quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Nossa Igreja.: Rocordar, resistir e caminhar



Querido Ellacu:

Várias vezes me pergunto que Igreja vocês nos deixaram e como andamos hoje. Possivelmente, o carinho me cegue; porém, creio que aquela Igreja, a de Monsenhor Romero, era uma Igreja salvadorenha, popular, de pobres e mártires. E era uma Igreja cristã, povo de Deus, recordação viva de Jesus e portadora de seu Espírito. História e transcendência caminhavam de mãos dadas.

Rahner havia falado de "inverno eclesial"; porém, com limitações e falhas, certamente, entre nós florescia uma Igreja pujante. "Vocês, uma Igreja tão viva!", dizia Mons. Romero. Recordo-a com agradecimento e com a convicção de que pode nos continuar ajudando.

Sobre isso, quero falar-te, Ellacu. E também comentarei três princípios teológicos sobre os quais costumávamos conversar. Hoje, todavia, me parecem importantes.

Os avatares de nossa Igreja hoje

Nossa Igreja é complexa, Ellacu, e há opiniões distintas sobre o que vai bem e o que vai mal. Dizem que é um tema "delicado"; porém, me parece importante abordá-lo. Com boa vontade, claro, e também com lucidez. Em todo caso, se cometemos erros, outros poderão corrigi-los.

Em primeiro lugar, o positivo. As raízes da Igreja que vocês nos deixaram não secaram e continuam produzindo frutos, não escassos e muito meritórios, muitas vezes, admiráveis. Há comunidades comprometidas e entregadas, verdadeiramente cristãs. Defendem os pobres, trabalham com gangues e enfermos de Aids, apóiam os imigrantes e vítimas da opressão, lutam para que o meio ambiente seja humano, denunciam a mineração exploradora, e, cada vez mais, trabalham seriamente pela juventude. Celebram liturgias com criatividade salvadorenha, não importada, e praticam devoções populares romerizadas: continuam cantando: "los manteles largos y el conqué", de Rutilio. Estudam teologia, também a da libertação, e se familiarizam com a Bíblia. E para compreender as coisas de Deus, também usam a cabeça, o que é muito importante em uma cultura midiática e manipuladora, que não convida a pensar. E assim ficam mais protegidos contra a avalanche de fundamentalismos que abundam. Creio, Ellacu, que vivem na Igreja com maturidade.

Nas comunidades ainda existem acompanhantes, muitas vezes de grande qualidade. Há religiosas, mulheres que entendem bem sobre o cuidado do humano. Não são movidas pela busca do poder, mas pelo serviço. Entregam-se sem nada pedir para si. Sem elas, a Igreja desmoronaria. Em circunstâncias muito distintas as de vocês, certamente, há pastores ciumentos. Recordam a entrega do Padre Rafael Palacios e a bondade e a simplicidade de Frei Cosme Spezotto. Nesses dias, apareceu na TV o Padre Rogelio Ponceele, a quem conheceste e apreciaste. Acompanhou os camponeses em Morazán durante a guerra, e, vinte anos depois, todavia, continua com eles. O faz como sacerdote, e insiste nisso; não para defender-se de inquisidores, mas porque pensa que o melhor que pode fazer pela gente é mantê-los na fé. E repete com frequência: "A fé em Deus dá felicidade a esta gente. Eu também a experimentei. Com Deus sou mais plenamente humano". Tu também falaste dessas mesmas coisas no prólogo à edição italiana do livro sobre ‘Rogelio Ponceele Vida y muerte en Morazán’. Com pouco vento a favor, porém com tenacidade salvadorenha, recordam, resistem e caminham.

Existe fé nas comunidades escondidas de gente pobre, distantes de todo tipo de poder, civil ou eclesiástico. Há pouco, um amigo me dizia com a solenidade própria do carinho: o que salva a nossa Igreja é a fé dos pobres. Assim é, Ellacu. Misteriosamente, nos levam em sua fé. E para evitar maus entendidos, mesmo que em poucas palavras, quero insistir em que esses pobres e essa Igreja de pobres rezam. Esperam e crêem em Deus.

