º de janeiro de 1994, podemos ver surgir no âmbito nacional um movimento de mulheres indígenas que está lutando em diversas frentes. Por um lado, as mulheres indígenas organizadas uniram suas vozes ao movimento indígena nacional para denunciar a opressão econômica e o racismo que marca a inserção dos povos indígenas no projeto nacional. Ao mesmo tempo estas mulheres lutam no interior de suas organizações e comunidades para mudar aqueles elementos da tradição que as excluem e as oprimem. As demandas destas mulheres e de suas estratégias de luta nos levam a considerar esta luta como o surgimento de um novo tipo de feminismo indígena, que mesmo coincidindo em alguns pontos com as demandas de setores do feminismo nacional, têm ao mesmo tempo diferenças substanciais.
O contexto econômico e cultural em que as mulheres indígenas foram construindo as suas identidades de gênero marca as formas específicas que tomam suas lutas, suas concepções sobre dignidade da mulher e suas formas de fazer alianças políticas. As estratégias de lutas destas mulheres estão determinadas pela sua identidade de etnia, de classe e de gênero. Elas preferiram incorporar-se à luta do seu povo, criando ao mesmo tempo espaços específicos de reflexão sobre as suas experiências de exclusão como mulheres e como indígenas.


Do “feminismo” aos feminismos:
Embora a construção de relações mais equitativas entre homens e mulheres tornou-se em um ponto medular na luta das mulheres indígenas organizadas, o conceito de feminismo não foi reivindicado dentro de seus discursos políticos. Este conceito continua sendo identificado como o feminismo liberal urbano, que para muitas delas tem conotações separatistas que as afastam de sua necessidade de uma luta conjunta com os seus companheiros indígenas. Aqueles que chegaram ao feminismo depois de uma experiência de militância em organizações de esquerda sabem que a força ideológica que tiveram os discursos que representam ao feminismo como uma “ideologia burguesa, separatista e individualista” que separa às mulheres das lutas por seus povos. As experiências do feminismo liberal anglo, que de fato, partiram de uma visão muito individualista dos “direitos dos cidadãos”, foram utilizadas para criar uma representação homogeneizadora do “feminismo”.
A luta dos múltiplos feminismos mexicanos que se foram gestando nas últimas décadas em parte consistiu em apropriar-se desse conceito e fazer com que adquira um novo sentido. A reivindicação de um “feminismo indígena” somente será possível na medida em que as mulheres indígenas lhe dêem um sentido próprio ao conceito de feminismo e o encontre útil para criar alianças com outras mulheres organizadas. Por agora, muitas das suas demandas, tanto as dirigidas ao Estado quanto as suas organizações e comunidades, visam a reivindicar “a dignidade da mulher” e a construção de uma vida mais justa para todos e todas. A Lei Revolucionária de Mulheres, promovida pelas militantes zapatistas, é um dos múltiplos documentos que expressam estas novas demandas de gênero.
Dita lei consta de dez pontos entre os que se encontram o direito das mulheres indígenas à participação política e aos postos de direção, o direito a uma vida livre de violência sexual e doméstica, o direito de decidir quantos filhos ter e cuidar, o direito a um salário justo, o direito a escolher com quem casar-se, a bons serviços e a educação, entre outros direitos. Embora nem todas as mulheres indígenas conheçam esta Lei em detalhe, o fato de saber que existe tornou-se um símbolo de possibilidades de uma vida melhor para as mulheres.Estas novas demandas de gênero foram expressas de diferentes formas em Foros, Congressos e Oficinas, organizadas a partir de 1994, e questionam tanto as perspectivas essencialistas do movimento indígena, que apresentava às culturas mesoamericanas como harmônicas e homogêneas, como os discursos generalizantes do feminismo que põem ênfase no direito à igualdade desconsiderando a forma com que a classe e a etnia marcam a identidade das mulheres indígenas.
Diante do movimento indígena, estas novas vozes questionaram as perspectivas idílicas das culturas de origem pré-hispânica, discutindo as desigualdades que caracterizam as relações entre os gêneros. Também pôs em discussão a dicotomia entre tradição e modernidade que o indigenismo oficial vem reproduzindo e que o movimento indígena independente concorda em parte. Segundo esta dicotomia há duas opções: permanecer mediante a tradição ou mudar através da modernidade. As mulheres indígenas reivindicam o seu direito à diferença cultural, e também, demandam o direito de mudar aquelas tradições que as oprimem ou excluem: “Também devemos pensar o novo a ser feito em nossos costumes, a lei somente deveria proteger e promover os usos e costumes que as mulheres, comunidades e organizações analisem se são bons. Os nossos costumes não devem prejudicar a ninguém”.
Paralelamente, as mulheres indígenas estão questionando as generalizações sobre “A Mulher” que foram feitas no discurso feminista urbano. Ao querer imaginar um frente unificado de mulheres contra o “patriarcado”, muitos estudos feministas negaram as especificidades históricas das relações de gênero nas culturas não ocidentais. Neste sentido, é importante retomar a crítica que algumas feministas negras fizeram ao feminismo radical e liberal dos Estados Unidos por apresentar uma visão homogenizadora da mulher, sem reconhecer que o gênero vai se construindo de diversas formas em diferentes contextos históricos.

