Alder Júlio Ferreira Calado
É sabido que as democracias representativas, além de cultuarem o processo eleitoral como um dogma, fazendo nele incidir “a” marca da essência democrática, nelas também as eleições têm características comuns, não importa onde se dêem. Por outro lado, sem prejuízo de seus aspectos comuns, toda eleição tem sua história particular. Foi bem o caso destas de 2010 que, para mim (que já nada aposto nesta via, para a construção de uma nova sociedade), tiveram uma dinâmica especial.
Pela primeira vez, desde que fui convencido, pela natureza da atual conjuntura, a não mais apostar nos embates eleitorais como fator ou como espaço propício à luta por mudança estrutural, seguindo, porém, minha trajetória de militância política nas “correntezas subterrâneas”, eis que me deparei com uma campanha eleitoral que me trouxe várias surpresas e alguns questionamentos. Começo por destacar um certo número de facetas desta campanha, para, em seguida, formular alguns questionamentos, a título de ensinamentos que recolho desta empreitada.
Uma eleição atípica, de múltiplas facetas
Se, nas anteriores, acompanhava, como sempre o faço, a movimentação geral, sem me envolver mais de perto nessa disputa, desta vez, foi diferente. Embora sem envolvimento orgânico, mas pelo fato de acompanhar debates, noticiários, textos, artigos, depoimentos, etc., devo confessar que as eleições de 2010 me impactaram, de modo muito especial.
Continuo com dificuldade crescente de entender a lógica que move a esquerda partidária - embora se esforce em dizer o contrário = a apostar tanto nos embates eleitorais, cujo saldo político-pedagógico e cujos frutos concretos não justificam, na minha modesta avaliação, os esforços envidados, o tempo despendido e os investimentos realizados (em certos casos, até implicando endividamento)... Continuo sustentando que seriam bem outros os frutos, se, em vez de seguirem apostando na cada vez mais desgastada via eleitoral, centrassem seus esforços em atividades visando a um enraizamento mais consistente nas lutas sociais do campo e das periferias urbanas, de modo diuturno.
Como estamos cansados de saber (mas teimando incorrigivelmente em tirar leite de bode...), a logística das campanhas eleitorais só pode favorecer aos candidatos dos partidos ou coligações da ordem. Assim se fez, em relação às candidaturas Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva. A candidatura Plínio correu um tanto à margem desse processo, mas sempre implicando alguma vantagem para o sistema, à medida que, assim agindo, o sistema se faz passar como generoso e mais“democrático”...
Sendo assim, o regime nada teria a temer, quem quer que dos três candidatos saísse vitorioso. Até pode ter alguma preferência adjetiva. Mas isto não impediria, como não impediu, generosos financiamentos assegurados por setores privilegiados do sistema aos três candidatos, certos de que, após a eleição, a fatura será honrada, pois “Quem come do pirão, prova do meu cinturão.” Com efeito, de quê mesmo teriam os setores financistas ou o agronegócio que se queixar das candidaturas oficiais?
Bem mais do que em eleições precedentes, foi descomunal o investimento da militância da candidata Dilma Rousseff, principalmente pela via eletrônica. Das demais candidaturas, também. Mas, sobretudo, no segundo turno, envolvendo as candidaturas Dilma Rousseff e José Serra. De fato, foi extraordinário o movimento diário dos correios eletrônicos, prestando-se, de modo eficaz e com excessos de parte a parte, a sensibilizar e a influir sobre uma parcela considerável da população. Com uma vantagem (entre outras): a de tratar-se de um público detentor também de relativo poder de influência para além desta categoria. Um dos pontos mais chocantes foi o recurso abusivo à motivação religiosa, à sórdida manipulação da boa fé de parte considerável da população, numa afronta à desejável laicidade do Estado. Felizmente, tratou-se de uma tática eleitoralmente mal sucedida.
Ainda que não determinante, contou positivamente, em favor da candidatura Dilma Rousseff, o fato de ser mulher, ao apresentar-se com um traço excepcional: seria a primeira mulher brasileira, a ser eleita presidente do Brasil. Embora deseje, com ardor, ver cada vez mais e melhor reconhecido o lugar das mulheres na sociedade, por outras vias, associo-me a essa comemoração, desse ponto de vista, ainda que tal processo se tenha dado não por só por conquista, também – e em parte considerável – por concessão...
