terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Os mártires da UCA. Exigência e graça

Artigo de Jon Sobrino


No dia 05-11-2009, na Universidade de Santa Clara, na Califórnia, EUA, Jon Sobrino, teólogo jesuíta, professor da Universidade Centro-Americana "Simeón Cañas", proferiu discurso que foi publicado por Eclesalia.

Eis o discurso.

Há vinte anos assassinaram aos meus irmãos jesuítas da Universidade Centroamericana (UCA), a Julia Elba e Celina. Eu estava na Tailândia e, regressando a El Salvador, tinha que passar por São Francisco (EUA). No aeroporto me esperavam, com rostos impávidos, Steve Prevett e Peggy O’Grady.

Nas ruas de São Francisco, com um megafone na mão, Paul Locatelli condenava os assassinatos e Tessa Rouverol o acompanhava. Trouxeram-me para a Universidade de Santa Clara.

A comunidade me acolheu como a um irmão e nela passei várias semanas. Ao chegar, encontrei oito cruzes plantadas em frente à Igreja. E quando um desalmado as arrancou, Paul Locatelli, imediatamente, as recolocou. Nunca esquecerei isso. Por isso, agora sinto-me como quem "volta para casa".

Quero falar-lhes sobre esses mártires com agradecimento pelo que foram e fizeram; porém, também com a convicção de que é vital mantê-los vivos e de que seria fatal deixá-los morrer. Os mártires, eles e elas, nos confrontam com nós mesmos sem escapatória; iluminam as realidades mais profundas de nosso mundo e o que devemos fazer com ele.

Temos que enfrentar os ídolos que exigem vítimas no ‘Terceiro Mundo’, apesar de que suas raízes mais profundas estão no ‘Primeiro Mundo’ e temos que trabalhar para reverter a história e, assim, salvar uma civilização que está gravemente enferma, como dizia Ignacio Ellacuría, a um mundo em transe de morte, como diz Jean Ziegler.

Para os cristãos, os mártires nos assinalam, acima de tudo e sem temor de equivocar-nos, o caminho a seguir. São os que mais nos empurram para o seguimento de Jesus e melhor nos introduzem no mistério de seu Deus.

No mundo que denominamos ‘de abundância’, a palavra "mártir" produz estranheza; inclusive, repulsão. Porém, entre nós - e aqui aparece o paradoxo cristão - também produz luz, ânimo e agradecimento. Por isso não deveríamos permitir que a palavra "mártir" perda seu vigor. Deve manter-se como referente cristão e social insubstituível para humanizar este mundo. Exatamente como a luz de Jesus. Por essa razão, falarei agora sobre os oito mártires da UCA.

Para contextualizar, não somente no aspecto acadêmico, mas também no humano, começo recordando qual foi a reação de duas pessoas bem conhecidas ante suas mortes. Um, o Padre Arrupe. Quando os mataram, estava acamado, praticamente sem poder pronunciar palavra nem comunicar-se. Conta o enfermeiro que ao dar-lhe a notícia, "o Padre Arrupe começou a chorar". Era tudo o que podia fazer; porém, no pranto o Pe. Arrupe ofereceu-se por inteiro. O outro, Noam Chomsky. Ao cumprir 80 anos, em março de 2009, um jornalista perguntou-lhe o que lhe dava forças para continuar na luta. "Imagens como essa", respondeu. E apontou um quadro no qual aparece o Arcebispo Romero e os seis jesuítas da UCA.

Esses seres humanos tocam as fibras mais profundas de qualquer pessoa honrada. São uma referência vivificante. Certamente, os seis jesuítas e também Julia Elba e Celina, nos deixam sem palavras; nelas se faz presente o mysterium iniquitatis.

1. Quem foram

A injustiça da morte de pessoas inocentes de maneiras distintas. Mata pessoas como Dom Oscar Romero e Martin Luther King. E lenta ou violentamente, mata a grandes maiorias, aos camponeses de El Mozote, em El Salvador; antigamente, aos escravos das plantações de algodão.

Os jesuítas da UCA, mártires jesuânicos

Comecemos com os seis jesuítas. Depois da Conferência de Medellín, 1968, tocados pelo sofrimento do povo, "converteram-se". Aceitaram que ser jesuíta é "lutar", não somente trabalhar. "Lutar pela fé" e, mais surpreendente ainda, "lutar pela justiça". A realidade exigia e assim está registrado no documento da CG XXXII (D 2.2). Sua morte confirmou o que a própria congregação havia previsto lucidamente: "Não trabalharemos na promoção da justiça sem que paguemos um preço" (D 4.46).

