terça-feira, 14 de dezembro de 2010

As religiões e a crise econômica




Trinta budistas das tradições Theravada, Mahayana e Vajrayana e cristãos anglicanos, luteranos, baptistas, reformistas e católicos romanos reuniram-se na Universidade de Payap, em Chiang Mai, na Tailândia, em Agosto passado, sob o tema «Budistas e Cristãos Confrontados Hoje com a Ganância Estrutural». A consulta foi organizada conjuntamente pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela Federação Luterana Mundial e patrocinada pelo Instituto de Religião, Cultura e Paz da Universidade de Payap. Entre os participantes encontravam-se ativistas, economistas, líderes religiosos e estudiosos da Austrália, Alemanha, Hong Kong, Indonésia, Japão, Myanmar, Filipinas, Singapura, Sri Lanka, Suíça, Taiwan, Tailândia, Reino Unido e EUA.
Crise mundial

A crise financeira mundial em que grande parte do mundo mergulhou em Outubro de 2008 deixou em todo o mundo um grande número de pessoas devastadas, perturbadas e privadas da sua dignidade humana. O Conselho Mundial de Igrejas e a Federação Luterana Mundial, que têm uma história de envolvimento em questões de justiça econômica, reconhecem que as causas desta crise não têm somente que ver com as realidades econômicas, mas também com a espiritualidade e a moralidade. A Comissão das Igrejas para Assuntos Internacionais afirmou que o Cristianismo por si só não tem os recursos para combater com eficácia esta crise, mas que deve cooperar com as outras religiões que, ao longo dos séculos, têm refletido profundamente sobre a questão da ganância e têm significativa sabedoria para oferecer. A Federação Luterana Mundial também assumiu o compromisso de «colaborar com pessoas de outras religiões e com o resto da sociedade nos esforços de subverter a ganância e desenvolver alternativas que dêem vida e sustentação a todos».

Nós, cristãos e budistas, convocados para procurar uma palavra comum na crise atual, reconhecemos que a ganância estrutural está no cerne da crise financeira. Lembrando uma frase de Buda, «numa situação de crise, agem como se o seu turbante estivesse a arder», salientamos a urgência da situação. Reconhecendo também que a crise criou uma oportunidade sem precedentes para falar com os governos, instituições financeiras e com as próprias comunidades religiosas, apresentamos as seguintes observações que foram a nossa posição comum.
O presente contexto

Nós, budistas e cristãos, observamos que uma das principais razões para a crise financeira global é que nos últimos séculos processos econômicos têm sido progressivamente motivados e estruturados com o objetivo de maximizar os lucros dos proprietários do capital, e, portanto, monopolizando o mercado mundial. Após a grande recessão de 1929 foram instituídos regulamentos políticos para controlar esta tendência. O desmantelamento dessas normas, há algumas décadas, resultou num ambiente propício à explosão desenfreada da ganância pessoal e estrutural, conduzindo a uma crise da dívida e hipoteca, a disparidades sem paralelo entre os super-ricos e aqueles que passam fome todos os dias e para a acelerada degradação do meio ambiente.

Nós, budistas e cristãos, reconhecemos que, como indivíduos e comunidades religiosas, participamos, intencionalmente ou não, na busca de lucros a partir deste sistema de ganância pessoa e institucional e por isso temos sido cúmplices nos seus efeitos devastadores. Ao mesmo tempo, admitimos a nossa responsabilidade de conhecer, resistir e tentar mudar o sistema que destrói a vida de um grande número de pessoas pobres no mundo.

Nas últimas décadas, as pessoas tornaram-se mais permissivas e começaram a acreditar que a ganância não regulamentada é boa e que a concorrência desenfreada e a acumulação de riqueza são necessárias ao progresso humano. Uma dieta constante de mensagens poderosas de comunicação, por exemplo, pelos meios de comunicação social controlados pelas empresas serviu para interiorizar essas mensagens.

Os mercados financeiros que foram desregulamentados devido às pressões da ganância estrutural também levaram a uma situação em que o dinheiro e os mercados financeiros têm vida própria, com a criação de uma infinita variedade de novos instrumentos financeiros para a rápida obtenção de lucros exorbitantes. Mais do que apenas um meio de troca, o dinheiro tornou-se uma mercadoria a partir da qual lucros cada vez maiores são prometidos e esperados.
Entendimento Comum

Os budistas entendem a ganância como uma disposição humana, um dos três venenos: «ganância, ódio e ilusão». A ganância é causa de sofrimento e um obstáculo para a iluminação. No caminho para a iluminação, os seres humanos podem superar o poder esmagador dos três venenos e, assim, tornarem-se pessoas generosas, carinhosas e compassivas.