A brecha cultural entre mestiças e indígenas:
Considero que às feministas urbanas nos tenha faltado sensibilidade cultural em muitas ocasiões das mulheres indígenas, assumindo que nos une a elas uma experiência comum frente ao patriarcado. Esta falta de reconhecimento das diferencias culturais vem dificultando a formação de um movimento amplo de mulheres indígenas e mestiças. Uma das tentativas frustradas de formação deste movimento foi a Convenção Estadual de Mulheres Chiapanecas formada em setembro de 1994.Antes da realização da Convenção Nacional Democrática, convocada pelo EZLN, mulheres de ONGs, de cooperativas produtivas e de organizações campesinas, reuniram-se para elaborar conjuntamente um documento que foi apresentado na reunião de Aguascalientes, onde estão expostas as demandas específicas das mulheres chiapanecas. Este foi o gérmen da Convenção Estadual de Mulheres Chiapanecas, um espaço heterogêneo no aspecto cultural, político e ideológico.
Mulheres mestiças urbanas de ONGs, feministas e não feministas e de Comunidades Eclesiais de Base, nos reunimos com mulheres monolíngües dos Altos, sobre tudo tzeltales e tzotziles; com tojolabales, choles e tzeltales, da selva, e com indígenas mames da Serra. Esta organização teve uma vida curta, somente conseguimos realizar três reuniões ordinárias e uma especial, antes da dissolução da Convenção.
Fica de pé a tarefa de realizar uma reconstrução histórica deste movimento, que estude criticamente as estratégias do feminismo urbano para criar pontes de comunicação com as mulheres mestiças. É notável que tenham sido as mulheres mestiças, mesmo sendo minoria, as que assumiram postos de liderança em uma hierarquia interna não reconhecida. Muitas das mulheres integrantes da Convenção foram convidadas pelo EZLN como assessoras ou como participantes na mesa sobre “Cultura e Direitos Indígenas”, que se realizou em 1995 em San Cristóbal de las Casas, onde se integrou uma mesa especial sobre a “Situação, direito e cultura da Mulher Indígena”. Nesta mesa, as assessoras mestiças encarregadas dos relatórios deixaram de colocar as detalhadas descrições das mulheres indígenas sobre os problemas corriqueiros, incluindo somente as demandas gerais de desmilitarização e as críticas ao neoliberalismo. É a partir destas experiências corriqueiras, que foram apagadas dos relatórios e memórias de encontros, que as mulheres indígenas construíram as suas identidades de gênero de uma forma diferente à das feministas urbanas.