Fato também atípico quanto inquietante foi a forma (que reputo infeliz) de participação de segmentos da hierarquia das igrejas no processo eleitoral, de modo tão incisivo e escancarado, quando o mais comum tem sido uma participação no plano dos princípios éticos. Desta vez, o comportamento se mostrou escancarado, numa atitude pouco desejável a quem pretenda exercer uma atitude profética perante as instâncias do Mercado ou do Estado. As igrejas cristãs, a meu ver, não saem vitoriosas desse processo. Para dizer o mínimo.
Chamam a atenção, igualmente, dois fatos intrigantes: o número espetacular de correspondentes eletrônicos, transformados em dedicadíssimos militantes, especialmente da candidatura Dilma Roussef; e, de modo articulado, a espantosa freqüência com que isto se fazia. Eu próprio reccebi incontáveis “mails” de pessoas que, de repente, várias vezes ao dia, se dedicavam, com toda a paixão, a socializar, por meio de vastas listas de contatos, notícias, artigos, textos, abaixo-assinados, depoimentos de personalidades influentes, verdadeiras apologias incondicionais da cantidatura Dilma Rousseff. O lado intrigante do fato é saber se, no caso de boa parte dessa generosa militância, além da motivação em defesa dos pobres, não haveria também – e principalmente! - interesses pessoais em jogo... Sei que de uma pequena parte, não!
Outro aspecto que sobre todos os demais prevalece, nessas primeiras considerações avaliativas, diz respeito ao apoio incondicional prestado à candidatura Dilma Rousseff por expressivas lideranças do MST e da Via Campesina. É sabido que uma das características mais fortes dos movimentos sociais populares – notadamente naqueles que se apresentam comprometidos com a construção de uma sociabilidade alternativa ao Capitalismo e a qualquer sociedade de classes é o zelo pela sua autonomia diante do Mercado e de seu Estado e respectivos aparelhos. No momento em que um determinado movimento social baixa a guarda ou abre mão desta marca, ameaça sua autonomia, emitindo sinais de fragilidade ou de pouca disposição para o exercício do protagonismo por meio das lutas sociais, como instrumento central de suas conquistas e do seu projeto.
Não menos inquietante – e isto não é exclusivo destas eleições – é constatar a mudança de atuação profética de figuras de referência que, nos governos anteriores, exercitavam, a justo título, uma crítica/denúncia contundente a diferentes expressões de deslizes ético-políticos (nesse sentido, é farta a literatura produzida por tais figuras, nesse período), enquanto, durante os dois mais recentes períodos de gestão, não apenas abdicaram da crítica a fatos semelhantes protagonizados pelas novas forças governantes, como também passaram a defendê-las, com veemência. O que terá acontecido?
Alguns questionamentos decorrentes desses registros
Arte difícil, a de apreciar criticamente as relações humanas e sociais. Mais complicada e desafiante ainda, quando se trata de fazê-lo sob o calor das paixões, como sucede em tempos de disputas eleitorais. Mesmo sabendo-se que o campo da Política é bem mais amplo e complexo do que sua dimensão estritamente eleitoral, não raro, cometemos o equívoco de pretender esgotar nas disputas eleitorais os meandros da Política. As paixões nos conduzem a isso. Não raro, nos tornamos cegos e arrogantes, além de maniqueístas! "Só há dois lados: o meu com meus aliados (o lado do bem) e o outro, o lado inimigo (o lado do mal)... Não percebemos que o “meu” lado comporta também um certo número de componentes do “outro” lado, enquanto este inclui também gente do “meu” ]ado... Se isto foi assim em tempos mais rígidos, imaginemos nos dias atuais...
A partir daí, pouco ligamos para projetos de sociedade em disputa (confundindo-os, de acordo com as nossas conveniências, com meros estilos de gestão, com seu toque pessoal e partidário). A esse propósito, quantas vezes recebemos textos com títulos do tipo: "Dois projetos em disputa"? No caso da campanha que acaba de encerrar-se, não é complicado entender que a política macro-econômica do Governo Lula manteve os fundamentos da anterior, tendo ampliado sensivelmente o alcance social das políticas compensatórias. No entanto, quantos reconhecem isto? E, ao reconhecê-lo, quem está disposto a socializar suas apreciações, em pleno curso da campanha eleitoral?