Os cristãos entendem que vivem em estruturas de dominação e de cobiça, tradicionalmente relacionadas com o poder do pecado. Desde o tempo dos profetas, a fé bíblica resistiu a essas estruturas opressivas e trabalhou por motivos legais e comunidades alternativas relacionadas. Seguindo essa tradição, Jesus Cristo viveu uma vida em oposição às forças de dominação e morreu em luta feroz contra estas. Na Sua ressurreição, os cristãos acreditam que Ele foi vitorioso sobre essas estruturas e capacita os Seus seguidores, através do Espírito Santo, para resistirem e transformarem as estruturas semelhantes de hoje em dia.

Evitar a ganância estrutural e concentrar-se na ganância individual é manter o statu quo. Como budistas e cristãos, estamos convencidos de que a ganância tem de ser entendida tanto pessoal como estruturalmente. A ganância pessoal e a ganância estrutural alimentam-se mutuamente na sua relação interativa de causa e efeito. Elas precisam uma da outra para o seu sustento e expansão.

O egoísmo, necessário ao bem-estar humano, não constitui necessariamente ganância. Na medida em que os seres humanos podem sobreviver e prosperar apenas em conjunto com um outro, o egoísmo inclui, naturalmente, os interesses dos outros. Portanto, quando o interesse próprio é perseguido, sem compaixão pelos outros, quando a interconexão é ignorada, ou quando a mutualidade de toda a humanidade é esquecida, o resultado é a ganância. E a ganância, seja pessoal seja estrutural, tem tendência a nunca ficar satisfeita.
Estratégias

A ganância manifesta-se tanto a nível individual e social como estruturalmente através do poder político, econômico e dos meios de comunicação. Cada nível requer transformação e precisa de uma variedade de estratégias para ser eficaz.

As estratégias para enfrentar a ganância a nível pessoal e social incluem a promoção da generosidade e cultivar a compaixão pelos outros. Encorajamos a pregação eficaz e pedagógica, bem como práticas espirituais como a meditação e a oração para motivar os budistas e os cristãos para a transformação social.

Combater a ganância estrutural incorporada nas estruturas de poder político e econômico exige estratégias diferentes. Incluem medidas contra a cobiça tais como o desenvolvimento e reforço de uma regulamentação adequada das operações financeiras e políticas que promovam a distribuição equitativa da riqueza.

Uma vez que as economias orientadas para o mercado global se tornaram prejudiciais para as pequenas empresas e devastadoras para as comunidades locais, os esforços para criar economias alternativas a nível local devem ser incentivadas. Foram identificados quatro exemplos de tais esforços de todo o mundo: troca local e sistema de comércio (LETS), em que a negociação é feita em moedas locais e regionais; bancos cooperativos; energia descentralizada; e localização da produção e da troca de mercadorias básicas como água e alimentos.

Como a ganância estrutural também ameaça a sustentabilidade da Terra, afirmarmos a necessidade de salvaguardar os «alimentos» para todas as pessoas de uma forma participativa de organização e gestão dos recursos da Terra.

Estas iniciativas destinadas a transformar a ganância estrutural não podem ser instituídas sem estratégia, comunidades ativistas bem organizadas. Reconhecemos que algumas das melhores iniciativas para tal organização muitas vezes vêm com a experiência e a criatividade das pessoas nas margens. Verificamos também que a pregação e o ensino, tanto no templo como na igreja, podem ser maneiras eficazes de motivar os homens a participarem em tais comunidades organizadas. O poder coletivo é maior quando budistas e cristãos trabalhamos juntos; são capazes de ter um impacto ainda mais eficaz e construtivo quando se envolverem com outras comunidades religiosas e organizações populares da sociedade civil e movimentos.

Como budistas e cristãos, também afirmamos que a oração, a meditação e outras práticas espirituais oferecem às pessoas acesso a energia espiritual que lhes dá perseverança, libertação do ego, compaixão por aqueles que sofrem e força interior para amar e tratar de forma não-violenta com aqueles a que eles têm de se opor. Como os professores budistas nos lembraram: devemos ser a paz para fazermos a paz.
Conclusão

Como budistas e cristãos de uma variedade de tradições nas nossas respectivas religiões e de vários países, passamos quatro dias a enfrentar a questão da nossa postura face à ganância estrutural. Cada um de nós esforçou-se por partilhar autenticamente a partir da perspectiva da nossa tradição e identidade. Tentamos escutar-nos profundamente uns aos outros, suspender o julgamento, apreciar-nos mutuamente nas nossas crenças, ser autocríticos das nossas próprias crenças e atentos às novas visões.

Esta palavra comum atesta o valor de tal diálogo. A nossa esperança é que tal compromisso inter-religioso em curso possa ser um poderoso contributo para superar a ganância e a realização de um mundo com mais sabedoria, compaixão e justiça


Conselho Mundial das Igrejas

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