Os mártires da UCA o fizeram, cada um segundo seus talentos, e é bom recordar isso para que todos possamos nos sentir questionados e animados. Permitam-me detalhar. Ellacuría, 59 anos, filósofo e teólogo, reitor. Repensou a Universidade desde e para os povos crucificados. Pôs todo seu peso para combater a opressão e a repressão e para conseguir uma paz negociada. Segundo Montes, 56 anos, sociólogo, fundador do Instituto de Direitos Humanos. Concentrou-se no drama dos refugiados dentro do próprio país e, sobretudo, dos que tinham que abandoná-lo, os emigrantes, que, naquele tempo, fugiam da violenta repressão e, agora, da fome e da falta de trabalho. Os visitava nos campos de refugiados, em Honduras. Ignacio Martín-Baró, 44 anos, psicólogo social, pioneiro da psicologia da libertação, fundador do Instituto de Opinião Pública da UCA, para facilitar que se conhecesse a verdade e dificultar que esta fosse oprimida pela injustiça. A cada fim de semana visitava comunidades suburbanas e camponesas para celebrar a Eucaristia. Juan Ramón Moreno, 56 anos, professor de teologia, mestre de noviços e mestre do espírito, acompanhante de comunidades religiosas. Na Nicarágua, participou na Campanha de Alfabetização. Amando López, 53 anos, professor de teologia, antigo reitor do Seminário de San Salvador e da UCA de Manágua. Em ambos os países, defendeu os perseguidos por regimes criminosos, às vezes escondendo-os em seu próprio quarto. Por último, Joaquín López y López, 71 anos, o único salvadorenho de nascimento, homem simples e de talante popular. Trabalhou no colégio e foi o primeiro secretário da UCA, em 1965. Depois fundou Fé e Alegria, instituição de escolas populares para os mais pobres.
Foram muito distintos; porém, todos eles foram seguidores de Jesus e jesuítas. É o que nos deixam. Neles podemos olhar-nos para saber o que devemos ser e fazer. Digamos uma palavra sobre o próprio de cada um.

Seguidores de Jesus. Reproduziram de forma real, não intencional ou devocionalmente, a vida de Jesus. Seu olhar se dirigiu aos pobres reais, àqueles que vivem e morrem submissos à opressão da fome, da injustiça, do desprezo e da repressão de torturas, desaparecimentos, assassinatos; muitas vezes com grande crueldade. E moveram-se pela compaixão. "Fizeram milagres", colocando ciência, talentos, tempo e descanso a serviço da verdade e da justiça. E "expulsaram demônios". Certamente, lutaram contra os demônios de fora, os opressores, oligarcas, governos, forças armadas, e defenderam os pobres. Não lhes faltaram modelos: Rutilio Grande e Dom Romero. E foram fieis até o fim em meio às bombas e ameaças, com misericórdia consequente. Morreram como Jesus e engrossaram uma nuvem de testemunhos, cristãos, religiosos, também agnósticos que deram sua vida pela justiça. Esses são os "mártires jesuânicos", referência essencial para os cristãos e para qualquer um que queira viver humana e decentemente em nosso mundo. Seu batismo foi de Espírito de Sangue e seguiram a Jesus.

Com o espírito de Santo Inácio. Nesse ponto me detenho um pouco mais, pois, atualmente, muito se fala sobre a espiritualidade inaciana. Creio que nos podem ajudar a historicizar a Santo Inácio no ‘Terceiro Mundo’ e torná-lo útil para compreender melhor a Jesus.

O outro Ignacio, Ellacuría, fez uma releitura dos Exercícios Espirituais a partir da realidade do ‘terceiro mundo’. Três pontos me parecem fundamentais e podem vigorar como pressupostos inacianos da opção pelos pobres e da luta pela justiça. 1) Ver a realidade de nosso mundo e captá-la como "povos que estão crucificados". Ante eles, a reação fundamental - sem necessidade de discernimento -, é "fazer redenção". 2) Ser honrados conosco mesmos, jesuítas, e perguntar-nos "o que temos feito para que esses povos estejam crucificados e o que vamos fazer para baixá-los da cruz". 3) Levar a sério - quem sabe isso é o mais difícil e o menos frequente - que existem dois modos de caminhar na vida, de ser jesuítas, construir a sociedade e a universidade. São caminhos opostos e estão em pugna. Um é o caminho da pobreza, que leva a opróbrios e menosprezos; hoje, diríamos humilhações, difamações, ameaças; e, daí, à humildade, à profundidade do humano, à verdadeira vida. O outro é o caminho da riqueza, que leva às honras mundanas e vãs. Hoje diríamos ao prestígio entre os grandes deste mundo; e, daí, à arrogância, a uma vida falseada, pessoal e institucional. Em resumo, um conduz à salvação - humanização -; e o outro, à perdição -desumanização. Trata-se de ganhar ou perder a vida, como diz Jesus. E de estar dispostos a pagar o preço.

