sábado, 15 de janeiro de 2011

O grito da Terra e a linguagem do universo


Quem gosta de Cinema viu ou, ao menos ouviu falar, nos filmes sobre o Dr Dolittle, um cientista que compreendia a linguagem dos animais e se comunicava com eles. O filme clássico dos anos 60 foi refilmado pelo comediante Eddie Murphy que fez duas continuações com o mesmo personagem e o mesmo tema. Há pouco vimos também "Uma noite no Museu", comédia maluca, na qual, cada noite, os animais empalhados e as figuras do museu adquirem vida e a confusão acontece.

É claro que essas histórias podem ser vistas como meras fantasias, mas também podem ser compreendidas como parábolas do mundo atual e da vida. De fato, a Terra, os animais e até os objetos de consumo têm uma mensagem para a humanidade, mas poucos ainda estão conseguindo compreender esta linguagem. O que eu gostaria aqui nesta conversa é dar a vocês algumas dicas não para ninguém aqui se tornar Doutor Dolittle e sair por aí conversando com os animais, mas para que todos procurem captar a mensagem que nos dão a Terra, os animais e os objetos de nosso consumo, principalmente os alimentos.

1 - O Grito da Terra

Que a terra grita é uma expressão bíblica. Nos Andes, os povos indígenas estão convencidos de que quando se derrama sangue humano sobre a terra, esta começa a gritar e a protestar. É preciso acalmar a Terra. Hoje, ela está mais gemendo do que gritando... pelo fato de que o mundo é organizado de forma que mata milhões de pessoas e ainda assassina também toda a vida sobre a Terra. Então, vocês imaginem a dimensão deste grito de dor e de pedido de socorro. Eu moro no Centro oeste. Vocês podem ver no site da ONU a notícia de que, se algo muito urgente e importante não for feito, até o ano 2025, aquela região será deserto... Bem, agora ela já está quase... Nestes dias, a umidade do ar no deserto do Saara era de 11 graus. Houve dias de agosto que no Centro-oeste brasileiro também. Goiânia chegou a 10 graus. Isso não foi um processo natural. Não foi São Pedro quem fez isso. Tem sido as pessoas que provocam queimadas, desmatamento e poluição das águas e do ar. Amanhã, 16 de setembro, é o dia que a ONU consagra à proteção da camada de ozônio que envolve o planeta Terra e é um bom momento para estarmos aqui falando deste assunto.

Toda pessoa lúcida e mais ou menos bem informada sabe que a humanidade caminha para um beco sem saída. Se o atual ritmo de exploração do planeta continuar, em menos de um século não haverá fontes de água ou de energia, não existirão mais reservas de ar puro nem terras para agricultura em quantidade suficiente para a preservação da vida.

Hoje, mesmo com metade da humanidade situada abaixo da linha de pobreza, a população humana já consome 20% a mais do que a Terra consegue renovar. Para não ser injusto com toda a população humana, é preciso dizer que é uma minoria dos seres humanos que consomem de forma desequilibrada...

Enquanto um africano consome em média dois litros de água por dia, um norte-americano médio consome 44. Então, não é justo generalizar e dizer que a humanidade é responsável pela destruição ecológica. Os próprios organismos da ONU têm reconhecido que, ao contrário, os povos indígenas, quando respeitados na sua cultura original, têm sido guardiões da integridade da Terra, da Água e da natureza. As religiões de cultura afro ensinam a venerar cada elemento do universo como sagrado. Quem destrói é quem trata a natureza e tudo o que existe como mera mercadoria e isso é o sistema capitalista, ou para ser mais concreto, as pessoas e grupos que sustentam este sistema e dele vivem e se aproveitam.

Uma pesquisa da Universidade de British Columbia, no Canadá, revelou que, para garantir seu modo de viver em um planeta habitável, os cidadãos dos EUA precisariam ter um território quatro vezes maior do que têm. Conforme este estudo, publicado no Living Planet Report, seriam necessários três planetas e meio para sobreviver ao atual modelo sócio-econômico vigente e o lixo que ele acarreta. Como isso não é possível, nem os americanos poderão continuar com o mesmo modelo de consumo, nem a população mundial poderá adotá-lo.

