O embarque clandestino de crianças e adolescentes nos trens de mineração e de passageiros da Ferrovia de Carajás, sob controle da Vale foi tema de uma audiência pública realizada no dia 13 de abril, em São Luis (MA). Ninguém consegue precisar quantas crianças e adolescentes, ao longo de quase trinta anos, embarcaram clandestinamente nos veículos da empresa. Além do trabalho infantil há denúncias de casos de prostituição em trechos de duplicação da ferrovia.
São Luís. Faz sol. A capital do Maranhão, um dos estados mais empobrecidos do país, soma 400 anos em 2012. Para celebrar a data com pompa e circunstância, o governo maranhense concedeu alguns milhões para a escola de samba da Baixada Fluminense, comandada pelo bicheiro Abraão David, Beija Flor de Nilópolis. O tiro parece ter saído pela culatra. Além de não vencer o concurso, na transmissão da TV, falou-se mais do carnavalesco maranhense falecido às vésperas do carnaval, Joãozinho Trinta, amigo de Roseana, ao invés do aniversário da cidade.
A ilha fundada por franceses tinha como ambição ser a Paris dos trópicos. O nome resulta de bajulação. Uma homenagem ao rei de França, Luís IX. Gullar a imortalizou em Poema Sujo. Bem apropriado o adjetivo. Roseana Sarney governa o estado pela segunda vez numa dobradinha com o petista Washington Luiz de Oliveira. Em seu nascedouro a cultura da legenda do PT no Maranhão creditava a Sarney o atraso do estado. Ironicamente, toda crítica se dissipou na conveniência das alianças.
O Atlântico circunda São Luís, que padece com um precário serviço de abastecimento de água. Mitos e lendas nublam a capital maranhense. Uma delas conta que uma serpente vive nos subterrâneos da ilha. E que a cidade irá afundar assim que a cabeça encontrar a calda. Sexta feira, 13 de abril. O tema da audiência pública na Assembleia Legislativa do Maranhão (ALEMA) é desprovido de aura mágica. O embarque clandestino de crianças e adolescentes na Ferrovia de Carajás, sob o controle da Vale é o tema do debate requerido pela deputada Eliziane Gama (PPS).
A casa legislativa maranhense ganhou notoriedade nacional recentemente pelo fato de remunerar com dezoito salários os seus representantes. A recém-inaugurada sede da Assembleia, a despeito da lei, foi erguida na Estação Ecológica do Rangedor, num local considerado nobre na cidade. Num passeio nas praias, maioria considerada imprópria para banho, os navios cargueiros aguardam em fila para receber o minério paraense. São Luís abriga o porto responsável pelo escoamento do minério de ferro extraído na Serra dos Carajás, município de Parauapebas, sudeste do Pará.
A Vale é uma das maiores empresas do mundo, em sua composição existem pelo menos 27 empresas coligadas, controladas ou joint-ventures distribuídas em mais de 30 países, dentre eles Brasil, Angola, Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Indonésia, Moçambique, Nova Caledônia e Peru, nos quais desenvolve atividades de prospecção e pesquisa mineral, mineração, operações industriais e logística, atesta Dossiê de 2010 apresentado no primeiro encontro dos Atingidos pela Vale, realizado no Rio de Janeiro.
A economia de enclave e os passivos sociais e ambientais
A maior mina de ferro a céu aberto é tributária do melhor minério do mundo. Em 2011, conforme balanço da Vale, foram exploradas 322. 632 toneladas de minério de ferro. Um incremento de 4,8% em relação a 2010. Até 2015 a empresa pretende investir 11,3 bilhões de dólares (mais de 20 bilhões de reais) para dobrar a produção em Carajás. A cada balanço da empresa o faturamento e o extrativismo mineral batem recordes. Dividendos que, ao contrário, não são socializados na região.