Em termos de estruturas, Ellacuría insistia em que temos que eleger entre uma civilização da pobreza - afim a uma civilização do trabalho - e uma civilização da riqueza - afim a uma civilização do capital. Esta segunda predomina no mundo, tem gerado uma civilização gravemente doente. A primeira, a que temos que construir, pode reverter a história e curar a civilização.

Esses três pontos: povo crucificado, necessidade de libertação, caminho da pobreza - mais a honradez conosco mesmos - são, em minha opinião, o que mais resplandece na inacianidade dos mártires da UCA e o que melhor explica por que morreram de forma trágica. Na tradição de Santo Inácio, certamente, existem outras coisas importantes a levar em consideração: o "magis", "a maior glória de Deus", "em tudo amar e servir", "o bem, quanto mais universal, mais divino" - tudo o que se menciona com frequência na explosão ambiental de inacianidade que existe hoje. Os três pontos que mencionamos são mais facilmente compreensíveis, também pelos não iniciados em inacianidade e, certamente, pelos pobres. Em minha opinião, têm menos perigo de perder-se no âmbito do conceitual e intencional. Expressam realidades claramente históricas e verificáveis.

Nesse contexto, parece-me oportuno recordar um fato singular: os mártires da UCA nunca discerniram se era vontade de Deus permanecer no país, com riscos, ameaças e perseguições, ou ir embora. Não lhes passou pela cabeça essa ideia. Para ver o quanto explicitamente inaciano havia nesse proceder, penso que temos que ir ao momento primeiro da eleição: "sem duvidar nem poder duvidar" (Exercícios No. 175). Temos que perguntar-nos "o que movia ou atraia a vontade". Se era "Deus nosso Senhor" comunicando-se à alma, como na formulação de Santo Inácio, ou se eram realidades históricas: "o sofrimento do povo", que não deixava viver em paz; "a vergonha que dava abandonar ao povo"; "a força de coesão da comunidade"; "a recordação enriquecedora de Dom Romero, de nove sacerdotes e quatro religiosas assassinadas"; inclusive, "o fato de estar acostumado à perseguição". Penso que tudo isso movia a vontade e iluminava as decisões e o caminho a seguir. Na linguagem dos exercícios, nisso e através disso, Deus estava realmente causando o sem dubitar nem poder dubitar. Porém, Deus não atuava através de qualquer coisa; mas, das que mencionamos.

O Espírito de Deus move o caminhar; porém, sua força passava através do povo sofredor. Assim, parafraseou Pedro Casaldáliga, o conhecido poema de Antonio Machado:

"Camino que uno es,

Para que los atascados

Haz del canto de tu pueblo

Que uno hace al andar.

Se puedan reanimar.

El ritmo de tu marchar".

Penso que assim discerniram os jesuítas da UCA. Deixaram-se atrair e levar pela realidade. É a sinergia de Deus e do povo sofredor. E não me passa pela cabeça outra maneira para explicar porque permaneceram em El Salvador.

Quisera terminar essa reflexão sobre seu ser jesuítas recordando que "morreram em comunidade". Poderia não ter sido assim; poderia acontecer de somente Ellacuría ter sido assassinado, pois era o inimigo principal. Porém, há uma verdade importante - podemos dizer, providencial -, em que sua morte fosse "em comunidade". Assim havia sido sua vida e trabalho, com alegrias e tensões; com virtudes e pecados; porém, seguindo uma única linha bem traçada. E assim expressaram que a Companhia está feita por "todos". É "corpo", não apenas soma de indivíduos, alguns deles geniais; outros, normais.

Esta comunidade de "seis jesuítas" integrou-se em uma comunidade maior, o corpo da Companhia universal. 49 são os jesuítas que morreram no ‘terceiro mundo’, assassinados de uma ou outra forma, depois da CG XXXII. Entre eles, estavam três estadunidenses. Francis Louis Martiseck, 66 anos, nascido em Export, Pensilvânia, morto por arma de fogo em Mokame, Índia, 1979; Raymond Adams, 54 anos, nascido em Nova York, morto por arma de fogo em Cape Coast, Gana, 1989; Thomas Gafney, 65 anos, nascido em Cleveland, Ohio, assassinado em Katmandu, Nepal, 1997.