Só aproximando-nos de estas experiências poderemos entender a especificidade de suas demandas e de suas lutas. Depois destas experiências, não surpreende que, em outubro de 1997, quando se realizou o Primeiro Congresso Nacional de Mulheres Indígenas, as participantes decidiram que as mestiças somente poderiam participar como observadoras. Esta decisão foi chamada de “separatista” e incluso de “racista” por parte de algumas feministas, que por primeira vez foram silenciadas pelas mulheres indígenas. Argumentos similares aos que são usados contra as mulheres quando demandamos um espaço próprio ao interior das organizações políticas. É importante reconhecer que as desigualdades étnicas e de classe influenciam, mesmo sem más intenções, quando as mulheres mestiças, com um domínio maior do idioma oficial e da leitura e da escrita, tentam a hegemonizar adiscussão quando nos referimos a espaços conjuntos. Por isso, é fundamental respeitar a criação de espaços próprios e esperar o momento propício para a formação de alianças. As mulheres purépechas, totonacas, tzotziles, tzeltales, tojolabales, mazatecas, cucatecas, otomíes, triquis, nahuas, zapotecas, zoques, choles, tlapanecas, mames, chatinas, popolucas, amuzgas e mazahuas, reunidas em Oaxaca neste primeiro encontro nacional de mulheres indígenas, vivem os seus próprios processos, que nem sempre coincidem com os tempos e agendas do feminismo urbano.
Um exemplo desta brecha cultural existente entre mestiças urbanas e indígenas foram as fortes críticas que algumas feministas fizeram à Segunda Lei Revolucionária de Mulheres, propostas pelas indígenas zapatistas, por ter incluído um artigo que proíbe a infidelidade. Esta modificação da Primeira Lei Revolucionária de Mulheres foi considerada uma medida conservadora produto da influência da Igreja nas comunidades indígenas. Estas precipitadas críticas devem contextualizar esta demanda das mulheres indígenas dentro de uma realidade na qual a infidelidade masculina e a bigamia são justificadas culturalmente em nome da “tradição”, e se encontram estreitamente vinculadas com as práticas de violência doméstica. Uma proibição que para as mulheres urbanas pode resultar moralista e retrograda, talvez para algumas mulheres indígenas seja uma forma de rejeitar uma “tradição” que as deixa vulneráveis no interior da unidade doméstica e da comunidade.
Acontece o mesmo no referente à legislação em torno à violência doméstica. As feministas urbanas de Chiapas lutaram durante vários anos para conseguir que a penalização para os esposos violentos fosse maior, conseguindo finalmente que em 1988 o artigo 122 do Código Penal fosse modificado, aumentando a penalização em casos de violência doméstica. Agora as mulheres indígenas que carecem de independência econômica são diretamente afetadas pelo castigo que a lei impõe aos seus maridos, ao ficarem sem o apoio econômico durante o tempo que ele esteja na cadeia. Algo semelhante acontece com o referente ao direito ao patrimônio e à pensão alimentícia para as mulheres indígenas. A luta legislativa serve de pouco ou quase nada quando os esposos não possuem terra e trabalho fixo.
Vale a pena retomar a proposta de Chandra Monhanty nesta luta em contra a violência doméstica em contextos multiculturais. Ela diz que “A violência masculina deve ser teorizada e interpretada dentro de sociedades específicas, para assim podermos entendê-la melhor e assim nos organizarmos de forma mais efetiva na luta contra ela” (Monhanty 1991:67).
Se o reconhecimento das semelhanças entre as mulheres nos permite criar alianças políticas, o reconhecimento das diferenças é requisito indispensável para a construção de um dialogo respeitoso e para buscar estratégias de luta que estejam em sintonia com as diferentes realidades culturais. Talvez a construção deste diálogo intercultural, respeitoso e tolerante, contribua à formação de um novo feminismo indígena baseado no respeito às diferenças e deixando as desigualdades. Artículo tomado de CEMHAL Centro de Estudos da Mulher na História de América Latina.

Aida Hernandez Castillo Salgado



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