O extrativismo rege a economia amazônica. Ao longo dos séculos o saque tem se repetido, e internalizado passivos sociais e ambientais de toda ordem. No caso de Carajás, a região é top em trabalho escravo, desmatamento e violência contra militantes que defendem a reforma agrária, meio ambiente e direitos humanos. Em 1996 a PM do estado do Pará protagonizou o Massacre de Eldorado, ainda hoje impune.
O caso mais recente de execuções de ativistas foi o do casal de extrativistas no município de Nova Ipixuna, José Cláudio Ribeiro e Maria do Espirito Santo. Tal matriz econômica é tratada na academia como enclave. Trocando em miúdos, as populações locais compartilham as mazelas que os grandes projetos internalizam onde são implantados.
61% do território nacional correspondem à Amazônia, onde tudo parece ter dimensões estratosféricas. A Ferrovia de Carajás soma 27 anos. Os seus 892 km² cortam cidades pauperizadas, projetos de assentamentos da reforma agrária, aldeias indígenas e cidades médias, como o município de Marabá, cidade polo do sudeste paraense. O maior trem do mundo, com 330 vagões, mede cerca de 3.500 metros e tem a capacidade de transportar 40 mil toneladas. Em 2007 o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) aprovou empréstimo de R$774,6 milhões para a expansão da Ferrovia.
A ampliação da mineração é um dos eixos de integração elencados pelo governo federal. Tem-se ainda a geração de energia elétrica e a rede de transporte multi-modal (rodovias, ferrovias e hidrovias), que tendem a pressionar territórios já estabelecidos, tais como as reservas ambientais e terras de populações ancestrais, como indígenas e quilombolas. Em jogo, o processo de desenvolvimento para a região.
Vale. a "pior empresa do mundo"
Os passivos sociais e ambientais induzidos pelos empreendimentos da Vale, e a violação de direitos humanos em várias partes do planeta renderam a companhia o titulo de pior empresa do mundo. A chancela foi anunciada após 21 dias de acirrada disputa, no dia 26 de janeiro no Public Eye Awards, conhecido como o “Nobel” da vergonha corporativa mundial. Criado em 2000, o Public Eye é concedido anualmente à empresa vencedora, escolhida por voto popular em função de problemas ambientais, sociais e trabalhistas, durante o Fórum Econômico Mundial, na cidade suíça de Davos.
A Vale concorreu com as empresas Barclays, Freeport, Samsung, Syngenta e Tepco. Nos últimos dias da votação, a Vale e a japonesa Tepco, responsável pelo desastre nuclear de Fukushima, se revesaram no primeiro lugar da disputa, vencida com 25.041 votos pela mineradora brasileira.
Justiça nos Trilhos
A Rede Justiça nos Trilhos tem sido ponta de lança nas denúncias contra a mineradora. Ela realiza ações na região, que já transbordaram para outros países. Ela conseguiu agrupar funcionários e famílias que sofrem algum tipo de impacto de empreendimentos da Vale no Canadá, Brasil, Moçambique e outros locais.
O coletivo mobilizou esforços na produção de artigos acadêmicos e jornalísticos, dossiês, revistas, livros e filmes sobre as dinâmicas da empresa. O grupo empreendeu ainda encontros nos rincões do Maranhão e Pará, e uns três eventos internacionais.
Meninos do trem – os filhos da precisão
O embarque clandestino de crianças e adolescentes nos trens de mineração e de passageiros da Vale foi o fato mobilizador da audiência. Ninguém consegue precisar quantos ao longo dos quase trinta anos embarcaram nos veículos da empresa. A ação pública contra a companhia é da responsabilidade da 1ª Promotoria de Justiça da Infância e Juventude de São Luís. O assunto é tema de um processo administrativo (PA 116/2005 – 1ª PIJ) em tramitação na promotoria, cujo titular é o promotor de Justiça Márcio Thadeu Silva Marques.