Porém, nem tudo é dessa forma. O cansaço, produzido por um passado muito difícil e o "inverno eclesial", que também chegou até nós, faz com que outros se encaminhem por destinos complicados. Aparecida nos avisa desse perigo, e com palavras bem fortes, certamente. "Nossa maior ameaça ‘é o medíocre pragmatismo da vida cotidiana da Igreja na qual, aparentemente, tudo procede com normalidade, mas, na verdade, a fé vai se desgastando e degenerando em mesquinhez’" (n. 12). É importante analisar esse desgaste. E se é feita com objetividade, somente bem produzirá. A realidade eclesial é distinta segundo os lugares e as dioceses; e não podemos analisá-la detalhadamente. Nos fixaremos nas novidades consideradas em seu conjunto.

Nesses anos, muita gente se viu empurrada a uma religiosidade mais de devoções do que de compromisso. Nela, têm buscado alívio para a dura carga que é a vida; muitos buscam escapar ao norte -e somente com grande respeito podemos questionar essas coisas, nós que temos a vida assegurada. Aparecem novos grupos e movimentos, evangélicos e pentecostais. Entre eles surgem dirigentes de todo tipo, predicadores, pastores, cantores, curadores; porém, dito com respeito, muitas vezes, dão a sensação de caminhar como ovelhas sem pastor. Faltam Romeros, Proaños, Gerardis. Há outros, gente mais sofisticada, que entendem bem o que se pretende com essas novidades: que não volte a prosperar Medellín, nem a Igreja de Monsenhor Romero. E não podem dissimular sua satisfação: "agora vamos bem". Em uma reunião paroquial, uma senhora começou a falar sobre Monsenhor; porém, um clérigo de certo status a impediu de continuar: "viemos para celebrar a liturgia, não para falar sobre Mons. Romero". Às vezes, porém, têm que se calar, por exemplo, quando o papa Bento XVI disse em uma de suas viagens que "não há problemas para canonizar a Monsenhor Romero".

O impacto da Igreja para gerar consciência coletiva no país mudou muito. Não ressoam com clareza palavras como as do profeta de Israel, a de Jesus contra os escribas, fariseus e sumos sacerdotes e as denúncias de poderosos sem consciência -como nas homilias de Monsenhor. Tampouco são publicadas mensagens, cartas sobre temas candentes, preparados em equipe, com consultas prévias às comunidades, tudo o que costumava gerar um sentido de "corpo". Não é que nada se fale; porém, dada a magnitude dos problemas, poderíamos fazer mais.

A religiosidade não desapareceu; pelo contrário: explode em diversas direções. Em conjunto, predomina uma religiosidade que podemos chamar de "o que faz feliz": curas em proveito próprio, desejo compreensível, porém perigoso, que leva a ignorar a exigência do seguimento; inúmeros louvores, às vezes bem organizados, outros em uma linha mais intimista; peregrinações, às vezes a lugares distantes, mistura de devoção e turismo.

Não quero exagerar, Ellacu, porém, sinto que a religiosidade popular de antes era mais vigorosa. E, certamente, para ser Igreja de Jesus havia que pagar um alto preço: tensões e discussões internas, sempre dolorosas; conflitos externos com poderosos e opressores; insultos e perseguições. Agora não. E alguns não dissimulam o alívio: "já passou o vendaval".

Novidade importante é o uso dos meios de comunicação. É evidente que podem ser úteis para a evangelização; porém, tal como funcionam, dá o que pensar. Pode-se cair em uma espécie de ex opere operato mal entendido: "quanto mais meios, melhor", "quanto mais horas de programação, melhor", sem preocupar-se muito com o conteúdo e a qualidade da mensagem, nem da organização e coordenação das milhares de horas de programação do total de emissoras da Igreja. Retransmitem coisas boas em si mesmas e às vezes bem feitas: eucaristias, algumas homilias e palestras sobre teologia; porém, se centram excessivamente em devoções, milagres, aparições, lendas esotéricas. E aparece pouco a realidade, noticias e comentários sobre o que acontece nessa parte da criação de Deus que é nosso país, e que justiça temos que praticar para curá-la. Segundo a Evangelii Nuntiandi, o que dá eficácia à evangelização é o "testemunho". E isso, perdoem-me a obviedade, não o supre nenhum êxito midiático -nem acadêmico, para que sejamos bem entendidos.

Ellacu, não quero ser injusto em coisas tão delicadas; porém, não creio que seja bom silenciar sobre elas. O problema de fundo parece ser o querer substituir uma Igreja "difícil", a do seguimento, a que trabalhava por unificar a luta pela fé e pela justiça, por uma Igreja "fácil", de liturgias e devoções, com obras de misericórdia; porém, sem maiores problemas para promover a justiça. E, assim, crescer em número.

