quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

‘Comemos o que as grandes empresas agroalimentícias querem'

Entrevista a Esther Vivas

co-autora do livro "Do Campo ao Prato”

(Ed. Icaria, 2009)

Comprar um quilo de açúcar, um litro de leite ou um pacote de bolachas pode parecer um ato bem cotidiano. Porém, sob essa aparência inócua subjaz a relevância política de nossas ações, inclusive as mais inocentes.

Esther Vivas, ativista social pela soberania alimentar e militante do movimento antiglobalização, alerta sobre a primazia do capital privado na hora de impor gostos, marcas e produtos. Juntamente com Xavier Montagut publicou os livros "Do campo ao Prato”, "Para onde vai o comércio justo?” e "Supermercados? Não, obrigada!”.

Você é co-autora do livro "Do Campo ao Prato”. Acreditas que nos estão envenenando?

Esther: O modelo de produção de alimentos antepõe interesses privados e empresariais às necessidades alimentícias das pessoas, à sua saúde e ao respeito ao meio ambiente. Comemos o que as grandes empresas do setor querem. Hoje, há o mesmo número de pessoas no mundo que passam fome do que o de pessoas com problemas de sobrepeso, afetando, em ambos casos, aos setores mais pobres da população, tanto nos países do Norte quanto nos do Sul. Os problemas agrícolas e alimentícios são globais e são o resultado de converter os alimentos em uma mercadoria.

925 milhões de pessoas no mundo passam fome. Isso é uma prova do fracasso do capitalismo agroindustrial?

Sim. A agricultura industrial, quilométrica, intensiva e petrodependente tem se mostrado incapaz de alimentar à população, ao mesmo tempo em que teve um forte impacto ambiental, reduzindo a agrodiversidade, gerando mudança climática e destruindo terras férteis. Para acabar com a fome no mundo não é preciso produzir mais, como afirmam os governos e as instituições internacionais. Pelo contrário; faz falta democratizar os processos produtivos e fazer com que os alimentos estejam disponíveis para o conjunto da população.

As empresas multinacionais, a ONU e o FMI propõem uma nova "revolução verde”, alimentos transgênicos e livre comércio. Que alternativa pode ser proposta pelos movimentos sociais?

Esther: É preciso recuperar o controle social da agricultura e da alimentação. Não pode acontecer que umas poucas multinacionais, que monopolizam cada uma das etapas da cadeia agroalimentar, acabem decidindo o que comemos. A terra, a água e as sementes devem estar nas mãos dos camponeses, daqueles que trabalham na terra. Esses bens naturais não devem servir para fazer negócio, para especular. Os consumidores temos que poder decidir o que comemos, se queremos consumir produtos livres de transgênicos. Definitivamente, temos que apostar na soberania alimentar.

Poderias definir o conceito de "soberania alimentar”?

Esther: Consiste em ter a capacidade de decidir sobre tudo aquilo que faça referência à produção, distribuição e consumo de alimentos. Apostar no cultivo de variedades autóctones, de temporada, saudáveis. Promover os circuitos curtos de comercialização, os mercados locais. Combater a competição desleal, os mecanismos de dumping, as ajudas à exportação. Conseguir esse objetivo implica uma estratégia de ruptura com as políticas da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Porém, reivindicar a soberania alimentar não implica em um retorno romântico ao passado, mas, ao contrário, trata-se de recuperar o conhecimento das práticas tradicionais e combiná-las com as novas tecnologias e saberes. Da mesma forma, não consiste em uma proposta localista, mas de promover a produção e o comércio local, no qual o comércio internacional funcione como um complemento do anterior.

A Vía Campesina afirma que comer, hoje, converteu-se em um "ato político”. Estás de acordo?

