A vida é o grande dom que recebemos. E que temos a responsabilidade de defender, em todas as suas dimensões. Reduzi-la, limitá-la ou -pior ainda- instrumentalizá-la, como foi feito na recente campanha presidencial, é injustificável.
Porque a vida é marcada pela plenitude. Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância. (João, 10,10).
No caso do ser humano, o processo da vida assume fases diferenciadas. Nas condições atuais do debate, não se sabe, exatamente, em que momento se pode falar da existência de uma pessoa: a partir da concepção? No momento da formação do córtex cerebral? Ou só no nascimento, ao romper-se a dependência materna? Esta é uma questão em aberto, não só entre os cientistas, mas também entre filósofos e teólogos, inclusive católicos. O critério adotado, naturalmente, condiciona as possíveis opções éticas.
Já em relação ao término da vida humana, estabeleceu-se o consenso: este se dá no momento da morte cerebral, mesmo que o coração ainda esteja vivo, possibilitando, assim, seu transplante. Isto coloca uma questão: porque não utilizar o mesmo critério para estabelecer seu início?
Dentro deste quadro, abrangendo todas as fases da existência humana, é que se coloca a responsabilidade de proteger a vida na sua integralidade. Esta não pode reduzir-se apenas à fase inicial, seja ela a do zigoto, do embrião ou do feto (sem esquecer que os três termos não são sinônimos!). Inclui não só o período anterior, mas também o posterior ao nascimento, garantindo ao ser humano condições de vida dignas, ao longo de toda a existência.
Tal responsabilidade tampouco pode limitar-se a defender, a priori, apenas alguns seres, em detrimento dos demais. Assim, não se pode reduzir a proteger prioritária e exclusivamente a vida do zigoto, do embrião ou do feto, sem levar em conta a vida das pessoas que o circundam, particularmente a vida da mulher que o nutre e abriga. Pode até acontecer, em situações limite, que o direito à vida dos primeiros entre em conflito com o direito à vida da mãe. Conflitos de direitos, aliás, podem dar-se também em casos de legítima defesa ou de guerra. A solução para tais conflitos, que acontecem em situações extremas, implica, na maioria das vezes, na eliminação de uma -ou mais- vidas.
No caso de uma possível interrupção do processo de gravidez, evidentemente, impõe-se uma análise lúcida e cuidadosa do contexto em que se dá. Os exemplos podem se multiplicar: além dos dois casos previstos pela legislação brasileira - risco de vida da mãe e estupro - pode haver outras situações extremas, em que, por sérias razões de situação econômica ou de saúde, a mulher se veja forçada -ninguém o faz por gosto!- a interromper a gestação. Nestes casos, o dilema não se resolve invocando um princípio unívoco e abstrato, mas exige uma decisão consciente e responsável, que leva em conta os direitos em conflito e que respeita a liberdade de consciência.
E aqui, é preciso lembrar que a responsabilidade de proteger a vida, embora tenha um caráter universal e amplo, deveria privilegiar particularmente os que são mais pobres e desvalidos. Entre estes, encontram-se justamente os milhares de mulheres -sobretudo as adolescentes- que, por falta de (in) formação e/ou de acesso à contracepção, não conseguem exercer a "maternidade responsável" ou o direito reprodutivo básico de ter -ou não ter- os filhos que quiserem; diante de uma gravidez indesejada, não encontram melhor solução senão interromper este processo. Entretanto, só podem fazê-lo de forma clandestina, e, no caso das mais pobres, nas piores condições médicas, pondo em risco a própria vida. Será possível considerá-las criminosas, merecedoras de prisão?
Aqui também, proteger a vida tem um sentido amplo: significa não só dar-lhes previamente educação sexual adequada e acesso aos serviços de saúde, (particularmente acesso à contracepção e à atenção pré-natal) mas também oferecer-lhes alternativas possíveis e, em casos extremos, respeitar sua livre escolha e garantir-lhes a possibilidade de interromper a gravidez de forma segura, sem que necessitem arriscar a própria vida e sem que sejam por isto criminalizadas.
É nesta perspectiva que a descriminalização do aborto pode ser entendida inclusive como uma forma de proteger a vida, na medida em que eliminaria muitos riscos e atentados à saúde, inerentes ao aborto clandestino. Além disso, fecharia clínicas que, aproveitando-se da clandestinidade, transformam-se em verdadeiras "indústrias do aborto".
O desafio atual é descobrir, na concretude do cotidiano, os aspectos diversos de que se reveste a defesa da vida, desafio que se coloca para todos e todas que querem viver o dom da vida em plenitude.
Lucia Ribeiro
Rio de Janeiro, 6 dezembro 2010.
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