Tampouco nessa Igreja ser cristão é tarefa fácil, evidentemente. Cumprir os mandamentos sempre é tarefa árdua. Não quero, pois, ser simplista. Porém, também é verdade que hoje a Igreja não nos confronta com as loucuras, para expressá-lo de alguma maneira, de Mons. Romero. Mencionemos somente uma, que tu também costumavas recordar em momentos solenes, e perdoem-nos se, ao recordá-la, parece que perdemos o juízo: "Seria triste que em uma pátria onde se está assassinando tão horrorosamente não contássemos entre as vítimas também os sacerdotes. Eles são o testemunho de uma Igreja encarnada nos problemas do povo". Não é verossímil que essas coisas aconteçam agora, porém, é importante recordar essas palavras de Monsenhor porque ilustram aquelas outras de Jesus, que, essas, sim, não podem ser ignoradas: "Quem quiser ganhar sua vida, a perderá. Porém, aquele que a perda pelo evangelho, a ganhará".

Depois do dito, é compreensível que alguns se alegrem de que já passou aquela Igreja. Outros agregam também -a pesar de não dizê-lo de maneira tão seca- o que o grande inquisidor disse a Cristo: "Vai, Senhor, não voltes". Outros, com certa lógica, porém interessadamente, sentenciam: "as coisas mudaram", apesar de estar de acordo com essa lógica, o mesmo deveriam dizer do evangelho de Marcos -e de Jesus de Nazaré.

Sim, têm razão os que nos chamam a atenção sobre as novidades que devemos considerar. Entre outras, a evangelização e a missão, tal como nos pede Aparecida; levar a sério a mulher na Igreja; repensar as relações com outras igrejas e religiões, com evangélicos e pentecostais; a ecologia; cada vez mais, a juventude... Porém, tampouco essas novidades fazem com que a Igreja de Monsenhor seja supérflua. O que temos que fazer, com o tu dizias, é "atualizar suas virtualidades", produzir a "virtude" -força, energia- daquela Igreja para afrontar o novo e atualizar o perene: orar, celebrar a eucaristia, viver com fé, esperança e caridade. Creio que entre nós, todavia, não apareceu nada melhor do que aquela Igreja de Monsenhor, para ser o princípio e fundamento sobre os quais construir a Igreja de hoje.

Assim, vejo os avatares em que estamos, Ellacu. O que eu disse, o mais positivo e o mais negativo não tem porque acontecer sempre em estado quimicamente puro. Às vezes, se misturam. Porém, o importante é "caminhar" como Deus manda. E, para isso, quero recordar alguns "princípios" sobre os quais podíamos conversar. Naquele tempo nos pareceram fundamentais para elaborar uma teologia da Igreja, e penso que, todavia, o são. Vou concentrar-me em três.

1. A centralidade do reino de Deus

É a mudança copernicana que nos tocou viver. No centro está o reino de Deus. Eu havia escrito que "Jesus não predicou sobre si mesmo, nem sequer somente sobre Deus, mas, sim, sobre o reino de Deus". Tu trabalhaste a idéia e em um congresso sobre as três religiões abrahâmicas proferiste uma formulação completa: "O mesmo que Jesus veio anunciar e realizar, isto é, o reino de Deus, é o que deve se constituir em objeto unificador de toda a teologia cristã... A maior realização possível do reino de Deus na história é o que deve ser continuado pelos verdadeiros seguidores de Jesus". Para Jesus, esse reinado de Deus é "um mundo no qual reine a paz com justiça e a solidariedade universal", como repete nosso amigo Xavier Alegre. Vejamos algumas implicações dessa mudança fundamental para o ser e o fazer da Igreja.

Desde o reino, a Igreja sabe o que é o último. Isto é, "Deus" e "os pobres". "O reino pertence unicamente aos pobres", escrevia J. Jeremias. E, em uma linguagem equivalente, "a glória de Deus é que o pobre viva", dizia Mons. Romero. Casaldáliga o formulou com absoluta clareza: "tudo é relativo, menos Deus e a fome". A consequência é que a Igreja deve estar a serviço do reino de Deus e do Deus do reino, superando a recorrente tentação de colocar-se a si mesma no centro.