Esther: Completamente. O que comemos é resultado da mercantilização do sistema alimentar e dos interesses do agronegócio. A mercantilização que está sendo realizada na produção agroalimentar é a mesma que atinge a muitos outros âmbitos de nossa vida: privatização dos serviços públicos, precarização dos direitos trabalhistas, especulação com a habitação e com o território. É necessário antepor outra lógica e organizar-se contra o modelo agroalimentar atual no marco do combate mais geral contra o capitalismo global.

Estamos em mãos das grandes cadeias de distribuição? O que isso implica e que efeitos nos traz esse modelo de consumo?

Esther: Hoje, sete empresas no Estado Espanhol controlam 75% da distribuição dos alimentos. E essa tendência cresce cada vez mais. De tal maneira que o consumidor cada vez mais tem menos portas de acesso à comida e o mesmo passa ao produtor ao buscar acesso ao consumidor. Esse monopólio outorga um controle total aos supermercados na hora de decidir sobre nossa alimentação, o preço que pagamos pelo que comemos e como foi elaborado.

As soluções individualistas servem para romper com essas pautas de consumo?

Esther: A ação individual tem um valor demonstrativo e aporta coerência; porém, não gera mudanças estruturais. Faz falta uma ação política coletiva; organizar-nos no âmbito do consumo, por exemplo, a partir de grupos e cooperativas de consumo agroecológico; criar alternativas e promover alianças amplas a partir da participação em campanhas contra a crise, em defesa do território, fóruns sociais etc.

Também é necessário sair às ruas e atuar politicamente, como, por exemplo, por ocasião da campanha da Iniciativa Legislativa Popular contra os transgênicos, impulsionada por "Som lo que siembrem”, porque, como vimos em múltiplas ocasiões, os que estão nas instituições não representam nossos interesses, mas os interesses privados.

Kyoto, Copenhague, Cancún... Que balanço geral pode ser feito sobre as diferentes cúpulas sobre a mudança climática?

Esther: O balanço é muito negativo. Em todas essas cúpulas os interesses privados e o curto prazo têm pesado mais do que a vontade política real para acabar com a mudança climática. Não foram feitos acordos vinculantes que permitam uma redução efetiva dos gases de efeito estufa. Pelo contrário, os critérios mercantis têm sido uma vez mais a moeda de troca e o mecanismo de comércio de emissões é, nesse sentido, o seu máximo expoente.

Em Cancun fez sucesso a ideia de "adaptação” à mudança climática. Por detrás disso escondem-se os interesses das companhias multinacionais e de um suposto "capitalismo verde”?

Esther: Sim. El vez de dar soluções reais, opta-se por falsas soluções, como a energia nuclear, a captação de carbono da atmosfera para seu armazenamento, ou os agrocombustíveis. Trata-se de medidas cujo único resultado é agravar ainda mais a crise atual social e ecológica e, isso sim, proporcionar grandes benefícios a umas poucas empresas.

O Movimento pela Justiça Climática tenta oferecer alternativas. Como nasceu e quais são seus princípios?

Esther: O Movimento pela Justiça Climática faz uma crítica às causas de fundo da mudança climática, questionando o sistema capitalista e, como muito bem diz seu lema, tenta "mudar o sistema, não o clima”. Desse modo, expressa essa relação difusa que existe entre justiça social e climática, entre crise social e ecológica.

O movimento tem tido um forte impacto internacional, sobretudo por ocasião dos protestos na cúpula do clima em Copenhague e, mais recentemente, nas mobilizações de Cancún. Isso tem contribuído para visualizar a urgência de atuar contra a mudança climática. O desafio é ampliar sua base social, vinculá-lo às lutas cotidianas e buscar alianças com o sindicalismo alternativo.

A solução é mudar o clima ou mudar o sistema capitalista?

Esther: Faz falta uma mudança radical de modelo. O capitalismo não pode solucionar uma crise ecológica que esse próprio sistema criou. A crise atual apresenta a necessidade urgente de mudar o mundo pela base e fazer isso desde a perspectiva anticapitalista e ecologista radical.

Anticapitalismo e justiça climática são dois combates que devem andar estreitamente unidos.


Fonte: Adital

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