O assunto não é novo e não se constitui como problema isolado relacionado à infância e à adolescência no empreendimento da mineradora. É comum nas estações em que os trens de passageiros param encontrar crianças comercializando água, comida, frutas e outros produtos para os passageiros da classe econômica.
Caso proceda que “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, como poetisa a canção do grupo Rappa, um olhar sobre a classe econômica do trem da Vale nos remete a tal imagem. O lugar é insalubre. É comum crianças e idosos passarem mal por conta do calor. O odor de vômito impregna o ar. Além do trabalho infantil, matérias da revista paulista “Caros Amigos” de dezembro de 2011 e de janeiro de 2012 denunciam a prostituição em trechos de duplicação da ferrovia.
Garantir medidas e políticas mitigadoras é uma obrigação da Vale estabelecida em contrato e em lei para que mantenha a concessão da Ferrovia, adverte o defensor público da União, Yuri Pereira Costa. A empresa tem repassado recursos aos municípios para a criação de abrigos voltados às crianças e adolescentes resgatados pela segurança da empresa. No entanto, não há um entendimento entre os Conselhos Tutelares e os representantes da Vale sobre quem deve ser responsabilizado pelo translado das crianças.
As denúncias ganharam maior proporção em 2005. E desde lá a Vale vem procrastinando em assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proposto pelo Ministério Público para solucionar a situação.
Fabíola de Oliveira foi promotora pública em Alto Alegre do Pindaré, um dos pontos de parada do trem, e conhece de perto a situação de vulnerabilidade das crianças. No dia 18 de abril ocorre uma audiência conciliatória com a Vale na 2ª Vara de Justiça, processo de nº 157\2011, da comarca de Santa Luzia. Outra situação delicada por conta da Ferrovia são os atropelamentos de pessoas e animais nas regiões cortadas pela via.
Por isso Oliveira sugere a construção de viadutos na Vila Fufuca, no município de Alto Alegre do Pindaré. Conforme a promotora as crianças são obrigadas a percorrer até um quilômetro para chegar à escola.
Vera de Melo é conselheira tutelar no município de Buriticupu, Maranhão. Ela registra que crianças vendem comida, água e outros produtos na Ferrovia de Carajás. “A problemática é mais complexa, envolve a situação das crianças. Morei por nove anos perto da ferrovia. No trem de carga um menino foi sufocado e morto. Nada foi feito”, denuncia Melo.
A conselheira registrou durante a audiência que em Bom Jesus das Selvas, divisa com Buriticupu, na Estação Nova Vida, há casos de prostituição e abuso sexual, inclusive uso de crianças para o tráfico de drogas. Melo enfatizou que há crianças grávidas de funcionários terceirizados da Vale. E ainda crianças que passam por baixo do trem, e sofrem acidentes.
Padre Dário Bossi representa a rede Justiça nos Trilhos. Fez uma fala objetiva elencando uma série de propostas. Entre elas: realização de audiência pública sobre o mesmo assunto no município de Marabá, no Pará; que a Vale financie encontro de conselhos tutelares no sentido de uniformizar regras, e que o evento tenha a mediação dos Ministérios Públicos dos dois estados; que a Vale financie pesquisa de dois peritos com a titulação mínima de doutor na área de segurança.
A mesa diretora da audiência sugeriu a mobilização da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Pará (ALEPA), para a realização da audiência em Marabá. No encerramento do evento o promotor Márcio Thadeu entregou os documentos para o representante da Vale, Dogival Ferreira Pereira, que alegou ter de consultar os cardeais da empresa para avaliar os termos do TAC, e decidir pela assinatura ou não do mesmo.
Enquanto a Vale avalia pela assinatura ou não do TAC, os meninos seguirão em busca de rumo nos trilhos de Carajás.
Rogério Almeida professor da Universidade da Amazônia (Unama), coordena o projeto de extensão Agência Unama pelo Direito da Criança e do Adolescente
Nenhum comentário:
Postar um comentário