Nódoa por todos deplorada: a insânia a que se prestou eficazmente, em especial, a mídia eletrônica, ao fazer circular, sobretudo na campanha relativa ao segundo turno, profuso material de baixaria, com acusações levianas, com factóides, com versões extremamente maniqueístas, entre outras do gênero.
São, com efeito, tantas facetas não-ditas, silenciadas, omitidas do grande público, de parte a parte! Quem se preocupa, por exemplo, com o fato tão corriqueiro quanto abusivo de classificar de "direita" ou de "esquerda" esse ou aquele grupo, mesmo sabendo que, no fundo, no fundo, não é bem assim. As coisas vêm muito mais misturadas, num caso e noutro. Dizer que a candidatura X é de esquerda ou a candidatura Y é de direita, implica omitir que são extremamente heterogêneas as composições de ambos os lados. Isto é uma constatação. Basta ter olhos para ver!
Foi, para mim, a campanha das mais obsessivamente apaixonantes, desses últimos anos. Dela também retiro algumas lições, que compartilho em forma de perguntas:
- Diante de tantas inconsistências praticadas, quais são mesmo os valores que EFETIVAMENTE orientam e dão sentido à nossa existência (individual e coletiva)?
- Para quem tenha orientação cristã, por exemplo, é razoável proclamar-se cristão/ cristã, e contentar-se com uma política de verniz social, sem apreciar criticamente a repartição justa das riquezas, levando em conta a totalidade dos cidadãos e cidadãs, e não apenas aquelas parcelas parcialmente atendidas?
- É razoável contentar-se com essa ou aquela política social que contemple uma pequena parte – ou mesmo expressivas parcelas da população, sem o compromisso efetivo com resolver igual situação de milhões de cidadãos e cidadãs que têm que ficar de fora, à espera da boa vontade dos próximos governantes, tendo certeza de que, bem distribuídas, as riquezas já disponíveis são capazes de atender à satisfação das necessidades básicas (materiais e imateriais!) de TODOS?
- Eleição vai, eleição vem, e as coisas continuam assim: resolve-se uma coisa aqui, aparecem problemas iguais ali, cobre-se um santo aqui, fica outro lá descoberto. É razoável conformar-se com tal estrutura, sob a cômoda alegação de que "é melhor assim do que nada" ou "é melhor votar no menos ruim"? Será isso mesmo o que inspira o Evangelho ou, mais precisamente, a prática de Jesus de Nazaré? Afinal, são os cristãos, as cristãs vocacionados a contentar-se com o "menos ruim", ou a buscar construir uma sociedade em que TODOS caibam com dignidade, seja do ponto de vista da satisfação das necessidades materiais (trabalho, alimentação, habitação, saneamento, saúde, transporte coletivo, previdência social, etc., seja do ponto de vista da satisfação das necessidades imateriais (formação, lazer, fruição e produção artístico-cultural, relação respeitosa com a Mãe=Natureza, liberdade em sua relação com o Sagrado, etc.)?
- Acostumamo-nos, durante décadas afio, a entender e, sobretudo, a exercitar política, quase tão somente enquanto política eleitoral. Até que ponto tal deformação não ajuda a restringir o campo da POLÍTICO apenas ao exercício do voto, amesquinhando ou mesmo abdicando de nossa condição de cidadãos e cidadãs?
- No empenho apaixonado em defesa dessa ou daquela candidatura, será que não estamos contribuindo objetivamente para consolidar o que venho chamando de cultura presidencialista (de "praeesse"), por força da qual nos habituamos a pensar sempre no chefe, no líder, que deve tomar sozinho ou em pequeno grupo as decisões que deveriam ser tomadas por todos. de modo participativo e organizado?
- Se já é tão forte no imaginário coletivo do nosso Povo, tal mentalidade não deveria ser pedagogicamente questionada por nós, em vez de contribuir para o seu aprofundamento?