Não é pouco frequente recordar "as glórias da Companhia", as reduções do Paraguai, Mateo Ricci, na China... Hoje, esses mártires, uns mais famosos; outros, menos, são a glória da Companhia. E, sobretudo, são eles os que mantêm a Companhia com vida. Uma semana depois do assassinato do Padre Rutilio Grande, o Padre Arrupe escreveu:

"Estes são os jesuítas que o mundo de hoje e a Igreja necessitam. Homens impulsionados pelo amor de Cristo, que sirvam a seus irmãos sem distinção de raça ou de classe. Homens que saibam identificar-se com os que sofrem, viver com eles até dar a vida em sua ajuda. Homens valentes que saibam defender os direitos humanos até o sacrifício da vida, se for necessário" (19 de março de 1977).

Julia Elba e Celina: o povo crucificado

Com os jesuítas, morreram assassinadas duas mulheres: Julia Elba, 42 anos, cozinheira de uma comunidade de jovens jesuítas, pobre, alegre e intuitiva e trabalhadora durante toda a vida. E sua filha, Celina, 15 anos, ativa, estudante e catequista; com seu namorado, haviam pensado comprometer-se em dezembro de 1989. Ficaram para dormir na residência dos jesuítas, pois ali se sentiam mais seguras. Porém, a ordem foi "não deixar testemunhas". Nas fotos nota-se a tentativa de Julia Elba para defender a sua filha com seu próprio corpo. Há uns dias, escutei este testemunho de uma mulher que conhecia bem a Julia Elba:

"Digo-lhe que era muito humana porque sentia a dor dos demais. Eu vivi um tempo na casa dela. Era uma pessoa bem amistosa; sabia conviver com os demais. Ela tinha 33 anos e eu 19. Ela e eu tínhamos muitas coisas em comum; começamos a trabalhar muito cedo. Ela havia trabalhado desde os dez anos de idade nos cafezais (...). Era uma mulher muito forte. Sempre me ensinou que eu não devia me acovardar ante os problemas. Foi uma mulher sofrida; porém, forte. Me ensinou a ser uma mulher de valor, que não dependesse dos outros para viver".

Como Julia Elba, existem centenas de milhões de homens e mulheres neste mundo. São imensas maiorias que perpetuam uma história de séculos: na América Latina conquistada e depredada pelos espanhóis, no século XVI; na África escravizada no século XVI e espoliada sistematicamente pelos europeus no século XIX; no planeta que hoje sofre a globalização opressora sob a égide dos Estados Unidos. Morrem de morte rápida e violenta e pela repressão e, sobretudo, de morte lenta da pobreza e da opressão. Sem comparação possível, sofrem mais do que ninguém as consequências de nossos desmandos. Em guerras e invasões: Afeganistão, Iraque, Palestina; no manejo da medicina e farmácia: malária, AIDs; em péssima ecologia: inundações, desertificação, perdas na agricultura; nas catástrofes naturais: a imensa maioria daqueles que morrem e nas ribeiras dos rios ou junto às linhas de trens...
"Existe mais riqueza na Terra; porém, há mais injustiça. A África tem sido chamada de "o calabouço do mundo", uma "Shoá" continental. 2.5 bilhões de pessoas sobrevivem na Terra com menos de 2 dólares ao dia e 2,5 bilhões de pessoas morrem diariamente de fome, segundo a FAO. A desertificação ameaça a vida de 1,2 bilhões de pessoas em uma centena de países. Aos emigrantes lhes é negada a fraternidade, o solo sob seus pés".

Estas palavras de Pedro Casaldáliga são de 2006. Nem o G-7, nem o G08, nem agora o G-20 fizeram nada significativo para reverter esta história. Recordar hoje os ideais do milênio é brincadeira e ofensa aos pobres. Em um ano o número de famintos aumentou em cem milhões e cada cinco segundos uma criança morre de fome, assassinada, assinala Jean Ziegler, pois é muito possível eliminar a fome.

São, "o servo sofredor de Yahvé" em nossos dias; "o povo crucificado", linguagem que não é usada e que politicamente é "totalmente incorreta". Seus homens e mulheres morrem inocentemente, pois não cometeram o "pecado" de Dom Romero ou de Ignacio Ellacuría, simplesmente estavam lá. Morrem cruelmente, com grande frequência depois de uma vida de grandes sofrimentos. Vivem e morrem anonimamente. São desconhecidos os cinco milhões de homens e mulheres que morreram nas megaempresas de mísseis, telefonia e computação. E morrem indefesamente. Em sério, quem defende a esses povos? Quem arrisca algo importante para descê-los da cruz?