Deve sintonizar com o Deus do reino, com sua misericórdia: "façamos redenção", em palavras de Santo Inácio na meditação da encarnação e com sua indignação: "ai dos que vendem o pobre por um par de sandálias!" Deve enfrentar e denunciar a idolatria; porém, não como tautologia estéril: não temos que absolutizar nada criado, cuja denúncia não incomoda a ninguém, mas como o que é: dar culto a ídolos, realidades históricas existentes, que dão morte e, por necessidade, exigem vítimas para subsistir. Bem disse Monsenhor, com tua ajuda, na quarta carta pastoral.

Ellacu, em assunto tão grave, como é combater a idolatria, além de proclamações éticas, há déficit. E a razão é que enfrentar os ídolos leva ao conflito, o que se busca evitar, compreensivelmente. E para fazê-lo com boa consciência se ideologiza uma falsa paz, estar bem com todos, inclusive, às vezes, com quem promove o anti-reino.

O reino impulsiona a Igreja à história. Nela deve encarnar-se para propiciar graça: verdade, compaixão, firmeza, libertação e para erradicar pecado: mentira, injustiça, opressão, superando a tentação de espiritualismos e de abandono do histórico. Deve fazê-lo com solidariedade, tornando seus os gozos e esperanças, tristezas e angústias de todos, sobretudo dos pobres e de quantos sofrem. E deve fazê-lo com seriedade. Sem levar a sério o reino de Deus, o pecado se torna trivial e a salvação se torna etérea.

E algo verdadeiramente central é que, com o reino de Deus, se recupera a Jesus de Nazaré, tarefa sempre necessária, pois não temos que dar por certo que sempre o recordamos na Igreja. Quando se esquece o reino, produz-se o esquecimento de Jesus. Com o cuidado e o respeito que devemos ter ao falar dessas coisas, então, parece que vivemos em uma voragem de "cristos", "crianças deus", "divina misericórdia"; de um Cristo, Kyrios onipotente, pantocrator; ou de uma abstração conceitual: "uma pessoa divina que subsiste em duas naturezas". Para isso pode haver legítimo lugar na teologia e na piedade. Porém, na vida real, por trás de tudo isso pode e costuma desaparecer Jesus de Nazaré. É tarefa de sempre trabalhar para que reapareça aquele "Jesus histórico" que ensinamos, Ellacu, e que hoje o torna a oferecer, como precioso presente, o livro de Pagola.

Em segundo lugar, em relação ao serviço do reino, se entende melhor quem é Jesus de Nazaré e o que a Igreja deve fazer em seu seguimento: passar fazendo o bem, anunciar boas notícias aos pobres e devolver a dignidade aos desprezados; confortar os débeis e curar os enfermos; dizer sempre a verdade, a que vem de Deus, para consolar a oprimidos e apontar a opressores; falar com autoridade sem dogmatismo, ensinar com clareza sem doutrinação, exigir com radicalidade sem submissão; resistir até o final, com altos e baixos de medo e esperança. E de Jesus de Nazaré cada vez me impacta como respeitava e valorizava a liberdade e a razão dos seres humanos.

Por último, com Jesus, a Igreja pode entender melhor a realidade e o destino dos povos crucificados. Preso à noite e à traição, acusado falsamente, insultado, torturado e abandonado, morreu em uma cruz não por erro e nem por acaso -e não temos que esquecer a imensa delicadeza que teve ao despedir-se de seus amigos com uma ceia. Tudo isso para introduzir-se, livremente, no conflito fundamental da história: a favor dos oprimidos e contra os opressores.

Ellacu, hoje não se fala muito desse Jesus na cruz, nem dos conflitos históricos que continuam levando à cruz inúmeros seres humanos. Nem sequer Aparecida, com tantas coisas bem ditas -a necessidade de "recomeçar desde Cristo" para que a Igreja siga o proceder de Jesus, diz belamente no N. 41- e com sinceros impulsos para atuar como Jesus, se pergunta por que o mataram. Tu, sim, o fizeste em um escrito fundamental: "Por que morre Jesus e por que o matam". Perguntaste por dois motivos. O primeiro, por fidelidade ao mistério de Deus, presente, silente e acolhedor na cruz. E o segundo, para não ser cegos diante da crueldade deste mundo. Ninguém na Igreja deveria esquecê-lo e nem fugir do conflito.

