Palavra de Javé: consolai os aflitos e afligi os consolados! Ninguém pode tocar o corpo dos escritos proféticos sem sentir a batida do coração divino.
A
Bíblia, se interpretada com sensatez e a partir dos pobres, nos educa
para a vivência profética, o que passa necessariamente por construir uma
convivência humana e ecológica onde o bem comum seja um princípio
básico seguido.
Os
grandes desafios da realidade social, eclesial e eclesiástica para as
pessoas cristãs que se engajam nas lutas sociais e na construção de uma
sociedade justa, solidária, ecumênica e sustentável, - também construção
de uma igreja Povo de Deus -, me fazem recordar também os desafios de
muitos profetas e profetisas da Bíblia e de suas profecias.
Quando
o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST – ou os movimentos
populares que fazem ocupações urbanas realizam ações radicais – não
extremistas, mas aquelas que, de fato, vão à raiz dos problemas e, por
isso, ferem o coração da idolatria do capital - o ódio dos poderosos
despeja-se sobre os militantes dos movimentos populares. Isso faz
acordar em mim profecias bíblicas, como das parteiras do Egito, dos
profetas Elias, Amós, Miqueias e do galileu de Nazaré.
Quantos
de nós já nos dispusemos a fazer a experiência de viver sob lonas
pretas e gravetos – em condições similares aos animais no meio do mato,
ou em condições piores do que nas favelas? Quem de nós já viveu à beira
das estradas, em lugares ermos e remotos, sujeitos aos ataques noturnos
repentinos? Quantos já permaneceram em um acampamento do MST por mais de
um dia, observando o que comem (e, sobretudo, o que deixam de comer), o
que lhes falta, como são suas condições de vida? Quantos já viram o
desespero das mães procurando, aos gritos, pelos filhos enquanto o
acampamento arde em fogo às 3 da madrugada, atacado por jagunços?
Sentindo-me
na pele dos sem-terra e dos sem-casa, convido você para visitar algumas
profecias bíblicas das parteiras, de Elias, Amós, Miqueias e Jesus de
Nazaré, na esperança de que possam iluminar nossas consciências e
aquecer nossos corações para discernirmos o que é preciso fazer, como
fazer e comprometermo-nos de fato com a causa dos pobres que, com fé
libertadora, lutam por direitos humanos, por uma terra sem males.
Uma
premissa básica: nosso Deus é transdescendente. Muitos perguntam: se
Deus existe e é todo poderoso, por que permite tanta dor, tanta
violência e sofrimento no mundo? Deus é sádico? Está sentado na
arquibancada, de braços cruzados, vendo o sangue do inocente verter na
arena da vida? Deus não faz nada? Um sábio, ao ouvir essas
interpelações, respondeu: Deus fez e faz todos nós para sermos no mundo
expressão do Deus que é infinito amor. A única força que Deus tem é o
amor, que aparenta ser a realidade mais frágil, mas é a mais poderosa do
mundo. Só o amor constrói.
JESUS se tornou tão humano que acabou se divinizando. Pelo seu relacionamento íntimo com o Pai, ao qual chamava de papai (abbáh,
em hebraico), Ele nos revela uma característica fundamental que
perpassa toda a experiência do povo de Deus da Bíblia: o Deus
comprometido com os pobres é um Deus transdescendente, não
apenas transcendente - sua transcendência se esconde na imanência, o
divino no humano. A partir do Êxodo, constatamos como Javé é um Deus que
ouve os clamores dos oprimidos e desce para libertá-los (Êxodo 3,7-9). No início do Gênesis, o Espírito está
nas águas, permeia e perpassa tudo (Gênesis 1,2). Em Jesus de Nazaré,
tendo “nascido de mulher” (Gálatas 4,4), Deus se encarna, descendo e assumindo a condição humana. No Apocalipse, Deus larga o céu, desce, arma sua tenda entre nós e vem morar conosco definitivamente (Apocalipse 21,1-3). Logo, um movimento de transdescendência perpassa toda a Bíblia. Esta característica se reflete em Jesus e continua nas pessoas cristãs de verdade.
Profecia é sussurro de Deus. Os oráculos proféticos, normalmente, são introduzidos com uma fórmula característica: “Assim disse Javé....” ou “Oráculo de Javé” (Jr 9,22-23). A expressão “ne’m YAHWEH”,
em hebraico, geralmente traduzida por “oráculo de Javé” ou “Palavra de
Javé”, significa "sussurro, cochicho de Deus no ouvido do profeta ou da
profetisa". Para entender um cochicho, um sussurro, é preciso fazer
silêncio, prestar muita atenção, estar em sintonia, ter proximidade, ser
amiga/o. Logo, Deus não falava claramente aos profetas, como nós,
muitas vezes pensamos. Deus fala hoje para – e em - nós do mesmo modo
que falava aos profetas e às profetisas. Deus cochicha (sussurra) em
nossos ouvidos, sempre a partir da realidade do pólo enfraquecido, na
trama complexa das relações e estruturas humanas.
Precisamos
colocar nossos ouvidos e nosso coração pertinho do coração dos
violentados, para que nossas palavras possam refletir algo da vontade do
Deus da vida. Mais que fazer cursos de oratória, precisamos de cursos
de “escutatória”. Para ouvir os clamores mais profundos dos empobrecidos é necessário conviver com eles.
Gilvander Luís Moreira
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