Meu pai lia obsessivamente. Todas as vezes que surpreendi papai, ao abrir a porta do quarto sem bater, eu o flagrava com um livro na mão. Ele assinava pelo menos duas revistas de notícias semanais e vários pasquins. Comprava folhetos subversivos não sei onde. Trazia, perigosamente, para casa literatura proscrita pelos ditadores. Professor de história, tinha um fascínio enorme pela II Guerra Mundial. Na biblioteca, sobravam tomos, fotografias e artigos sobre o conflito que marcou sua infância. Herdei o vício.
Só há um tipo de consumismo que não me oponho: comprar livros. Todas as vezes que entro em qualquer livraria, gasto mais do que posso – divido em prestações, pago juros altos, mas saio sempre de mãos cheias. Não cogito fazer qualquer viagem de avião sem ler o tempo inteiro. Só há um momento em que odeio o sono, quando o romance me mantém ávido pelo enredo.
Antigamente eu me contentava com textos conceituais, de não-ficção. Mas um dia eu quis aprender a escrever. Logo me disseram que se desejasse melhorar a redação – faltei às aulas de português do Liceu – eu teria de devorar literatura. Hoje, abocanho com igual apetite, biografias, romances, poesias, ficção científica, contos. Os livros grossos já não me metem medo. Sou capaz de perseverar em mil páginas.
Tenho avidez de compensar os anos perdidos em que não abri uma página e faço vigília até alta madrugada. Terminar um livro é fascinante. Só não passo a noite em claro, porque, casado, obedeço ordens superiores que zelam por minha saúde.
O livro faz parte da grande conspiração divina. Quando Deus quis falar à humanidade não fez pirotecnia celestial. Inspirou, tão somente, homens e mulheres a escreverem. Sempre que Moisés subiu a montanha, Javé ordenou que trouxesse um bloco de anotações. Tem razão a frase latina: Scripta manent, verba volant – “O escrito fica, as palavras voam”.
Afirmo sem medo: todo livro é sagrado. O livro, relicário santo, registra memórias, fantasias, angústias, medos, bravuras, grandeza e pecados da humanidade.
Não existe livro impuro, apenas o mal escrito. Literatura é a mais completa de todas as artes. Se o personagem na pintura, escultura ou cinema aparecer contemplando um relvado, ninguém conhecerá com exatidão o que cogita. O bom escritor, contudo, discerne os seus pensamentos. Sabe até o que move a suas entranhas.
Louvado seja o livro. Sem ele não conheceríamos o amor trágico de Tristão e Isolda, de Romeu e Julieta e de Bentinho e Capitu. Jamais celebraríamos a coragem enlouquecida do Quixote. Nunca saberíamos sobre a força do ciúme em Otelo. E nunca partilharíamos da coragem do capitão Acabe.
Jorge Luis Borges afirmou que procurou mais reler do que ler. “Creio que reler é mais importante que ler, embora para reler seja preciso haver lido”.
Já sem enxergar, o brilhante argentino nos legou uma declaração de amor ao livro:
“Continuo fingindo não ser cego; continuo comprando livros, continuo enchendo minha casa de livros. Há poucos dias fui presenteado com uma edição de 1966 (ele escreveu isso em 1978) da Enciclopédia Brockhaus. Senti a presença dessa obra em minha casa; eu a senti como uma espécie de felicidade. Aí estavam os vinte e tantos volumes, com uma letra gótica que não posso ler, com mapas e gravuras que não posso ver; e, no entanto, o livro estava aí. Eu sentia como que uma gravitação amistosa do livro. Penso que o livro é uma das possibilidades de felicidade que temos, nós, os homens”.
Homens e mulheres não vivem só de pão. Nossa alma se alimenta de palavras. No livro não se acha sabedoria pura e simples, nele estão as fontes da beleza, tragédia, alegria, esperança e felicidade.
Deus é escritor e os que querem se achegar a Ele, devem aprender a gostar de ler.
Ricardo Gondim
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