Vandana Shiva, ecologista e pensadora indiana, escreve: "A Terra, a floresta, os rios, os oceanos, a atmosfera, tudo foi colonizado e já está, de certa forma, poluído. Agora, o capital deve procurar novas colônias para invadir e para explorar para a sua futura acumulação. Não tendo mais como ampliar-se para os espaços externos, a nova fase de colonização aponta na direção do corpo da mulher. Quererá também dominar o patrimônio genético das plantas e animais. Por isso, a resistência à biopirataria é resistência à colonização definitiva da própria vida". "Um desafio grande para o planeta terra é sobreviver ao atual modelo de desenvolvimento social, político e científico que a sociedade ocidental consagrou como sendo o único".

Então, ouvir o grito da Terra é fazer um esforço para tanto no plano pessoal como no nível social libertar-se dos condicionamentos que o sistema capitalista gera e participar do caminho de todos os que querem um novo mundo possível.

2 - O consumo crítico e consciente.

No mundo todo, os movimentos sociais e a sociedade civil internacional intensifica uma grande movimentação por um novo mundo possível e um verdadeiro processo revolucionário começa a se firmar. Entretanto, no cotidiano de nossa vida, uma forma de sermos coerentes com todo este movimento é adotarmos todos padrões de produção e de consumo verdadeiramente mais justos e sustentáveis, ou seja, que não agridam o planeta. Isso significa uma coisa para sociedades e para pessoas. Para países ricos, por exemplo, significa procurar fontes de energia menos poluidoras, diminuir a produção de lixo e reciclar o máximo possível, além de repensar sobre quais produtos e bens são realmente necessários para alcançar o bem-estar. Aos países em desenvolvimento, que têm todo o direito a crescer economicamente, cabe o desafio de não repetir o modelo predatório e buscar alternativas para gerar riquezas sem destruir florestas ou contaminar fontes de água.

Para nós, como pessoas, é um caminho de sobriedade e de cuidado com a vida e um relacionamento mais consciente com cada objeto que usamos e cada alimento que consumimos. O economista francês Serge Latouche propõe à ONU um método que corrija as distorções do atual modelo econômico. Trata-se do caminho dos 6 R: re-avaliar, re-estruturar, re-distribuir, reduzir, re-utilizar e reciclar.

Alguns destes itens dizem respeito ao modelo social e econômico, enquanto outros se referem mais diretamente ao tratamento dos objetos de consumo.

Todos nós temos a experiência de ter uma roupa que nem é a mais bonita ou confortável, mas nós gostamos mais dela porque nos foi dada de presente por alguém que a gente ama ou porque estávamos vestidos com ela quando vivemos situações que gostamos de recordar. As outras pessoas nem sabem, mas para nós aquela roupa tem um valor especial. Mas, em geral, todos os produtos têm uma história. Para que este objeto esteja hoje em minhas mãos, passou pelas mãos de várias pessoas e teve um processo de produção e de comercialização. Ao usar este objeto, eu referendo o processo de produção e de comercialização e consumo. Há dez ou quinze anos, a Nestlé esterilizava mulheres pobres na África e fazia propaganda contra o leite materno em paises miseráveis para obrigar o povo a comprar leite em pó. O italianos, franceses e belgas souberam disso e começaram a fazer campanhas: Não comprem produtos Nestlé... Em um ano, o prejuízo da Nestlé na Europa foi de mais de 20 milhões de dólares. Eles mudaram e atualmente não fazem mais a mesma coisa, ou ao menos, da mesma maneira. Eu gostava muito dos sorvetes da Nestlé. Aprendi a mudar o meu gosto.

