1. Desde a sua primeira aparição na varanda central da basílica de São Pedro, o papa Francisco dá a impressão de um bom sacerdote: simples, comunicativo, disciplinado, discreto, sensível. Os comentaristas de primeira hora reforçaram essa impressão e contaram diversos episódios de sua vida. Por exemplo, quando preparou sua viagem a Roma para receber o chapéu cardinalício, diversas pessoas se ofereceram para acompanhá-lo e ele respondeu que era melhor dedicar o dinheiro das passagens a alguma obra de caridade. Comentou-se também que ele costuma se deslocar em Buenos Aires de ônibus ou metrô. Seus colaboradores se mostraram unânimes em reforçar a imagem de bom sacerdote, homem simples e comunicativo. Muitos comentaram que a escolha do nome Francisco, simplesmente Francisco (sem o número um), sinaliza sua sensibilidade pelo pobre, em seguimento a São Francisco de Assis, na Idade Média.
2. Mas, enquanto assistia a esses comentários, uma palavra de Dom Helder não me largava: ‘quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que são pobres, me chamam de comunista’. Será que o papa Francisco vai perguntar qual a causa da pobreza no mundo de hoje? Aí me lembrei da diferença entre sacerdote e profeta, tal qual aparece, por exemplo, na carta aos Hebreus. Aí se escreve que o sacerdote é caridoso, mas o profeta combate as causas da pobreza. E, segundo dita carta, nisso vai toda a diferença entre o antigo e o novo testamento, entre sacerdócio e profecia.
3. O cristianismo nasceu do profetismo hebraico. Na história de Israel, tal qual é relatada na bíblia, operam duas instâncias, os sacerdotes e os profetas. Os primeiros ajudam os reis, administradores e autoridades e geral a manter a lei e a boa ordem. Eles colaboram para que a sociedade funcione bem. Mas os profetas criticam a própria autoridade dos reis e mostram que a chamada ordem social é na realidade uma desordem, pois está fundamentada na injustiça. É uma sociedade onde uns exploram outros. Os profetas acusam os sacerdotes de divulgar uma falsa imagem de Deus, como se ele fosse o fundamento da sociedade como tal. Os primeiros textos cristãos são proféticos e traçam uma oposição clara entre sacerdócio e profecia.
5. Minha primeira impressão do papa é que temos agora um bom sacerdote, mas não um profeta. Um papa na linha de João Paulo II, que sempre se comportou em bom sacerdote, mas não na linha de João XIII, o profeta do concílio Vaticano II. Quando esse papa, poucos meses depois de ser eleito papa, convocou um concílio, ele falou em ‘aggiornamento’, um termo que não significa simplesmente adequação entre a igreja católica e o mundo moderno, mas (de forma mais profunda) adequação entre a igreja católica e sua original inspiração profética.
6. Mas, de repente, o papa Francisco pode se revelar um profeta. Sempre acontece algo de novo, sempre há surpresas e novas possibilidades se abrem.
7. Finalmente quero assinalar que os grandes meios de comunicação aproveitaram mais uma vez da oportunidade para declarar que o papa não adere à teologia da libertação porque essa teologia seria ‘marxista’.Ora, o papa deve ser bastante inteligente para entender que diversas categorias marxistas entraram definitivamente na análise sociológica da sociedade, universalmente usada por cientistas sociais. Hoje, falar em sociedade de classes, por exemplo, não significa ser comunista. Dizer que vivemos sob a ditadura do mercado não é ser comunista. Há manifesto equívoco (ou mesmo perversão) em chamar a teologia da libertação de marxista. Na realidade, a teologia da libertação é profética. Insere-se na primordial inspiração do cristianismo, expressa por Jesus, que é o profetismo.
Eduardo Hoornaert
Padre casado, belga, com mais de 5O anos de Brasil, historiador e teólogo, mais de 20 livros publicados. Mora em Salvador. Dedica-se agora ao estudo das origens do cristianismo
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