sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A seca de 2010 na Amazonia

Foto: © Greenpeace/Rodrigo Baleia

Devido a sua localização geográfica e sua enorme extensão territorial, a bacia Amazônica é fortemente influenciada por dois regimes de chuva diferenciados: a parte norte, sujeita ao deslocamento meridional (norte-sul) da zona de convergência intertropical (ZCIT); a parte sul resultante da convecção organizada associada à Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS) durante os meses de verão. Estas zonas de convergência (ZCIT e ZCAS) representam o encontro de massas de ar de diferentes características determinantes de precipitações sobre extensas áreas, particularmente durante os meses de verão e outono. Estas regiões de convergência podem ser observadas nas imagens de satélite como áreas de grande nebulosidade.

Os regimes de chuva que afetam a Bacia Amazônica apresentam grande amplitude anual: períodos chuvosos e estações secas definidas, porém esses períodos não são os mesmos na parte norte e sul da bacia: o máximo de precipitação na parte sul da bacia ocorre dois meses antes (Decembro-Janeiro-Fevereiro) que o máximo na parte central (Fevereiro-Março-Abril), localizada junto ao curso principal, e seis meses antes do que os meses de máxima precipitação no extremo norte da bacia (Junho-Julho-Agosto), localizada no hemisfério norte sobre o Estado de Roraima. Já o mínimo de precipitação ocorre em Junho-Julho-Agosto na parte central e sul da bacia (ver mais detalhes em Marengo 1992 e Tomasella et al. 2010). Conseqüentemente, desde o ponto de vista hidrológico, a bacia Amazônica é subdividida em três sub-regiões com regimes hidrológicos contrastantes: os tributários do norte, os tributários do sul e a calha principal que recebe a contribuição dos tributários do norte e sul. Esta diferenciação entre os períodos chuvosos ao norte e sul da calha principal determina que o aporte dos tributários ao sul e ao norte ocorra, em anos normais, em tempos diferentes.

Uma das características mais importantes das regiões tropicais são as variações das precipitações em escalas interanuais (de um ano para o outro) e interdecadais (na escalas de décadas), processos muitos estudados na literatura científica (por exemplo, Ronchail et al 2002, Marengo 2004). Estes estudos mostram que a parte norte da bacia é muito afetada pelo aquecimento ou resfriamento anômalo da temperatura da superfície do mar no Pacífico tropical, fenômenos conhecidos respectivamente como El Niño e La Niña. Episódios quentes no Pacifico tropical (El Niño), tendem a provocar déficits de chuva na parte norte e central da bacia (como por exemplo as secas de 1926, 1983 e 1998); episódios frios estão geralmente associados com chuvas em excesso na parte norte da bacia. Entretanto, há eventos extremos na Amazônia que não estão associados com El Niño ou La Niña: a seca de 2005 (Marengo et al.. 2008 a, b, Tomasella et al 2010) mostraram que a parte sul da bacia é afetada por reduções nas chuvas como conseqüência do aquecimento anômalo do Atlântico tropical Norte. Foi esse o principal fenômeno responsável pelas secas de 1963 e 2005.

Qualquer alteração na magnitude o no período de ocorrência da estação chuvosa, seja no norte, seja no sul da bacia, pode exacerbar a subida ou descida dos níveis hidrométricos na calha principal. Por exemplo, no caso da vazante de 1997, relacionada com um evento El Niño, (terceira maior vazante do período 1907-2009), os níveis do rio na calha principal foram afetados pela queda brusca dos níveis dos tributários do Norte; já na vazante de 2005 (sétima maior vazante no período 1903-1999), a descida foi acentuada pelos déficits de vazão nos tributários ao localizados ao sul da calha principal (Tomasella ET AL. 2010).

Uma análise hidro-meteorológica preliminar da seca de 2010: suas causas e consequências

A figura 1 mostra a evolução das anomalias (que são os desvios com relação à normal do período de 1961-1990) da temperatura da superfície do Mar – TSM no Pacifico e Atlântico tropical desde Novembro de 2009 até Outubro de 2010. As áreas em vermelho indicam a ocorrência de temperaturas acima da média; em azul, resfriamento abaixo da média.

Fica claro que durante o período chuvoso da parte norte da bacia, isto é fevereiro a abril, a condição prevalecente no Oceano Pacífico tropical correspondia à fase quente especificamente, um evento El Niño fraco. Ao mesmo tempo o Atlântico tropical norte esteve mais quente que o normal (ate 2⁰ C mais quente que o normal em Março-Maio 2010).

Figura 1: Evolução da Temperatura da Superfície do Mar nos Oceanos Atlântico e Pacífico tropical entre Novembro de 2009 e Outubro de 2010. (Fonte: www.cptec.inpe.br).


A ocorrência do fenômeno El Niño, somado ao aquecimento do Atlântico tropical Norte no início de 2010, trouxe como conseqüência a diminuição das precipitações na parte norte da bacia, afetando as vazões dos tributários do Norte, principalmente o Rio Negro. Por outro lado, a persistência do aquecimento no Atlântico tropical está associada com a ocorrência de fortes estiagens nos tributários da calha sul (Marengo ET AL. 2008), afetando vazões de grandes rios como o Madeira. Convém salientar que o déficit de chuva tem conseqüências diretas sobre o regime hidrológico, não apenas no que tange à magnitude das cheias do período chuvoso, mas também sobre as vazões no período seco pela menor recarga dos aqüíferos.