1. Igreja "maternal" antes que "magisterial"

Ouvi quando comentavas a Mater et Magistra, de João XXIII. Naquele tempo, era uma maneira de defender a ortopráxis diante de ortodoxias imperantes, inclusive de dar-lhe prioridade. Porém, tua reflexão ia além. Referia-se ao que a Igreja é em essência. É antes de tudo, mãe, parteira de vida. Sua essência é gerar, de forma visível e palpável, bondade, amor, misericórdia, fraternidade, justiça, reconciliação, solidariedade. É propiciar estruturas que, por sua natureza, dêem vida às maiorias, e enfrentar-se com as que a impedem ou a anulam. Hoje, insistimos no "cuidado" -coisa tão maternal- também da natureza. E na ternura.

Atualmente, temos que fazer uma advertência: que, por ser mãe, a Igreja não infantilize seus filhos, não pense por eles, não os superproteja e decida por eles, de modo que nunca cheguem a ser adultos na Igreja. Ambos perigos são claros em muitas pastorais e liturgias, porém são tolerados, pois qualquer coisa parece ser boa, desde que não convirja para comunidades de base e teologias de libertação.

E temos que fazer também uma petição, com delicadeza. É bom, como fez o Concílio, colocar a Igreja em relação a Maria de Nazaré, a mãe de Jesus. Porém, com cuidado. É bom apresentar a Maria com os apóstolos no cenáculo depois da ressurreição; porém, temos que começar desde o princípio e voltar ao reino de Deus. A sua disponibilidade diante de Deus na anunciação vem unida a uma esperança: que Deus ponha nosso mundo de cabeça para baixo, eleve os humildes e derrube os poderosos -que os multimilionários passem fome alguma vez, para ver se isso os comove e os converte. Esse é o reino de Deus que, como Maria, a Igreja deve buscar e construir. E também deve manter centralmente a fidelidade de Maria até o final: a mãe ao pé da cruz. É a imagem de onde a Igreja atualmente deve estar e que o deve fazer diante de um povo crucificado. "Were you there when they crucified my Lord?", cantavam os negros escravos do norte.

Historicizar assim a Maria de Nazaré é o melhor antídoto contra o perigo recorrente de desencarná-la com um excesso de aparições e devoções, às vezes, além de toda razão. Então, já não é a mulher e mãe Maria, a de Nazaré e a do Gólgota, lugar da caveira, a poucas léguas de Jerusalém. Dessa forma, Maria de Nazaré, tal como seu filho Jesus, desaparece.

A Igreja também é mestra. Como tu não irias valorizar isso, Ellacu, convencido da importância do saber e de comunicar saber? Porém, de novo, uma advertência: que a Igreja não faça da ortodoxia o central nem a use como forma de doutrinar. E o que é mais perigoso: que não se considere dona da verdade. Quando isso acontece, a Igreja fica definida, uma vez mais, a partir do poder. Se, ao contrário, é mestra mystagógica, não impositiva, e ensinando não somente por palavra mas com o exemplo, então, também gera vida enquanto mestra.

3. a Igreja dos pobres

Ellacu, falaste da Igreja dos pobres com criatividade e originalidade, sem reduzir a novidade de Medellín à "opção pelos pobres". A verdadeira Igreja "é" uma Igreja dos pobres, não somente "para eles". João XXIII o proclamou e perguntaste o que dela havia permanecido no concílio. Não muito, é a verdade. O Cardeal Lercaro insistiu nisso com clarividência e paixão. E de Monsenhor Himmer, bispo de Tournai, citavas esta frase lapidar: primus locus in Ecclesia pauperibus reservandus est (temos que reservar aos pobres o primeiro posto na Igreja).

E essa Igreja é a mais verdadeira, se me permite falar assim, por uma razão teologal, a qual tampouco se costuma dar a devida importância. Escreveste: "a união de Deus com os homens, tal como se dá em Jesus Cristo, é historicamente uma união de um Deus ‘inserido’ / ‘esvaziado’ em sua versão primária ao mundo dos pobres". Temos que explicar bem isso; porém, creio que queres dizer que a Igreja será verdadeira presença de Deus se está feita do que Deus elegeu para tornar-se, Ele, presente entre nós. Com nada se pode diluir a centralidade da "Igreja dos pobres".

