A leitura de uma reportagem do site do New York Times de hoje permite ter contato com o horror do horror da nossa época: a história daqueles bebês que foram sequestrados e criados por oficiais que participaram da tortura e execução de seus pais durante a ditadura militar que governou a Argentina a partir de 1976.
O jornal publica a história de uma dessas pessoas. Hoje com 35 anos, casada, três filhos, Victória Montenegro foi criada por um coronel que atuava num centro clandestino usado para prender, interrogar e assassinar militantes de organizações que faziam oposição ao regime. Ali seus pais foram mortos. Vitctoria foi levada para a casa de um oficial que mudou seu nome para Maria.
Estima-se que 30 000 pessoas tenham sido executadas pela ditadura. Calcula-se que pelo menos 500 de seus filhos foram sequestrados quando ainda eram bebês. Essa situação já foi descrita no belíssimo filme “Historia Oficial,” que o pai de Victória a proibiu de assistir, mas é muito mais doloroso na vida real.
Até hoje, 105 dessas crianças conseguiram fazer a própria reconstrução biologica e realizar uma volta completa. Não só descobriram que foram criados por pais falsos, mas também conseguiram localizar os verdadeiros.
Dificil encontrar perversidade maior. Imagino os olhares adultos, todas as manhãs, no caminho da escola, na volta, no jantar, para crianças que não eram suas e que precisavam ser engandadas, todas as manhã, no caminho da escola, na volta, no jantar. Penso nome Victória, uma destas escolhas com um significado político mais ou menos claro.
O que se pensa numa hora dessas? Como uma pessoa justifica essa mentira para si mesma? De que tipo de consciencia se trata?
Falando sobre sua vida, Victória Montenegro, que usou seu nome verdadeiro pela primeira quando prestou depoimento à Justiça, em agosto, fez um balanço emocionado de sua existencia e do coronel que tentava passar-se como seu pai. Uma de suas sentenças transformou-se na frase do dia do New York Times, hoje:
“O coração não sequestra você, não te esconde, não te machuca nem conta mentiras por toda sua vida. O amor é outra coisa.”
Outro aspecto é que não é possível criar e manter uma mentira tão grotesca sem uma grande cumplicidade externa. O horror do horror não se produz sòzinho. Precisa do apoio dos altos escalões do Exército e do governo mas nao só.
As crianças eram adotadas mas tentava-se transformá-las em filhos e filhas biológicas. Isso exigia a produção de certidões de nascimento falsas, com datas falsas e nomes falsos. A maioria das crianças sequestradas já tinha papéis originais. Eles precisavam ser substituidos por outra documentação, como se fossem nascer outra vez. Esse procedimento não seria possível sem o apoio de cartórios e de juizes.
Num país de forte tradição religiosa, também era preciso a benção da Igreja Católica. Não faltaram padres e bispos capazes de batizar as crianças sequestradas e assegurar um tratamento cordial a seus falsos pais.
Não sou católico e não gosto de me envolver em questões religiosas. Mas toda vez que leio um desses franco-atiradores do conservadorismo fazendo críticas aos padres da Teologia da Libertação eu me pergunto se eles preferiam que os religiosos brasileiros tivessem copiado os métodos e a postura dos argentinos.
Leia a integra da reportagem aqui (em ingles)http://www.nytimes.com/2011/10/09/world/americas/argentinas-daughter-of-dirty-war-raised-by-man-who-killed-her-parents.html?
Fonte: Paulo Moreira Leite
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