Os movimentos pela justiça começaram a denunciar com provas que os tênis Nike são produzidos no Vietnan e Indonésia por milhares de crianças de dez a doze anos, obrigados a trabalhar de 12 a 13 horas por dia e para receber um dólar por semana de trabalho. Usar um tênis desse é votar para que isso continue assim. No ano 2002, quando o presidente Bush tinha começado a guerra contra o Iraque, o papa João Paulo II pediu aos cristãos de fazerem um dia de jejum em comum com os islamitas que terminavam naquele dia o seu mês de ramadan. Ele aconselhava que o dinheiro poupado de duas refeições fosse depositado para ajudar o povo sobrevivente dos combates do Iraque. Havia uma conta especial em um banco de Roma que recebia estas ajudas para o Iraque. Só que um estrategista fez uma pesquisa e descobriu que aquele banco escolhido pelo Vaticano para recolher as ajudas ao povo iraquiano era um dos maiores financiadores das armas que estavam matando o povo iraquiano. Então, sem saber as pessoas depositavam um dinheiro para ajudar o povo vítima da guerra e este dinheiro antes de chegar às mãos do povo que queriam ajudar, primeiramente era utilizado para comprar armas e promover a guerra. O único medo de evitar esta mentira e saber que o dinheiro não será usado de forma desonesta é usar o chamado "Banco Ético".

No Brasil, o Ministério do Trabalho mantém um site no qual ele publica a lista de empresas, em geral, agrícolas que, em todo o Brasil, mantêm trabalhadores em regime de escravidão ou semi-escravidão. Ao agirem assim, estas empresas visam um lucro maior. Se a sociedade fizesse um boicote e se negasse a comprar qualquer coisa que viesse delas, nenhuma empresa faria isso. Hoje, em muitos produtos, existem selos de qualidade. Não conseguimos que haja selos de desonestidade. Não é fácil se dar conta de que há produtos que têm um coração bom ou amigo e outros que, por trás de uma aparência inocente, escondem uma história cruel. É importante a gente sabe em que história entra em qual não pode e não deve entrar.

3. Para ver a alma dos alimentos que consumimos.

Todas as civilizações sempre consideraram o alimento como uma parte da Terra que passa a fazer parte de nós mesmos. O alimento digerido se torna nosso sangue, nossa carne. Por isso, quase todas as religiões desenvolveram preceitos alimentares. A Bíblia fala de "alimentos puros e alimentos impuros". Não que alguma coisa que a natureza produza seja má ou impura em si mesma, mas pelo uso que dela se faz. É claro que no mundo antigo, no calor do deserto e sem contar com refrigerador, comer carne de porco era perigoso. Então, até hoje, judeu e muçulmano não come carne de porco. Para os judeus, o respeito à vida exige muito cuidado no modo de lidar com os animais a serem abatidos para o consumo. As regras são para fazer o animal sofrer o mínimo possível. Até as religiões afro- brasileiras crêem em comidas que são sagradas e outras que são kisila, isto é, ofendem o Orixá. Atualmente, também existem alimentos puros ou sadios e alimentos impuros ou prejudiciais, produzidos de forma inadequada e que ameaçam a integridade da Terra e a saúde da população.

Um empresário de Goiás é proprietário de uma granja de frangos. Uma empregada doméstica da família declarou que ele não permite que na cozinha da sua casa, entre nenhum frango produzido em sua granja. Por que não quer se entupir de hormônios femininos.... Não deveria ser obrigado a comer aquilo que ele desonestamente impõe à população?

O consumo consciente ou sustentável é um conceito que hoje vai além da questão da economia. Toca no problema dos direitos do consumidor, mas o mais importante é que leva o consumidor a se identificar como um protagonista dentro desse amplo contexto social, político e cultural que é o da produção e do consumo. O consumidor tem poder. Pode e deve usá-lo em benefício de uma sociedade mais sustentável. De certa forma, todo mundo é um cidadão consumidor. O consumo consciente e responsável faz a pessoa se tornar um consumidor cidadão.

Você exerce o poder da cidadania quando escolhe alimentos que sejam produzidos dentro de padrões de justiça, de sustentabilidade ecológica e de cuidado com quem vai comer. Como a gente pode sentir-se consumidor cidadão quando consome um produto que contém soja que pode vir de uma destas mega-empresas do Mato Grosso que expulsa índios, lavradores e acaba com todo o cerrado para fazer o que na região o povo chama de "sojeira"?