Os mártires jesuânicos - alguns - são conhecidos e venerados; porém, não o povo crucificado. Pior ainda se, mesmo sem pretendê-lo, àqueles ocultam a estes. Ellacuría não viveu nem morreu para que o brilho de sua figura empanasse o rosto de Julia Elba.

Pode parecer absurdo; porém, me pergunto quem é mais mártir: Ellacuría ou Julia Elba? Quem reproduz mais a cruz de Jesus? Os mártires jesuânicos expressam melhor a decisão e a liberdade para arriscar a vida; porém, expressam menos a negrura da injustiça cotidiana, a dificuldade de viver, simplesmente. A morte das maiorias assassinadas, por sua parte, expressa menos o caráter ativo de luta; porém, expressa mais a inocência histórica, pois nada fizeram para merecer a morte, pois indefesas, nem possibilidade física tiveram para evitá-la. Essas maiorias são as que mais carregam um pecado que as foi aniquilando pouco a pouco na vida e definitivamente na morte. São as que melhor expressam o ingente sofrimento do mundo. Sem pretendê-lo e sem sabê-lo, "completam em sua carne o que falta à paixão de Cristo". Não "agregam", como afirmam os exegetas; porém, sim, reproduzem.

Os jesuítas da UCA não foram assassinados por fidelidade kantiana a ideais universais de verdade e justiça, e sim por defender estes povos crucificados. Sem lembrar-se dos milhares de crucificados, não é possível entender-los. Seria como pretender entender a cruz de Jesus, sem lembrar os pobres infortunados que Jesus ajudou em sua prostração e que defendeu de fariseus, escribas, herodianos e sumos sacerdotes.

Uma última reflexão a partir da fé. Dos mártires da UCA, uns foram mais parecidos com Monsenhor Romero, os jesuítas. Outros foram mais parecidos com o povo crucificado, as duas mulheres. Analisando eles e elas no seu conjunto, podemos dizer que, com eles e elas, Jesus e seu Deus passaram por este mundo carregando a cruz. Mas também se deve dizer que, contra toda aparência, neles e nelas passou o Deus da salvação. Assim escreveu o Pe. Ellacuría com rigor científico. De minha parte, foi escrito: “fora dos pobres - e das vítimas- não há salvação”.

Para terminar este ponto, permitam-me duas breves reflexões. A primeira é que entre os criminosos, assassinos diretos ou construtores e gestores de estruturas opressoras, existem cristãos batizados, às vezes, educados por instituições cristãs. A segunda é que os processos de canonização, não sabem o que fazer com os mártires jesuânicos, os mártires pela justiça. E certamente nesses processos não há lugar para a maioria dos homens e mulheres dos povos crucificados. Tomara que repensem esses processos. E, canonizados ou não, tomara que a Igreja se desvele por dar dignidade à maioria que carregou a cruz na vida e na morte. São os preferidos de Deus.


2. O que pedem e o que dão os mártires da UCA.

Para eles não pedem nada. Nossa consciência é que nos impele: “algo tem que ser feito”. É importante não nos esquecermos deles, guardar-lhes carinho e agradecimento. Também é importante trabalhar e exigir que se esclareça a verdade dos assassinatos e se julgue os responsáveis, pois não há modo de concertar este mundo se a mentira, o encobrimento e a impunidade seguem intactos. Mas não basta. Devemos nos deixar interpelar e nos perguntar o que os mártires nos pedem.

Em minha opinião, nos pedem, em virtude de ser o que foram, “prosseguir seu ser e fazer”. E começar como eles, sem medo de plantar a vida, a vocação e o trabalho em termos de conversão, correlativa à função de reverter a história. Exemplo ilustre de “conversão”, de “virada” no modo de ser e fazer - já que ele não gostava que se falasse dele em termos de conversão-, foi Monsenhor Romero. Da conversão dos mártires da UCA – em uns distantes exercícios de 1969 - surgiram modos fundamentais de ser e de atuar: a honestidade com o real, a misericórdia consequente sem medir custos, o trabalho por uma civilização de pobreza. E, surpreendentemente, também nos deixar salvar pelos pobres.

Vamos exemplificar nos concentrando no que para eles foi e exigiu a universidade, ainda que, analogamente, acredito que pudesse se falar do trabalho pastoral, assistencial, de direitos humanos... E foi uma exigência séria, pois não costuma acontecer que jesuítas que trabalham em uma universidade sejam assassinados.

