
Primeiro, porque é a qualidade do futuro da vida na Terra que se discute nesta 16a. Conferência das Partes (COP-16) da Convenção da ONU sobre Mudança do Clima. Segundo, porque está tudo errado nessa discussão.

(A começar, claro, pelo lugar: Cancún é uma gigantesca infra-estrutura hoteleira alienígena aterrissada sobre um ambiente frágil de restinga, mangues e lagunas, que passará um mau bocado com a elevação do nível do mar e o possível aumento da força e do número de furacões.)

O objetivo perseguido desde 1992 são acordos internacionais com força de lei para reduzir a produção de gases do efeito estufa (GEE, para encurtar) ou retirar da atmosfera parte do que se lança nela (sequestro de carbono). O ideal seria cortar emissões o bastante --pelo menos 25% até 2020, melhor ainda 40%-- para conter o aquecimento global já "contratado" abaixo de 2ºC, limiar considerado mais ou menos seguro.

Não vai acontecer em Cancún. É pouco provável que aconteça na COP-17, em Durban (África do Sul). Talvez jamais aconteça.
O culpado de plantão em Cancún são os Estados Unidos, como acontece desde 1997. Embora tenham ajudado a pôr o Protocolo de Kyoto em pé, quando Al Gore ainda vice-presidente, nunca ratificaram o tratado em seu Congresso.
Como os EUA fazem par com a China como maiores poluidores do clima, ambos sem metas de redução obrigatórias, obrigam a que as negociações do clima sejam partidas em dois trilhos, o do protocolo e o outro. Uma complicação dos diabos.
Para piorar, o Japão trouxe um bode preto para dentro dos salões gelados do "Mundo da Lua", apelido óbvio pregado ao resort, onde não se economizam emissões de ar condicionado. O primeiro período do Protocolo de Kyoto termina em 2012, e a expectativa era que os países-membros se comprometessem com um segundo período, mesmo que EUA e China demorem para equilibrar-se no outro trilho. Os japoneses já chegaram dizendo que não topam.
O presidente da nação anfitriã, Felipe Calderón, põe suas fichas para proteger a reputação de Cancún num acordo sobre florestas. Melhor dizendo, num esquema que permita remunerar sua utilização --por meio de redução de desmatamento, restauração de áreas derrubadas e reflorestamento-- para sequestro de carbono. Na nomenclatura siglária da COP-16, isso se chama Redd.
Árvores usam dióxido de carbono (CO2) para fazer fotossíntese e produzir as substâncias que compõem folhas, madeira e raízes. O carbono fixado nelas não contribui para encorpar os gases que retêm radiação do Sol na atmosfera, aquecendo-a (efeito estufa). Faz sentido pagar quem se dispuser a não cortá-las, plantar novas ou contribuir para que áreas desvastadas se regenerem.
A Bolívia, neste caso, perfilou-se como o principal desmancha-prazeres. Talvez mais por ânsia de protagonismo, ou por vício ideológico, questiona a "comodificação" das florestas. Quer dizer, sua redução a valores comercializáveis (créditos de carbono), com a perda de usos e valores tradicionais.
Não é uma ideia maluca. Se um dia existir um mercado mundial de grande porte para créditos de carbono, pode-se imaginar que populações indígenas e tradicionais terminem alijadas da floresta por um processo parecido com a especulação imobiliária que acabou com os caiçaras do litoral paulista. Mas há quem diga que os bolivianos tentam melar o jogo porque estão detonando suas próprias florestas.
O papel desempenhado pelo Brasil é mais difícil de compreender.
O país está no topo da lista de países com bom desempenho ambiental, graças à redução do desmatamento e à energia de fontes renováveis (hidrelétricas e biocombustíveis). Tem um corpo diplomático profissional e com bom retrospecto de contribuições para fazer a política do clima andar, como mais uma vez o demonstra em Cancún. Aí o presidente Lula, que poderia vir e ajudar a pressionar o pessoal de Evo Morales, não só não aparece como ainda diz que Cancún não vai dar em nada.
Num sistema de negociação multilateral, como o da ONU, tudo tem de se decidir por consenso. Qualquer país, assim, ganha direito de veto. Uma coisa é conter os gases que afetam a camada de ozônio, como fez o Protocolo de Montreal, afetando uns poucos setores industriais. Outra, bem mais complicada, é por-se de acordo sobre como desmantelar o complexo geopolítico-industrial que moldou os séculos 19 e 20, ancorado nos combustíveis fósseis (carvão, depois petróleo e gás natural).
Cancún talvez fique conhecida como o lugar e a hora em que a negociação multilateral esgotou sua capacidade de produzir acordos e soluções para a mudança do clima e se desmembrou em muito mais que dois trilhos. Não é fácil resolver um monte de questões intricadas --transferência de dinheiro e tecnologia entre países ricos e pobres, florestas, verificações que não comprometam soberania-- com 194 nações à mesa, e a ainda por cima com a responsabilidade de "salvar o planeta".
Aliás, esse parece ser o impedimento central na matéria: a noção de que a ciência indicou que um desastre vai acontecer com data marcada e que se conhece o remédio exato para preveni-la. Quem acompanha a ciência do aquecimento global sabe que isso não existe. Incerteza e complexidade são sua marca. O limite de 2ºC é só uma recomendação cautelosa, não um limiar mágico que, transposto, deslanchará o Armagedom.
Mesmo que o mundo consiga cortar em 40% as emissões até 2020, não há garantia de que Cancún sobreviverá sem danos --nem Maldivas, Tuvalu, Seychelles, Tonga... Ou então que, ultrapassado esse limite, como deverá ser o caso, a humanidade consiga adaptar-se e passe bem pela provação. Só é improvável.
Chegou a hora de concentrar-se menos no que é improvável acontecer e dedicar-se mais ao que é possível fazer: melhorar a qualidade do futuro da vida na Terra, pondo o catastrofismo e o salvacionismo de lado.
Marcelo Leite viajou a Cancún a convite do Cifor (Centro Internacional de Pesquisa em Florestas)

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