- No caso do vasto público cristão, será que isto não é tanto mais preocupante quanto se dá ainda tão fortemente entre pessoas que tiveram formação cristã na Lina da Teologia da Libertação e do Ecumenismo de base, e no público católico com formação eclesial, em contexto conciliar (com o reforço de Medellín e Puebla), tendo mais familiaridade com experiências marcadas pelo exercício da colegialidade, da comunhão e participação, com as decisões tomadas comunitariamente, nos ambientes protagonizados pelas gentes das CEBs, da ACR, do MER, do CEBI, da Teologia da Libertação, da PJMP, das pequenas comunidades inseridas no meio popular (PCIs)? Por onde anda ou o que tem sido feito do legado dessas experiências?
- Durante os anos de chumbo e, mais recentemente, durante o Governo de FHC, sempre houve vozes proféticas a denunciarem, a justo título, os desmandos, escândalos e falcatruas do sistema. Eis que, mais recentemente, escassearam ou já não se ouvem tais essas vozes, embora se cometam semelhantes deslizes ético-políticos. Onde estão essas vozes, hoje? Questionamento extensivo a venerandas figuras de intelectuais...
- E no caso das forças de esquerda ou de quem segue dizendo-se identificado com as lutas no horizonte da construção de uma nova sociedade, qual tem sido o critério em conflitos semelhantes: o da fidelidade incondicional aos “de minha casa” ou o critério de fidelidade ao conjunto daqueles e daquelas-que-vivem-do-trabalho?
- Ainda no caso do público cristão politicamente orientado pelos valores da Teologia da Libertação, na busca de resolução dos conflitos internos (com os “de casa”), que critério temos usado efetivamente: o de fidelidade incondicional aos “nossos” (laços de afinidade político-ideológica, laços de ascendência, laços de parentesco, laços de amizade, laços familiares, laços eclesiais, etc.) ou fidelidade à causa do Reino de Deus (que, por vezes, pode suscitar rupturas com o primeiro critério)?
- Ao cedermos à tendência dominante, de modo a contentar-nos com remendos, sob a alegação de que é melhor pouco do que nada, como nos avaliamos diante da radicalidade evangélica que nos convida a irmos além da justiça convencional (“Se a vossa justiça não for além da justiça dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos Céus.” (Mt 5, 20)?
- Em defesa de tal radicalidade, como nos comportamos diante das explicações apresentadas pelos governantes, de que as políticas sociais se fazem progressivamente, por etapas, atendendo, hoje, a uma parte, e a outra fica para depois, ou seja, se há um déficit habitacional estimado em 8 milhões de habitações (sempre acho um dado subestimado, quando penso nas “habitações” indignas de gente, e ainda assim, a engordar as estatísticas oficiais...), tal governo se compromete a construir dois milhões, durante oito anos, e o quê fazer com os milhões de Sem-Teto restantes? Isto num país que é a oitava potência do mundo... Nâo dá para dizer que não há recursos para universalizar esta e outras políticas sociais...
- A bocas e ouvidos tão acostumados, nos anos 70 e 80, a palavras geradoras tais como “nós”, “decisões pela base”,“mutirão” e semelhantes, de repente já não lhes parecem estranhos discursos – e, sobretudo, práticas! – com ênfase no “eu” (“Eu vou construir...”; “No meu governo”...). O que terá ocorrido?
- Em entrevista recentíssima de Fábio Konder Comparato, concedida à revista “Caros Amigos”, em edição especial de 25 de novembro de 2010 (disponível em versão eletrônica), ele faz, entre outras reflexões, uma apreciação crítica da personagem política de Lula, avaliando-o como um populista. Ao endossar tal avaliação, o que mais me dói é que tal marca, muito antes de ser de Lula, das principais lideranças petistas e de quase todos os nossos partidos, acha-se profundamente enraizada em nossa cultura presidencialista (de “praeesse”, significando a tendência a dependermos de um chefe, de um pai, de um salvador, que nos aponte o caminho, assim abdicando ao protagonismo de todos... Será que estamos conscientes de nossa parcela de responsabilidade no fortalecimento de tal cultura?
São apenas alguns questionamentos que recolho do que pude acompanhar, ao longo das recentes eleições, com o propósito de nos ajudar a exercitar uma discussão avaliativa de nossas práticas e concepções, no quadro das campanhas eleitorais. E o faço, com humildade, reconhecendo tratar-se de um ponto de vista entre tantos, e que sei limitado, parcial e provisório, sempre disposto e em busca de dialogar com outros olhares.
João Pessoa, 3 de novembro de 2010
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