quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A droga invade as cidades: Cracolândias no plural


A "epidemia" do crack ganha proporções progressivas e alarmantes. Um levantamento realizado em mais de 71% dos municípios brasileiros, publicado em meados de dezembro de 2010, mostra que essa chaga social já chegou a 98% deles. No estado de S. Paulo, por exemplo, 80% dos municípios responderam à pesquisa. Os usuários do crack ultrapassam um milhão de pessoas e se alastram por todo território nacional. Feito pela Confederação Nacional dos Municípios, o levantamento revelou também que apenas 14,8% das cidades brasileiras, e 15,5% das paulistas, contam com algum tipo de atenção específica ou tratamento às vítimas da droga.

Por algum tempo falou-se da cracolândia, com os olhos voltados para o centro da maior cidade brasileira, a "paulicéia desvairada", para usar a expressão do poeta Mário de Andrade. Hoje a situação disseminou-se por grandes, médias e pequenas cidades: surgiram as cracolândias no plural. Verifica-se, de fato, que essa chaga não se limita às metrópoles ou às capitais, mas estende-se aos pólos intermediários e até aos núcleos urbanos mais longínquos do interior. Até mesmo trabalhadores rurais, notadamente cortadores de cana, fazem uso do entorpecente para suportar o peso do trabalho. Os ganhos deste, por sua vez, alimentam o vício. E assim instala-se uma espiral de destruição que se afigura como beco sem saída.

Números, nomes e rostos desfilam lamentavelmente nesse cenário doloroso e quase sempre sem retorno. Quantos são exatamente os usuários da droga, se levamos em conta os usuários ocultos? Em que setores da população ela mais se propaga? Quantas existências pessoais e quantas famílias são devastadas e dilapidadas? E quantos cadáveres precoces o uso do crack já semeou pelos caminhos? Quantas esperanças e quantos sonhos se converteram em pesadelos? Esse é o lado trágico das estatísticas e porcentagens apontadas pelo levantamento. Trata-se de uma verdadeira bomba atômica que, lenta, silenciosa e implacavelmente, varre a sociedade e ceifa vidas na flor da idade. Às vezes não tão silenciosa, se temos em mente as batidas policiais e a ânsia de espetáculo da mídia sensacionalista. Holofotes, câmeras e microfones às vezes mais parecem abutres sobre esses cadáveres insepultos. Felizmente há repórteres e jornalistas, e constituem a maioria, empenhados em divulgar os fatos e imagens como forma de combater o avanço da epidemia.

Desde esse ponto de vista espetacular e sensacionalista, tão em vigor na sociedade moderna ou pós-moderna, é fácil e comum apontar o dedo em riste sobre esses "vagabundos, malandros, bandidos ou criminosos". E, sem mais, atirá-los para trás das grades. Sua presença incomoda uma população que recusa enxergar o resultado de sua incompetência, ou seja, incomoda e interpela cada um de nós. Com o avanço da tecnologia, tudo se torna transparente, inclusive a infância, a adolescência e a juventude arruinadas em seus ideais mais puros e nobres. Por mais que cerremos hermeticamente portas e janelas, esses corpos esqueléticos, esses rostos ocultos e perseguidos pela morte, esses olhares oblíquos e desesperançados penetram sorrateiramente em nossos lares. Daí a necessidade de culpabilizá-los, de criminalizá-los ou, pura e simplesmente, de liquidá-los. Eliminá-los das ruas e praças, e se isso não for possível, eliminá-los de nosso campo de visão. Bem se diz que "o pior cego é o que não quer ver".

Entretanto mais do que diante de uma multidão de "bandidos e criminosos", estamos diante de uma situação bandida. Situação de pobreza, falta de perspectiva e exclusão social. Não que tudo se possa explicar pelo lado socioeconômico. Os fatores que contribuem para formar esse quadro são múltiplos, complexos e entrelaçados. De qualquer forma, frente a essa situação bandida, duas dimensões de uma mesma realidade se mesclam, se alternam e se confundem: de um lado, estão as crianças, os adolescentes e os jovens que, na ausência de horizontes e de referências, caem facilmente no "canto de sereia", extremamente vulneráveis ao aliciamento e ao vício. São as vítimas dessa epidemia que aos poucos vai corroendo seu corpo, sua alma e, em termos mais abrangentes, esgarçando as relações familiares e o tecido social. Tais vítimas podem sê-lo tanto a partir de famílias de classe média e abastada, quando reina o desamor e a discórdia, quanto de famílias pobres, premidas pela carência e por nuvens sombrias quanto ao futuro. A droga em geral, e o crack em particular, não costuma respeitar fronteiras.

De outro lado, está o crime organizado, o controle dos narcotraficantes e o contrabando de drogas e armas, onde os oportunistas de plantão fazem da situação bandida um terreno fértil para seus negócios escuros e escusos. Mas os contornos entre os dois lados são imprecisos. Diversos graus de vitimização ou de criminalidade vão de um extremo ao outro. Usuários e vítimas podem "seguir carreira" no mundo da contravenção, galgando postos de comando e faturando grandes somas de dinheiro. É por demais sabido que o narcotráfico, em suas contradições mais aberrantes, pode significar um rápido e fácil trampolim para os "alpinistas sociais" (expressão de Peter Gay), conduzindo determinadas personagens dos morros aos apartamentos de luxo ou aos condomínios fechados. Mas essas exceções confirmam a regra: a imensa maioria que entra na rede das drogas permanece vítima de uma violência sempre pendente sobre sua cabeça, em geral tombando assassinada antes dos 25 anos.

O lado mais sombrio desse cenário é que, não raro, as autoridades e os políticos de plantão costumam fechar os olhos ao destino das vítimas, enquanto, por outro lado, se aproveitam de fatias consideráveis do bolo distribuído pelos contraventores. Isso para não falar da promiscuidade entre setores das polícias e narcotraficantes dos escalões mais altos! Aqui, mais do que priorizar a punição policial ou judicial, urge a implantação de políticas públicas de prevenção, acolhida, tratamento e inclusão social. Neste ponto, e voltando ao levantamento citado no início, são poucos os municípios que dispõem de programas sérios e sólidos de combate à epidemia do crack. No caso das Igrejas, há iniciativas incipientes de presença junto a esses grupos vitimados pela droga, bem como casas ou clínicas de tratamento. Evidentemente, tudo isso é louvável, mas continua sendo pouco!

Enquanto o poder público, especialmente os governos municipal, estadual e federal, junto com o Ministério da Saúde, não tomar a sério o caráter epidêmico desse avanço do crack, há pouca esperança no horizonte. Não basta a caridade nem a boa vontade, embora estas sejam bem vindas e necessárias. É preciso atacar o problema em ambas dimensões: combatendo firmemente o crime organizado e o narcotráfico, de um lado, e, além de tratamento adequado, apontando alternativas a suas inúmeras vítimas. A questão é, antes de tudo, social, política e cultural - e só marginalmente policial. Passa por uma reformulação da educação, pela importância do esporte e do lazer, pela oportunidade de emprego e de inserção na sociedade, pela melhoria da renda e das relações familiares. Não há milagres, mas pode haver uma vontade política e uma boa fatia do orçamento a serviço desses adolescentes e jovens. Hoje órfãos, solitários e perdidos; amanhã, quem sabe, protagonistas de uma nova utopia.

* Alfredo J. Gonçalves, CS, superior provincial dos missionários carlistas e assessor das pastorais sociais.

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