segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Mítica Santarém - Selvino Heck











No final dos anos 70, início dos 80 do século passado, quem no sul (e no Brasil) estava na organização de base dos trabalhadores, nas oposições sindicais, nas pastorais populares e comungava da pedagogia de Paulo Freire, tinha duas referências práticas principais de organização e luta no campo e na cidade e de reflexão sobre as experiências: os metalúrgicos do ABC, com suas greves e mobilizações de massa, à frente o grande líder sindical Lula, e os trabalhadores rurais de Santarém, Pará, à frente Ranulfo Peloso, Geraldo Pastana, Avelino e Valdir Ganzer. Tanto no ABC quanto em Santarém construía-se uma nova concepção de sindicalismo baseado nos princípios do que viria a ser mais tarde a CUT - Central Única dos Trabalhadores: sindicalismo livre da interferência do Estado, classista e de base; autonomia dos sindicatos frente aos partidos políticos; democracia interna das instâncias de base e da futura Central; internacionalismo sem alinhamento; e socialismo como objetivo final da luta sindical.

Foi com emoção, pois, e me lembrando de tudo isso, que pisei pela primeira vez em Santarém para participar do V Fórum Social Pan-Amazônico, de 25 a 29 de novembro de 2010, onde milhares de lideranças sociais, educadores populares da Amazônia latino-americana discutiram o futuro da Amazônia, do Brasil e da América Latina. Os objetivos do V Fórum são: potencializar o Fórum Social em movimento, garantindo a especificidade das vozes da Pan-Amazônia e dando visibilidade às questões específicas dos povos que aqui vivem, trabalham e lutam; promover a integração entre os processos locais e regionais, na interlocução com outros processos do resto do mundo; possibilitar o protagonismo dos povos da Amazônia: indígenas, quilombolas, ribeirinhos, trabalhadores rurais, viabilizando o debate e a articulação entre as lutas e experiências vividas por eles, fazendo uma reflexão local com o global e mantendo o vínculo entre os temas mundiais e os temas amazônicos.

A oposição sindical de Santarém organizou-se em torno de uma articulação conhecida como Corrente Sindical dos Lavradores Unidos, lançada em 1979. As lideranças desse movimento viajaram pelo Brasil afora socializando suas experiências de luta e buscando informações sobre a ação sindical nas outras regiões. Internamente, a Corrente socializa o debate sobre o movimento sindical através de um boletim informativo chamado Lamparina, tornado símbolo da oposição sindical de Santarém.

À simbologia da luz representada pela lamparina juntava-se um lema de efeito -Nossa Força é nossa União- e um hino para ser entoado nos momentos de socialização, que falava da importância da terra, da união, da esperança, do bem vencendo o mal e do movimento como fruto do trabalho de todos.

Quando do lançamento da oposição sindical, foram tomadas as seguintes decisões, segundo o número 4 do Lamparina, agosto de 1979: lutar por um sindicato que seja nosso, sem perigo de ser dominado pelas autoridades e sem influência dos pelegos; um sindicato livre; aumentar a presença nas assembléias do sindicato; não aceitar os projetos da direita que não são da necessidade dos lavradores; tirar da cabeça as idéias usadas, que mandam o povo sofrer com paciência dizendo que é assim que Deus quer; alertar as comunidades para que não aceitem o sofrimento da opressão, porque ele rebaixa a dignidade dos trabalhadores; fazer todo esforço para defender os direitos de todos os lavradores, conscientes de que esta é uma luta que pertence a cada um; estar sempre junto e apoiar os companheiros ameaçados de perder a terra onde trabalham, contra os grandes que querem tomá-las; visitar outras comunidades para levar um melhor conhecimento da realidade e chamar mais gente ara participar da nossa luta; reforçar a organização dos grupos de revenda, grupos de mães, grupos de jovens, delegacias sindicais e outros, não aceitando a participação de quem não é lavador (Informações na tese "A Construção da Representação dos Trabalhadores rurais no sudeste paraense", William Santos de Assis, UFRRJ, 2007).

Santarém e o ABC de 30 anos atrás deram seus frutos no Brasil e na América do Sul e Latina. Os sonhos do final dos anos 70, início dos 80, permanecem vivos, muito vivos. Não permanecem apenas sonhos. Concretizaram-se, tornaram-se realidade nas diferentes experiências de governos de vários países latino-americanos, refletidos no V Fórum Pan-Amazônico.

A mítica Santarém, cuja pedagogia de luta, organização de base e mobilização social admirávamos e seguíamos como lamparina a nos guiar, segue viva também, por exemplo, na Rede de Educação Cidadã, coordenada por uma parceria e articulação do Gabinete Pessoal do Presidente Lula e da sociedade civil. E segue viva e expressa no Manifesto do Fórum, de julho de 2009: "Somos os povos das florestas, dos rios, das chuvas, dos povoados, das aldeias, das cidades, dos quilombos, dos assentamentos, dos nove países que compartem a Pan-Amazônia/ Somos muitas vozes falando centenas de idiomas, mas fazendo o mesmo chamado: é preciso deter a máquina que empurra o planeta e a humanidade para o abismo./ Dar fim ao sistema que transforma a natureza e as pessoas em mercadoria e sobrevive às custas da exploração e humilhação de bilhões de seres humanos./ Dizemos que é tempo de libertar o trabalho e a imaginação para reinventar a Terra e fazer dela a casa comum onde todos e todas vivam com justiça e liberdade."

Selvino Heck
* Assessor Especial do Presidente da República do Brasil. Da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política

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