


No final dos anos 70, início dos 80 do século passado, quem no sul (e no Brasil) estava na organização de base dos trabalhadores, nas oposições sindicais, nas pastorais populares e comungava da pedagogia de Paulo Freire, tinha duas referências práticas principais de organização e luta no campo e na cidade e de reflexão sobre as experiências: os metalúrgicos do ABC, com suas greves e mobilizações de massa, à frente o grande líder sindical Lula, e os trabalhadores rurais de Santarém, Pará, à frente Ranulfo Peloso, Geraldo Pastana, Avelino e Valdir Ganzer. Tanto no ABC quanto em Santarém construía-se uma nova concepção de sindicalismo baseado nos princípios do que viria a ser mais tarde a CUT - Central Única dos Trabalhadores: sindicalismo livre da interferência do Estado, classista e de base; autonomia dos sindicatos frente aos partidos políticos; democracia interna das instâncias de base e da futura Central; internacionalismo sem alinhamento; e socialismo como objetivo final da luta sindical.
Foi com emoção, pois, e me lembrando de tudo isso, que pisei pela primeira vez em Santarém para participar do V Fórum Social Pan-Amazônico, de 25 a 29 de novembro de 2010, onde milhares de lideranças sociais, educadores populares da Amazônia latino-americana discutiram o futuro da Amazônia, do Brasil e da América Latina. Os objetivos do V Fórum são: potencializar o Fórum Social em movimento, garantindo a especificidade das vozes da Pan-Amazônia e dando visibilidade às questões específicas dos povos que aqui vivem, trabalham e lutam; promover a integração entre os processos locais e regionais, na interlocução com outros processos do resto do mundo; possibilitar o protagonismo dos povos da Amazônia: indígenas, quilombolas, ribeirinhos, trabalhadores rurais, viabilizando o debate e a articulação entre as lutas e experiências vividas por eles, fazendo uma reflexão local com o global e mantendo o vínculo entre os temas mundiais e os temas amazônicos.
A oposição sindical de Santarém organizou-se em torno de uma articulação conhecida como Corrente Sindical dos Lavradores Unidos, lançada em 1979. As lideranças desse movimento viajaram pelo Brasil afora socializando suas experiências de luta e buscando informações sobre a ação sindical nas outras regiões. Internamente, a Corrente socializa o debate sobre o movimento sindical através de um boletim informativo chamado Lamparina, tornado símbolo da oposição sindical de Santarém.
À simbologia da luz representada pela lamparina juntava-se um lema de efeito -Nossa Força é nossa União- e um hino para ser entoado nos momentos de socialização, que falava da importância da terra, da união, da esperança, do bem vencendo o mal e do movimento como fruto do trabalho de todos.
Quando do lançamento da oposição sindical, foram tomadas as seguintes decisões, segundo o número 4 do Lamparina, agosto de 1979: lutar por um sindicato que seja nosso, sem perigo de ser dominado pelas autoridades e sem influência dos pelegos; um sindicato livre; aumentar a presença nas assembléias do sindicato; não aceitar os projetos da direita que não são da necessidade dos lavradores; tirar da cabeça as idéias usadas, que mandam o povo sofrer com paciência dizendo que é assim que Deus quer; alertar as comunidades para que não aceitem o sofrimento da opressão, porque ele rebaixa a dignidade dos trabalhadores; fazer todo esforço para defender os direitos de todos os lavradores, conscientes de que esta é uma luta que pertence a cada um; estar sempre junto e apoiar os companheiros ameaçados de perder a terra onde trabalham, contra os grandes que querem tomá-las; visitar outras comunidades para levar um melhor conhecimento da realidade e chamar mais gente ara participar da nossa luta; reforçar a organização dos grupos de revenda, grupos de mães, grupos de jovens, delegacias sindicais e outros, não aceitando a participação de quem não é lavador (Informações na tese "A Construção da Representação dos Trabalhadores rurais no sudeste paraense", William Santos de Assis, UFRRJ, 2007).
Santarém e o ABC de 30 anos atrás deram seus frutos no Brasil e na América do Sul e Latina. Os sonhos do final dos anos 70, início dos 80, permanecem vivos, muito vivos. Não permanecem apenas sonhos. Concretizaram-se, tornaram-se realidade nas diferentes experiências de governos de vários países latino-americanos, refletidos no V Fórum Pan-Amazônico.
A mítica Santarém, cuja pedagogia de luta, organização de base e mobilização social admirávamos e seguíamos como lamparina a nos guiar, segue viva também, por exemplo, na Rede de Educação Cidadã, coordenada por uma parceria e articulação do Gabinete Pessoal do Presidente Lula e da sociedade civil. E segue viva e expressa no Manifesto do Fórum, de julho de 2009: "Somos os povos das florestas, dos rios, das chuvas, dos povoados, das aldeias, das cidades, dos quilombos, dos assentamentos, dos nove países que compartem a Pan-Amazônia/ Somos muitas vozes falando centenas de idiomas, mas fazendo o mesmo chamado: é preciso deter a máquina que empurra o planeta e a humanidade para o abismo./ Dar fim ao sistema que transforma a natureza e as pessoas em mercadoria e sobrevive às custas da exploração e humilhação de bilhões de seres humanos./ Dizemos que é tempo de libertar o trabalho e a imaginação para reinventar a Terra e fazer dela a casa comum onde todos e todas vivam com justiça e liberdade."
Selvino Heck
* Assessor Especial do Presidente da República do Brasil. Da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política
Nenhum comentário:
Postar um comentário