Sobre essa Igreja escreveste, em 1979, e a ela voltaste em teu último escrito, em 1989. Assim termina o texto: "a Igreja dos pobres se constitui no novo céu, que se necessita para superar a civilização da riqueza e construir a civilização da pobreza, nova terra, na qual habite, como em um lugar acolhedor e não degradado, o homem novo". Igreja dos pobres e civilização da pobreza foram tua utopia, que formulaste desde a fé e desde a história. Ellacu, ambas coisas ficaram esquecidas, e é urgente voltar a elas. Porém, agora, mesmo que brevemente, quero mencionar duas notícias de pobres e ricos que nos preocupam.

Acabam de nos dizer que, atualmente, 923 milhões de seres humanos passam fome e desnutrição em todo o mundo. São 75 milhões a mais do que no ano passado, apesar de que o mundo é mais rico do que nunca e que as colheitas de 2007 bateram recordes. Por detrás do incremento no número de pobres, está a subida do preço dos alimentos entre 2007 e 2008, em 52% em média. Alguns produtos básicos, como o arroz, sofreram um incremento de mais de 200%. E a essa tragédia se junta o que o escritor José Saramago chama de "crime (financeiro) contra a humanidade": o cataclismo financeiro, produto do egoísmo e com total impunidade. Pago pelos pobres. Diante disso, é bom ensinar a doutrina social da Igreja; porém, não basta. Faz-se necessária uma profecia estrondosa. A Igreja dos pobres deve fazer ambas coisas. E, sobretudo, deve fazer a segunda.

E uma última coisa. Jesus nos disse que o reino de Deus é dos que são como as crianças, e que não devemos seguir o exemplo dos que governam este mundo, os grandes. Também na Igreja temos que ser pequenos e servidores; porém, isso continua sendo um grande problema. Dito com simplicidade, à Igreja custa-lhe deixar de estar acima e costuma aferrar-se à sua dimensão hierárquica. É o que dizem nossos amigos jesuítas de Cristianisme i Justícia, em Barcelona. Acabam de publicar um caderno sobre como está a Igreja, e recordando a Rosmini, mencionam "as novas ‘cinco chagas’ da Igreja". A primeira, a principal, é não ser Igreja dos pobres e esquecer-se deles; porém, também mencionam o excesso de hierarquia, de poder institucional e de centralismo romano. E chamam a atenção para o fato de que, diante das críticas, a Igreja reage à defensiva, "sem parar nem um minuto para perguntar-se se terá feito algo mal". Esse é um sério problema eclesial. Torna difícil a solidariedade no interior da Igreja: ser "povo de Deus", todos com a mesma dignidade.

Entre nós, também existem problemas na Igreja. Menciono um que me parece importante: creio que existe excessiva prudência e minguada liberdade, como se o povo de Deus tivesse medo de deixar ouvir sua palavra. As reuniões de gente de Igreja não se parecem com as de antes, com diálogo, discussões e decisões a serem postas em prática, como corpo. Evidentemente, aqui, sim, temos que dizer que eram outros tempos: que fazer após o assassinato de Rutilio e do Chino Navarro? Tampouco se pode esperar que aconteçam semanas de pastoral que se pareçam com as que aconteceram nos anos setenta. Porém, sim, que aconteça algo de parresia, como a de Paulo.

Nossos irmãos de Barcelona, ao terminar suas reflexões, dizem que "teria sido mais cômodo e menos perigoso fechar os olhos e dedicar-nos a uma vida mais tranqüila"; porém, preferiram falar, com respeito, com ânimo de diálogo, sem pretender ter toda a verdade. E terminam "testemunhando abertamente nosso amor à Igreja". Nos somamos a tudo isso, pois isto somente pode ajudar. Por certo, o livro de Rosmini, de 1832, foi colocado no ‘Índice’. Em novembro de 2007, o autor foi beatificado. Um bom sinal...

Ellacu, isto é o que eu queria contar-se. Em meio. Em meio às venturas, a graça de mártires e pobres com esperança, e às desventuras, nossa pequenez e pecados, recordamos, resistimos e caminhamos. E meu desejo é que os "princípios" que recordei: o reino, a maternalidade e a Igreja dos pobres nos ajudem a manter -o retomar- o rumo salvadorenho e romeriano do caminhar da Igreja.


Jon Sobrino
31 de outubro de 2008

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