Em 12 de junho de 1982, esta universidade outorgou ao Pe. Ignacio Ellacuría um doutorado honoris causa, e, ao recebê-lo, pronunciou um importante discurso. Relido hoje, ainda levando em conta as diferenças de tempo e lugar, segue oferecendo luz, direção e impulso para construir uma universidade jesuíta de inspiração cristã. Terá que adaptar suas palavras criativamente, mas seria temeridade ignorar-las. Vejamos brevemente alguns dos seus elementos mais inovadores, polêmicos e frutíferos, citando algumas das suas palavras.

A quem serve uma universidade. Toda universidade tem a ver “com o saber e com um determinado exercício da realidade intelectual”, e, nele, as universidades jesuítas não se distinguem das outras. Também pensava assim Ellacuría e exigia que o saber fosse o mais rigoroso possível, e que a investigação e a docência fossem de qualidade. Damos por encerrado e não vamos insistir nisso. Mas insistia também em algo que não é tão evidente nem comumente aceito. “A universidade é uma realidade e uma força social, marcada historicamente pelo que é a sociedade em que vive e destinada a iluminar e transformar, como força social, essa realidade em que vive, da que vive e para que deve viver”.

Isto leva, entre outras, a uma pergunta crucial: a quem se deve e ante quem é responsável a universidade. Condição de sua existência é uma variedade de realidades e agentes sociais: os jesuítas e sua tradição universitária, a instituição eclesial que, conforme os casos, dará sua aprovação, a comunidade acadêmica e intelectual no passado e no presente, os que a fazem factível econômica e financeiramente - às vezes politicamente -, os estudantes… A tudo isso é preciso atender, mas a universidade não se deve ultimamente a nada disso. E para responder, não bastam respostas universais ou que se pensam ser conhecidas de antemão.

No caso de todo o terceiro mundo, maioria na humanidade, distinto e antagônico às minorias do planeta, apesar do ideal de equidistância que sugere o termo “globalização”, a realidade a que se deve a universidade e a que tem que servir é um mundo de pobreza e ignomínia, em boa parte um mundo de opressão e repressão - e a essa conclusão se chega sem hesitar nem poder duvidar. Os meios e instrumentos de servir devem ser estritamente universitários, mas o centro do serviço sai da universidade: libertar de todo tipo de opressão. Definitivamente, “descer da cruz esses povos crucificados”. Sem dar prioridade a esse serviço, uma universidade pode ser um centro de saber, junto a outros, mais ou menos competente e competitivo, mas não é uma universidade de inspiração cristã. E não tem que dar, evidentemente, pois a tentação do contrário sempre está à espreita.

Em termos cristãos é a opção da universidade pelos pobres e pelas vítimas. A tarefa da universidade é conseguir que “os pobres”, os que não dão a vida, evidentemente, tenham vida; e que “as vítimas”, os que têm os poderes deste mundo contra, estejam defendidos de qualquer poder opressor. Isso a universidade deve fazer como um todo, fazendo o melhor uso da razão em sua docência, pesquisa, projeção e comportamento social - e sem confundi-lo com a assistência a estudantes desfavorecidos, por benemérito que isso seja, por outros capítulos.

“Ciência dos que não têm voz”. Dizia Ellacuría: “a universidade deve representar os pobres intelectualmente”, o qual na realidade, e inclusive no conceito, é de difícil compreensão. Mas se faz mais compreensível ao mencionar a finalidade de tal representação: “ser ciência dos que não têm voz, o respaldo intelectual dos que em sua realidade mesma têm a verdade e a razão, ainda que seja às vezes a modo de despojo, mas que não contam com as razões acadêmicas que justifiquem e legitimem sua verdade e sua razão”.

Entre nós, em El Salvador, essas palavras lembram as de Monsenhor Romero: “Estas homílias querem ser a voz dos sem voz” (Homília de 29 de julho, 1979). E a razão era para defender-lhes dos que têm muita voz. É notável que ao buscar um ponto de contato entre razão universitária e palavra eclesial, Ellacuría não explora a temática da teoria e práxis, de falibilidade ou infalibilidade, dúvida ou certeza, e sim o âmbito da defesa de oprimidos e vítimas. Aqui a analogia entre palavra pastoral e palavra universitária se converte em univocidade.

