quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

COP 16 - Tudo errado em Cancún

Fora as cerca de 9.000 pessoas que circulam como formigas pelo resort Moon Palace, em Cancún (México), ninguém mais está prestando muita atenção ao que se passa por aqui. Deveriam.





Primeiro, porque é a qualidade do futuro da vida na Terra que se discute nesta 16a. Conferência das Partes (COP-16) da Convenção da ONU sobre Mudança do Clima. Segundo, porque está tudo errado nessa discussão.




(A começar, claro, pelo lugar: Cancún é uma gigantesca infra-estrutura hoteleira alienígena aterrissada sobre um ambiente frágil de restinga, mangues e lagunas, que passará um mau bocado com a elevação do nível do mar e o possível aumento da força e do número de furacões.)




O objetivo perseguido desde 1992 são acordos internacionais com força de lei para reduzir a produção de gases do efeito estufa (GEE, para encurtar) ou retirar da atmosfera parte do que se lança nela (sequestro de carbono). O ideal seria cortar emissões o bastante --pelo menos 25% até 2020, melhor ainda 40%-- para conter o aquecimento global já "contratado" abaixo de 2ºC, limiar considerado mais ou menos seguro.




Não vai acontecer em Cancún. É pouco provável que aconteça na COP-17, em Durban (África do Sul). Talvez jamais aconteça.

O culpado de plantão em Cancún são os Estados Unidos, como acontece desde 1997. Embora tenham ajudado a pôr o Protocolo de Kyoto em pé, quando Al Gore ainda vice-presidente, nunca ratificaram o tratado em seu Congresso.

Como os EUA fazem par com a China como maiores poluidores do clima, ambos sem metas de redução obrigatórias, obrigam a que as negociações do clima sejam partidas em dois trilhos, o do protocolo e o outro. Uma complicação dos diabos.

Para piorar, o Japão trouxe um bode preto para dentro dos salões gelados do "Mundo da Lua", apelido óbvio pregado ao resort, onde não se economizam emissões de ar condicionado. O primeiro período do Protocolo de Kyoto termina em 2012, e a expectativa era que os países-membros se comprometessem com um segundo período, mesmo que EUA e China demorem para equilibrar-se no outro trilho. Os japoneses já chegaram dizendo que não topam.

O presidente da nação anfitriã, Felipe Calderón, põe suas fichas para proteger a reputação de Cancún num acordo sobre florestas. Melhor dizendo, num esquema que permita remunerar sua utilização --por meio de redução de desmatamento, restauração de áreas derrubadas e reflorestamento-- para sequestro de carbono. Na nomenclatura siglária da COP-16, isso se chama Redd.

Árvores usam dióxido de carbono (CO2) para fazer fotossíntese e produzir as substâncias que compõem folhas, madeira e raízes. O carbono fixado nelas não contribui para encorpar os gases que retêm radiação do Sol na atmosfera, aquecendo-a (efeito estufa). Faz sentido pagar quem se dispuser a não cortá-las, plantar novas ou contribuir para que áreas desvastadas se regenerem.

A Bolívia, neste caso, perfilou-se como o principal desmancha-prazeres. Talvez mais por ânsia de protagonismo, ou por vício ideológico, questiona a "comodificação" das florestas. Quer dizer, sua redução a valores comercializáveis (créditos de carbono), com a perda de usos e valores tradicionais.

Não é uma ideia maluca. Se um dia existir um mercado mundial de grande porte para créditos de carbono, pode-se imaginar que populações indígenas e tradicionais terminem alijadas da floresta por um processo parecido com a especulação imobiliária que acabou com os caiçaras do litoral paulista. Mas há quem diga que os bolivianos tentam melar o jogo porque estão detonando suas próprias florestas.

O papel desempenhado pelo Brasil é mais difícil de compreender.

O país está no topo da lista de países com bom desempenho ambiental, graças à redução do desmatamento e à energia de fontes renováveis (hidrelétricas e biocombustíveis). Tem um corpo diplomático profissional e com bom retrospecto de contribuições para fazer a política do clima andar, como mais uma vez o demonstra em Cancún. Aí o presidente Lula, que poderia vir e ajudar a pressionar o pessoal de Evo Morales, não só não aparece como ainda diz que Cancún não vai dar em nada.

Num sistema de negociação multilateral, como o da ONU, tudo tem de se decidir por consenso. Qualquer país, assim, ganha direito de veto. Uma coisa é conter os gases que afetam a camada de ozônio, como fez o Protocolo de Montreal, afetando uns poucos setores industriais. Outra, bem mais complicada, é por-se de acordo sobre como desmantelar o complexo geopolítico-industrial que moldou os séculos 19 e 20, ancorado nos combustíveis fósseis (carvão, depois petróleo e gás natural).

Cancún talvez fique conhecida como o lugar e a hora em que a negociação multilateral esgotou sua capacidade de produzir acordos e soluções para a mudança do clima e se desmembrou em muito mais que dois trilhos. Não é fácil resolver um monte de questões intricadas --transferência de dinheiro e tecnologia entre países ricos e pobres, florestas, verificações que não comprometam soberania-- com 194 nações à mesa, e a ainda por cima com a responsabilidade de "salvar o planeta".

Aliás, esse parece ser o impedimento central na matéria: a noção de que a ciência indicou que um desastre vai acontecer com data marcada e que se conhece o remédio exato para preveni-la. Quem acompanha a ciência do aquecimento global sabe que isso não existe. Incerteza e complexidade são sua marca. O limite de 2ºC é só uma recomendação cautelosa, não um limiar mágico que, transposto, deslanchará o Armagedom.

Mesmo que o mundo consiga cortar em 40% as emissões até 2020, não há garantia de que Cancún sobreviverá sem danos --nem Maldivas, Tuvalu, Seychelles, Tonga... Ou então que, ultrapassado esse limite, como deverá ser o caso, a humanidade consiga adaptar-se e passe bem pela provação. Só é improvável.

Chegou a hora de concentrar-se menos no que é improvável acontecer e dedicar-se mais ao que é possível fazer: melhorar a qualidade do futuro da vida na Terra, pondo o catastrofismo e o salvacionismo de lado.

Marcelo Leite viajou a Cancún a convite do Cifor (Centro Internacional de Pesquisa em Florestas)

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