Diretor italiano Ermanno Olmi discute em seu filme a crise de valores e de instituições na Itália atual e a resistência aos imigrantes africanos.
A Aldeia de Papelão, em tradução livre (“Il Villaggio Di Cartone”). Drama. Itália. 2011. 87 minutos. Fotografia: Fabio Olmi. Música: Sofia Gubaidolina. Roteiro: Ermanno Olmi, Claudio Magri, Gianfranco Ravasa. Direção: Ermanno Olmi. Elenco: Michael Lonsdale, Hutger Hauer, Alessandro Haber.
Numa das sequências emblemáticas de Oito e Meio, Cristo passeia de helicóptero por Roma. Na sequência central de A Aldeia de Papelão, Ele é retirado do altar por um guindaste, despejado por falta de fiéis. Cerca de 40 anos, distanciam os dois filmes. No de Fellini, Ele “mantém seus poderes”, no de Olmi “o perdeu”. É “apenas uma imagem”, cuja “simbologia foi esvaziada” pela crise européia e, por que não, pela crise estrutural do capitalismo, engendrada pelo capital financeiro. Mais o filme de Ermanno Olmi (A Árvore dos Tamancos) não é sobre a crise da criatividade de um cineasta, é mais profundo. Aqui é a perda dos valores, do papel da Igreja e da fé diante da miséria de imigrantes desamparados.
A Aldeia de Papelão de Olmi é sobre a Itália de Silvio Berlusconi que, à época de sua exibição no Festival de Veneza deste ano, ainda era o primeiro-ministro. Não é, portanto, uma questão de nomes, mas de projeto da burguesia italiana que certamente não inclui trabalhadores, imigrantes e as forças democratas e de esquerda. Eles, os burgueses italianos, estão incorporados no enigmático Sacristão (Hutger Hauer), encarregado da demolição da igreja por falta de fiéis. Sim, é isto. O filme também trata do papel da Igreja nesta etapa histórica do capitalismo, sob o domínio do capital financeiro. E ela é, hoje, um poder esvaziado, em constante disputa com outras crenças.
Nas primeiras sequências, o Velho Padre (Michel Lonsdale) está sendo despejado de sua paróquia. Nada ali está mais no lugar. O Cristo, sobre o altar, é retirado pelo gigantesco guindaste, numa “queda“ que é também a da Igreja. A fé perde o sentido numa sociedade dominada pelo consumismo, em que tudo, inclusive os valores simbólicos, se transformam em mercadorias. E a própria igreja, como espaço de pregação, tem valor de mercado. O Velho Padre então se apega ao antigo cristianismo para adiar a demolição.
Olmi demarca, assim, o espaço entre a Igreja que se perdeu em seus apoios à burguesia e a governos conservadores, inclusive ditaduras, e a tentativa do Velho Padre para reviver o antigo cristianismo, em sua opção pelos oprimidos. Esta se configura na defesa que faz desse cristianismo, na chegada dos imigrantes africanos à sua igreja. Ao invés de ser uma ameaça; eles irão ajudá-lo a resistir à demolição. É a retomada da Igreja defendida pela Teologia da Libertação, através do engajamento nas transformações político-sociais.
Sociedade italiana está num impasse
O grupo de imigrantes africanos é tão heterogêneo quanto a sociedade de onde veem. Há o cristão, o fundamentalista, a trabalhadora do sexo, o intelectual, os jovens. A relação que estabelece com o Velho Padre é cheia de nuances – um se apóia no outro para validar suas intenções. A dos africanos é se abrigar na igreja, a do Velho Padre evitar que 50 anos de paróquia seja soterrado. A forçá-los a desistir está o Sacristão. Inflexível, como tecnocratas de plantão, ele só enxerga seu objetivo: a desocupação da igreja. Apenas a união do Velho Padre com os imigrantes africanos o impede de fazê-lo.
Seu aliado, o Chefe da Segurança (Alessandro Haber), é cheio de tática. Usa a lei para fazer valer seus intentos. A lei aqui é a salvaguarda da burguesia para impor seus interesses. Para se contrapor à lei, o Velho Padre usa seu direito de proteger os desvalidos. É um embate, cujo desfecho é lapidar. Há toda uma simbologia para isto ocorrer. O uso da pia batismal como bacia para conter a goteira e os bancos dos fiéis como barracas. E a tipificação dos imigrantes africanos como oprimidos, dotados de consciência. “Nossa miséria é que sustenta a riqueza deles (citação não literal)”, diz a Adolescente.
Sua frase embute a radicalidade da exploração colonial européia na África. A miséria em que seus povos foram deixados. A Itália, particularmente, na Etiópia e na Líbia. E além de continuar a exaurir suas riquezas os proíbem de procurar abrigo nos países que os levaram à pobreza e à desesperança. Em particular Itália, França e Espanha, cujas leis contra imigrantes beiram o irracionalismo. Neles enfrentam o racismo, a perseguição, o confinamento ou a deportação pura e simples. No entanto, eles resistem, como a africana que se prostitui para sobreviver, e pulam de país em país em busca de ocupação, de perspectivas, cada vez mais difíceis. Em suma, eles são uma das partes mais visíveis da atual crise do sistema capitalista.
Uma crise não só financeira como também de valores e de instituições, caso da Igreja de “A Aldeia de Papelão”, exibido na VII Semana Venezia Cinema, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. A ponto de Olmi ver a Itália, e não só ela, num impasse: “Ou a gente muda o curso dessa história ou a história muda a gente (citação não literal)”. É uma frase ambígua. Os 99% de excluídos podem ditar o curso da história, desde que tenham um programa para mudar o sistema capitalista. Só apontar o 1% de capitalistas como responsável pela crise não o tira de suas mansões.
Cloves Geraldo
Fonte: O Vermelho
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