Monsenhor Romero prosseguiu: “Por isso, sem dúvida, [essas palavras] soam mal para aqueles que têm muita voz”, e a Igreja de Monsenhor Romero foi duramente perseguida. O mesmo ocorre com a razão universitária proposta por Ellacuría. Em seu discurso, recordou as ameaças, ataques e perseguição à UCA naqueles anos. O importante, no entanto, é sua reflexão programática, válida até o dia de hoje: “em um mundo onde reina a falsidade, a injustiça, a repressão, uma universidade que luta pela verdade, pela justiça e pela liberdade não pode ver-se menos que perseguida”. Por essa razão é importante perguntar-se quanto de perseguição sofre ou não sofre uma universidade cristã; por parte de quem sofre e por parte de quem recebe bajulações. E como se comporta ante uma coisa ou outra.

Quando a razão e a palavra, universitária ou pastoral, não são light e amorfas, e sim que têm peso e arestas, é mais cortante que espada de dois gumes. E então o mundo que se apresenta como tolerante, defensor da liberdade de pensamento e de expressão, busca se defender de uma razão compassiva e da palavra de um Deus dos pobres. Há quarenta anos, até a CIA buscou se defender de Medellín e da Teologia da liberação, pois lhe dava medo -“põem em perigo nossos interesses”, se falava no relatório Rockefeller. Na América Latina, governos e forças armadas assassinaram dúzias de sacerdotes, entre eles quatro bispos. Esse mesmo medo pode ser gerado pelas universidades nos poderosos.

Universidade “em pobreza” e “sem poder”. É o que Jesus pede aos discípulos quando os envia a realizar a missão, ou seja, a realizar uma tarefa. “Não levem nada para o caminho”. “Não sejam como os senhores deste mundo que oprimem com seu poder”. Isto deve ser narrado adequada e realistamente, mas não ignorar eficazmente como se não coubesse a nada o trabalho de uma universidade.

Na meditação das duas bandeiras, Santo Inácio é muito claro em afirmar que pobreza e sem poder são caminhos de perfeição, mas também caminhos de vida, humanização. E insiste que ambas as coisas estão em oposição dialética à riqueza e ao poder. Este é o Santo Inácio de Manresa. Depois, como geral da Companhia, teve que relatar - e não foi fácil. O apostolado exigia recursos, e os jesuítas entraram, como por necessidade, em relação com benfeitores. Isso os aproximou do mundo da riqueza, das honras e do poder: reis, damas da nobreza, cardeais… Santo Inácio ocupou-se seriamente do problema, e buscou soluções. Um exemplo conhecido é a recomendação a Laínez e Salmerón quando foram como teólogos ao Concílio de Trento, mundo de poder, certamente eclesiástico e indiretamente também civil. E ordenou-lhes que vivessem e passassem as noites em hospitais de pobres. Era uma forma de viver as duas bandeiras em uma situação objetiva de riqueza e de poder.

Hoje, no que diz respeito a servir em pobreza, se deveria viver a austeridade, rejeitando luxos em edifícios e templos, fugindo das solenidades mundanas e vãs, embora seja o aceitado e inclusive esperado socialmente. E certamente, evitar - comparando com pobres e classes média-baixas - as desigualdades dilacerantes no modo de se comportar.

No que diz respeiro ao sem poder, não se deve ceder ao poder que provém do “saber”, pois dessa forma, o saber fica em mãos de quem normalmente o usa para ocultar a verdade e oprimir. Mas é preciso evitar a arrogância e a submissão de outros que geram o poder. E evitar o gosto, que mais ou menos conscientemente produz a aproximação aos poderes reais, civis ou eclesiásticos.

No que diz respeito à arrogância, não há melhor remédio que deixar que os pobres sejam nossa boa notícia, especialmente quando, sem dizer, nos perdoam. E assumido com humildade, ajuda muito a perseguição e o martírio.

E uma última reflexão, em forma de esclarecimento, sobre a “excelência acadêmica”. Forma parte da tradição da educação da Companhia, mas qualquer mestre da suspeita se perguntará se hoje não se está encobrindo algo ao insistir nela, e em que consiste. Para mim, o problema está em adequar, sem discussão, excelência acadêmica e excelência universitária - e de querer se aproximar a outras afamadas instituições universitárias. Aquela é necessária para que exista esta, mas não é a mesma coisa. E pior ainda se a insistência na excelência acadêmica leva a diminuir a excelência universitária. Já demos nossa opinião sobre como se mede a excelência de uma universidade: a configuração a uma sociedade na linha da verdade, a justiça, a liberação e a humanização. Para isso, a excelência acadêmica é necessária e sumamente importante, mas não é a finalidade última. Em uma universidade, é instrumento essencial, mas não o fim essencial.