Esta análise preliminar sugere, portanto, que o fenômeno El Niño, somado ao aquecimento do Atlântico tropical Norte influenciaram desfavoravelmente as cheias e recargas dos tributários da Região Norte durante o período chuvoso de dezembro 2009 ate março 2010. Durante o outono do hemisfério sul, o Atlântico tropical continuou aquecendo em tanto que no Pacífico tropical o fenômeno El Niño foi substituído pela fase fria, o fenômeno La Niña. Esta situação climática durante o verão e outono favoreceu a ocorrência de estiagens severas nos tributários da calha sul do Rio Amazonas ate outubro 2010.

A figura 2 mostra os níveis hidrométricos em duas estações localizadas nos Rios Negro em Barcelos e Madeira em Humaitá, que são os principais tributários da calha norte e sul do Rio Amazonas. Fica claro que os níveis hidrométricos do Rio Negro no período de fevereiro a abril de 2010 ficaram próximo à maior vazante registrada (1980), recuperaram-se entre abril e setembro de 2010, mas tornaram a permanecer muito baixos entre setembro e novembro período que corresponde ao pico de vazante na calha principal.

Já no caso do Rio Madeira em Humaitá, os níveis hidrométricos ficaram muita abaixo das médias históricas durante 2010, atingindo valor mínimo ligeiramente acima dos mínimos históricos registrados em 2005. Esta evolução hidrológica é similar à observada em 2005.

Figura 2: Níveis hidrométricos observados nos postos de Barcelos–Rio Negro e Humaitá – Rio Madeira em 2010. Fonte: CPRM (2010)


Como mencionado a diferenciação entre os períodos chuvosos ao norte e sul da calha principal determina que o aporte dos tributários ao sul e ao norte ocorra, em anos normais, em tempos diferentes (Tomasella ET AL. 2010). O deslocamento nos tempos de contribuição na calha principal dos tributários tem como principal efeito o amortecimento dos picos das cheias e das vazantes do rio. Entretanto, a ocorrência simultânea de picos ou estiagens nos tributários da calha norte e sul do Rio Amazonas provoca a exacerbação de cheias/estiagens no curso principal e aparece normalmente associados aos extremos hidrológicos do Rio Amazonas.

Sendo assim, esta análise preliminar dos dados hidrológicos indica que a vazante de 2010 foi provocada pela superposição de uma estiagem severa nos tributários ao sul da calha principal nos meses de Outubro e Novembro, combinada com níveis hidrométricos muito baixos para esta época do ano nos tributários do norte; ao que se soma uma vazante excepcional da parte Andina da bacia. A combinação de deficiências na vazão de ambas as margens do rio foi responsável pela brusca queda de vazões no curso principal.

Certamente, duas secas (2005 e 2009) e a maior enchente na historia da Amazônia em 2009 mostram que em menos de cinco anos, dois extremos climáticos opostos de grande intensidade afetaram a Amazônia. Comparadas com outros extremos no passado, os impactos parecem ser maiores agora que em outras secas como em 1926 ou 1998, e isso mostra que as populações nas margens dos rios Amazônicos estão mais expostas e são mais vulneráveis no presente que no passado devido ao crescimento urbano ao desenvolvimento econômico. Não é possível afirmar que secas como 2005 ou 2010, ou enchentes como a de 2009 sejam conseqüência direta do aquecimento global ou do desmatamento da Amazônia. Estudos em andamento no INPE estão analisando estes extremos e usando modelos climáticos de grande porte, visando determinar se extremos hidrológicos com os observados recentemente podem se tornar mais freqüente no futuro face às mudanças climáticas globais.

*Javier Tomasella e José Marengo são pesquisadores do Centro de Ciência do Sistema Terrestre CCST – INPE.


Referências

CPRM (2010): monitoramento hidrológico, Boletim 32. Disponível em http://www.cprm.gov.br/rehi/manaus/pdf/alerta32_10.pdf

Marengo JA. 1992. Interannual variability of surface climate in the Amazon basin. International Journal of Climatology 12: 853-863.

Marengo, JA. 2004. Interdecadal variability and trends in rainfall in the Amazon basin. Theoretical And Applied Climatology 78: 79-96.

Marengo JA, Nobre A, Nobre, CA, Tomasella J ; Cardoso M, Oyama M. 2008a. Hydro-climatic and ecological behaviour of the drought of Amazonia in 2005. Philosophical Transactions of the Royal Society of London. Biological Sciences 21: 1-6.

Marengo JA. ; Nobre CA. ; Tomasella J ; Oyama M; Sampaio G. ; Camargo H ; Alves, LM. 2008. The drought of Amazonia in 2005. Journal of Climate 21: 495-516.

Ronchail JG, Cochonneau M, Molinier JL, Guyot AG, de Miranda C, Guimarães V, and de Oliveira E. 2002. Interannual rainfall variability in the Amazon basin and sea-surface temperatures in the equatorial Pacific and tropical Atlantic Oceans, International Journal of Climatology 22: 1663–1686.

TOMASELLA, J. ; BORMA, L. S. ; MARENGO, J. A. ; RODRIGUEZ, D. A. ; CUARTAS, L. A. ; NOBRE, C.A. ; Prado, M.C.R. . The droughts of 1996-97 and 2004-05 in Amazonia: Hydrological response in the river main-stem. Hydrological Processes (Print), 2010.

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