Cada vez mais, as pessoas começam a se dar conta de que é melhor pagar um pouco mais e ter alimentos orgânicos e sadios, produzidos pela agro-ecologia e por outras formas corretas de agricultura. Percorrer o supermercado e deparar com os alimentos orgânicos deixou de ser uma ocorrência exótica. Eles estão nas mais diversas prateleiras e não se restringem mais às frutas, legumes e verduras. Vão da simples alface da saladinha às carnes, bebidas, sem deixar de lado até produtos industrializados, como açúcar e o achocolatado. Os orgânicos possuem cargas extras principalmente dos minerais. Segundo o Instituto Biodinâmico (IBD), eles apresentam em média, 63% a mais de cálcio; 73% a mais de ferro; 118% a mais de magnésio; 178% a mais de molibdênio; 91% a mais de fósforo; 125% a mais de potássio e 60% a mais de zinco.

Outro estudo, realizado pela Universidade de São Paulo (USP), mostrou que os ovos da galinha caipira, criadas de acordo com os métodos da agropecuária orgânica, possuem cerca de quatro vezes mais vitamina A que os de granja.

4 - Como viver este caminho

O Consumo consciente e responsável não é algo que se improvise ou que se possa viver aqui, enquanto mais adiante fazermos o contrário. Só se pode chamar verdadeiramente consumo cidadão se for uma postura de vida que, como uma árvore, tiver raízes, corpo e frutos.

A raiz mais profunda do consumo responsável é a consciência crítica com relação a esta sociedade e um posicionamento na contra-mão deste sistema. Isso é claro nos conduz a nos unir ao amplo movimento social e político que luta pacificamente para transformar esta sociedade. A grande imprensa tem a opção contrária. Parece que se é coisa de ecologista ou de lavradores sem-terra, eles já consideram que não deve prestar. Nós como famintos e sedentos da justiça, já sabemos que seria melhor errar com estes companheiros que dão a vida pelo que acreditam do que acertar sem eles.

O corpo ou a prática concreta do consumo responsável é o cuidado permanente de converter nossos hábitos de consumo. Não é fácil discernir quando um produto é produzido ecologicamente e quando não é. Existem selos de qualidade que avisam que o produto é orgânico e quando é produzido pela agro-ecologia. Mas, ainda não existe um aviso: este alimento foi amadurecido com produtos químicos que prejudicam a saúde. Este grão foi produzido em fazenda que escraviza lavradores. Temos de nos manter informados e exigir estes selos de qualidade.

Neste setor, somos ajudados por algumas organizações que se consagram a este trabalho de promover e desenvolver o consumo consciente. No Brasil, uma excelente organização não-governamental focada neste conceito é o Instituto Akatu, criado há cinco anos no âmbito do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Seu objetivo é educar e mobilizar a sociedade para o consumo consciente. A palavra "Akatu" vem do tupi e significa, ao mesmo tempo, "semente boa" e "mundo melhor", traduzindo a idéia de que o mundo melhor está contido nas ações de cada indivíduo. O próprio MST e a Via Campesina são organizações que são mestras neste caminho.

O fruto deste esforço será mais saúde para nós e mais vida para o planeta. O que quero frisar aqui é que não se trata só de uma postura social e política. É também uma questão de Mística. É um caminho espiritual que busca reverenciar o mistério de amor que fecunda o universo, queira você chamar de Deus ou não, não apenas em cultos - Jesus citava como palavra de Deus a profecia de Isaías: "Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim" (Mt 15, 8). O coração de Deus está em cada ser do universo que pede nosso cuidado e nosso carinho.

Uma vez, Santo Agostinho estava desenvolvendo um assunto que lhe parecia claro, mas ele não tinha mais argumentos. Ele concluiu com um apelo que me parece justo como conclusão deste assunto de uma espiritualidade do consumo consciente e responsável: "Apontem-me alguém que ame e ele sente o que estou dizendo. Dêem-me alguém que deseje, que caminhe neste deserto, alguém que tenha sede e suspira pela fonte da vida. Mostre-me esta pessoa e ela saberá o que quero dizer" (Sto Agostinho) .


Sábado, 15 de setembro de 2007 - 23h19min

Marcelo Barros

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