De fato, assim tem sido nas universidades dos jesuítas. Os saberes têm sido instrumentos importantes para defender a fé, para que a Igreja tenha reconhecimento e prestígio, para elevar o nível de conhecimento de determinados grupos sociais… E para isso se necessitou da excelência acadêmica. Mas o que propumos vai mais adiante. Descer da cruz o povo crucificado significa que é possível a vida, a dignidade, a fraternidade no mundo de pobres e oprimidos. E além desta perspectiva, se pode voltar a retomar a excelência acadêmica, agora como um elemento da excelência universitária, de modo que se transforme em excelência acadêmica “integral”.

A razão é que em nosso mundo reina a falsidade, não só a ignorância. Buscar a verdade não é somente fazer avançar o saber, e sim desmascarar a mentira estabelecida. Predomina, além disso, a ideologia, que tem uma dimensão estrutural-institucional, e que quer defender, com o saber, interesses frequentemente injustos. A excelência do conhecimento, enquanto conhecimento, exige conversão da inteligência para superar falsidade e ideologia. E isso se consegue, penso eu, quando nos deixamos afetar, também intelectualmente, pela realidade crucificada. E não só para sanar a realidade, e sim para sanar nosso conhecimento e expandir seus horizontes. Isto questiona a maneira ordinária - ingênua no melhor dos casos - de entender a excelência acadêmica e lhe oferece uma nova direção. O serviço universitário à liberação de um mundo oprimido, longe de enfraquecer-la, fortalece-a.

E não se deve esquecer que a excelência acadêmica convencional já empurra o establishment, que busca gerar ideologias a seu favor e graduados altamente competentes para manter o status quo. Muito mais difícil é encontrar forças e dinamismos sociais que transformem a realidade e sejam assumidos por uma universidade. Esses dinamismos vêm dos pobres, as vítimas, os mártires.

3. A graça dos mártires
Lembramos os mártires. Sua vida e sua morte são de grande dureza, e por isso minhas palavras podem soar fortes. Mas também é verdade que a eles se dirigem as bem-aventuranças de Jesus. E que para nós são - podem ser - uma benção: nos encorajam a nos entregar aos demais e a ter esperança, coragem que não se encontra, com essa força, em nenhuma outra parte, nem na liturgia nem na atividade da academia.
No natal, dizemos que em Jesus de Nazaré “apareceu a benignidade de Deus”. Na semana santa, escutamos da boca de Pilatos que esse Jesus é “o homem verdadeiro”, “ele que carregou com a realidade por amor aos pequenos”. Daí o “ecce homo”. Ambas as coisas, a aparição de Deus e do humano em um mundo que vive na escuridão é uma boa notícia.

Isso é o que celebramos neste ato universitário. Os seis jesuítas da UCA nos levam em sua fé, da que podemos ter alguma notícia, ainda que seja caminhando em silêncio e na ponta dos pés. Julia Elba e Celina nos levam na sua, mas de maneira distinta. Eu, ao menos, não posso entrar até o fundo em seu mistério. Mas Deus sim os conhece, e eles - Deus sabe como - nos levam a Deus.

E contra toda ciência e prudência, os mártires geram esperança. Milhares de camponeses pobres, com familiares mortos, se juntam na véspera de 16 de novembro na UCA para celebrar uns com os outros, rezar e cantar. Jürgen Moltmann teorizou muito bem: “nem toda vida é ocasião de esperança, mas sim o é a vida de Jesus, quem, por amor, carregou sobre si a cruz”.

Termino. Quero agradecer sinceramente à Universidade de Santa Clara pela oportunidade que me deu de dirigir-lhes estas palavras. Permitiram-me fazer presente de algum modo o sofrimento e a esperança de um povo admirável e a memória de meus irmãos e irmãs da UCA. Também quero agradecer-lhes a honra pessoal que me fazem. Remete-me ao carinho que me mostraram há vinte anos. E o interpreto como símbolo de solidariedade desta Universidade com a UCA e com todo o povo salvadorenho.

Minhas palavras finais são as que escrevi aqui há vinte anos.

“Descansem em paz Ignacio Ellacuría, Segundo Montes, Ignacio Matín-Baró, Amando López, Juan Ramón Moreno, Joaquín López y López, companheiros de Jesus. Descansem em paz Julia Elba e Celina, filhas muito queridas de Deus. Que sua paz transmita aos vivos a esperança, e que sua lembrança não nos deixe descansar em paz”.

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